Já disse muitas vezes, para quem quisesse ouvir, que não gosto de vlogs. E não gosto. Então, ainda não sei explicar o que aconteceu para que neste ano eu ficasse tão envolvida não apenas com um vlog, mas com um canal de vlogs diários. O primeiro vídeo da Isabella e do Felipe que assisti foi o de quando eles completaram um ano de daily vlog naquele canal que na época ainda se chamava Fotografando à Mesa. Achei esse feito tão impressionante que resolvi clicar no vídeo, e como coincidentemente estava tendo um dia meio ruim, com uma tonelada de trabalho que estava evitando fazer, acabei ficando para o próximo vídeo da reprodução automática, e mais um, e depois outro.
No final daquele dia eu já sabia que a Isabella e o Felipe são namorados que têm outros namorados e namoradas, que eles trabalham com vídeo, só usam preto, tem uma parede preta em casa, adoram ir na feira e em brechós, e meu Deus a irmã do Felipe é muito legal (nessa época a Marcelita ainda não fazia parte do elenco fixo, mas logo minhas preces foram atendidas) (te amo, Marcelita, seja minha amiga). Por muito tempo achei que eles tinham quatro gatos, e não três, e foi só algumas semanas depois de vídeos todos os dias às oito da noite que descobri que Ferináceos e Bolinho eram o mesmo gato -- o meu favorito do elenco felino.
Na semana em que o Pedro passou aqui eu tentei explicar o apelo dos vídeos, sem muito sucesso. "Eles estão procurando apartamento pra alugar em São Paulo, Anna, eu não quero ver um vídeo que me lembra de como isso é um inferno". Nessa época eles estavam de mudança e vários episódios giravam em torno disso, mas não no formato que o Youtube transformou em commodity, com diários de mudança e reforma cheios de arquitetos, móveis planejados e itens de decoração acompanhados de links pra compra; era uma narrativa banal de visitar vários apartamentos mais ou menos, com o desafio de escolher aquele com mais mais e menos menos e transformar aquilo num lar.
Ainda existe um estilo de vida sendo vendido subliminarmente, claro, mas viver o capitalismo tardio na internet é entender que vamos acabar sendo transformados em mercadoria de alguma forma.
Tudo é absurdamente banal, e é isso que me fascina porque sou obcecada por formas de documentar a vida, narrativizar o cotidiano e dirigir artisticamente a nossa existência comum. O que continua me levando aos vídeos da Isabella e do Felipe é a capacidade incrível deles de fazer isso, o que transforma os vlogs num registro de época muito curioso e especial.
A Isabella e o Felipe são pessoas de verdade, e são muito mais que isso -- o que só torna as coisas mais interessantes --, mas como espectadora à distância vejo os dois como estandartes da minha geração -- num recorte específico e limitado, claro, mas nem por isso menos significativo. Eles são dois jovens de 20 e poucos anos que trabalham com algo que aprenderam porque foram crianças e adolescentes que passavam tempo demais no computador. É uma mulher de cabeça raspada e um homem de piercing no rosto. Eles questionam a monogamia, o capitalismo, os padrões de gênero e as sexualidades normativas; eles andam de Uber, usam aplicativos de paquera, usam um dialeto muito específico da internet no dia a dia, frequentam shows indie e cantarolam funks. Eles compartilham as dificuldades do início da vida adulta, questionam o que fazem e dividem essas angústias com o público. A expressão "quentinho no coração" é uma das mais recorrentes.
Eles fazem comida em tigelas bonitas, prontas para ser fotografadas. O antigo nome do canal era Fotografando à Mesa, mas poderia ser Fotografando a Mesa, sem crase, dada a naturalidade com que fotografamos nossos pratos para postar no Instagram antes de comer, uma mesma naturalidade crescente, e antes inimaginável, de se andar com uma câmera por aí filmando o cotidiano. Eles são millennials na velocidade 5 do créu.
Meu indicador favorito da geração Y diz respeito à forma como nos relacionamos com as mudanças, especialmente por conta das mudanças de tecnologia e da instabilidade geral do mundo, que é o único jeito de existir no mundo que conhecemos. A gente se lembra perfeitamente como era usar uma câmera analógica e dos tempos da conexão discada, mas hoje consigo fazer todo o meu trabalho do celular, um trabalho que aprendi não na faculdade, mas ficando tempo demais no computador quando ainda era criança. Nós sabemos que não vamos morrer no mesmo mundo em que nascemos, e quem atingir a expectativa de vida do brasileiro médio vai morrer num medo que nem existe ainda. A única certeza que temos é que tudo muda, e rápido, por isso quase todos os meus amigos sofrem com algum tipo de transtorno de ansiedade e encontram consolo em vídeos de gatinho, jardinagem urbana e máscaras faciais.
Acho que é isso que me atrai tanto nesses registros, pequenos fragmentos de realidade que vão nos lembrar, no futuro (que pode ser ano que vem), o que fazíamos, do que falávamos e como vivíamos neste momento específico. É esse impulso que me move para deixar aqui essas lembranças.
Em janeiro do ano que vem completo 10 anos de Twitter, provavelmente o registro mais completo que consegui fazer da minha época (junto com meus antigos blogs e agora essa newsletter), dada a minha incapacidade de manter diários e todos os meus projetos fotográficos fracassados (leiam esse texto da Gabriela sobre escrever na internet). Ainda não gosto de vlogs, mas escolhi a Isabella e o Felipe para marcar todo o tempo que passei pensando sobre o que significa ser jovem e estar aqui nesse mundo hoje e agora. Além disso, eles são dois dos vários estranhos que estiveram ao meu redor nos últimos 12 meses.
Não gosto da leitura que coloca nossas vidas virtuais como espetacularização narcisista do cotidiano pura e simples; não é a história completa. Também não sei o que estamos construindo quando filmamos 10 segundos das nossas vidas para formar uma história nova, todo dia, através de fragmentos da realidade. Quero um dia elaborar melhorar a narrativa complexa que construímos por meio da existência de versões de nós que numa janela aparecem de pijama fazendo graça com filtro de cachorro, coexistindo com fotos estilizadas em cores harmônicas em outra; que de um lado estão reclamando do trânsito, fazendo piadas anárquicas e dividindo terrores desconhecidos até pelas as pessoas mais próximas, para num site ao lado produzir textos engajados e declarações públicas de amor. Não sei o que é isso, mas sei que é mais complexo e especial do que um espetáculo. Menos solitário também.
Eu queria lembrar dos estranhos que fizeram parte da minha vida esse ano desse jeito mais estranho e único, que sei que não preciso me dar ao trabalho de explicar pois aqui estão vocês, lendo as memórias de uma completa estranha.
Meus estranhos favoritos de 2017
As pessoas que fazem perguntas no Curious Cat da Manu Barem (e a Manu Barem, de modo geral)
Isabella e Felipe, claro
As melhores coisas que millennials produziram sobre millennials em 2017
As séries Master of None e Broad City
O álbum Melodrama e o clipe de Não Espero Mais
O livro One Day We'll All Be Dead And None of This Will Matter, da Scaachi Koul
Se você chegou agora, pode acompanhar o que ando fazendo/pensando/vivendo pelo Twitter ou pelo Instagram.
Stay beautiful e boa semana!
Yours truly,
Anna Vitória