para ler ouvindo maglore - a vida é uma aventura
Hello stranger, como vai você?
Ontem meu namorado leu em voz alta para mim alguns trechos do discurso que Dilma Rousseff proferiu após a aprovação do impeachment em 2016. Tentei impedi-lo de começar a falar por medo de chorar, esse é um episódio que até hoje mexe muito comigo. Mas ele seguiu mesmo assim e nesse clima de balanço em que paramos para pensar no caminho que nos trouxe até aqui, sugiro que relembrem também, nem que seja como curiosidade mórbida pelo tom profético de várias de suas palavras.
A descrença e a mágoa que nos atingem em momentos como esse são péssimas conselheiras. Não desistam da luta.
Ouçam bem: eles pensam que nos venceram, mas estão enganados. Sei que todos vamos lutar. Haverá contra eles a mais firme, incansável e enérgica oposição que um governo golpista pode sofrer. (…) Esta história não acaba assim. Estou certa que a interrupção deste processo pelo golpe de estado não é definitiva. Nós voltaremos. Voltaremos para continuar nossa jornada rumo a um Brasil em que o povo é soberano.
Hoje, seis anos depois, acho difícil recordar esse período não só por ser extremamente doloroso, mas porque não consigo mais acessar aquele desamparo quase ingênuo que me abateu tanto, de quem viu o absurdo acontecer diante dos próprios olhos sem conseguir acreditar que algo tão descabido pudesse avançar sem que alguém interferisse. Um apagão muito pior do que aquele do 7x1.
Nas eleições de 2018 foi a mesma coisa. Resgatei o que escrevi depois de chegar em casa da votação no primeiro turno e vejo ali uma criança tentando apelar para ideais como razão, bom senso, integridade e cuidado com o próximo diante de uma barbárie que já estava instalada há muito tempo, mas a gente não conseguia entender. Foi um atropelo, uma queda num abismo sem fundo, um novo encontro com aquele desamparo que fez com que novamente eu me sentisse muito pequena, muito criança, alguém que só precisava desesperadamente que um adulto surgisse para resolver todos os seus problemas. É um sentimento que diz bastante sobre a desorientação política coletiva, mas também da minha própria história de segurança e conforto social, que teve o privilégio de demorar mais de 20 anos para experimentar essa desolação, e ainda assim pela tela da televisão.
Lá em 2016, antes da votação do impeachment, quando essa newsletter ainda era publicada pelo pioneiro TinyLetter, escrevi sobre esse sentimento louco de se perceber sujeito da história, um tema recorrente nas minhas elocubrações. Minha geração sempre vai carregar o fardo de ter visto de perto tantas mudanças e revoluções, o testemunho extremamente específico de crescer e se formar em um mundo que desaparecia numa velocidade extraordinária enquanto nos preparávamos para ele. Se na infância eu tinha o sentimento de Fim da História graças aos livros didáticos que encerravam sua narrativa num começo de anos 2000, com um aceno otimista à globalização e à vitória da Constituição de 1988 (um pequeno milagre se analisada de perto) lá em 2016 minha grande angústia era ver a história acontecendo diante de mim sem saber o que fazer diante dela. 2013 já tinha ensinado que fazer história podia dar muito, muito errado.
Agora, cinco anos depois, tenho esse sentimento um pouco mais pacificado aqui dentro. Aprendi a conviver com o caos e com o pior das pessoas, defendi meu mestrado com a conclusão de que a teoria que embasou minha pesquisa lá no início, em 2015, a esfera pública habermasiana com sua crença na comunicação racional, simplesmente não se aplica mais pro mundo em que vivemos. Vi um presidente deixar seu povo literalmente morrer sufocado e depois de um certo tempo eu já nem conseguia mais chorar. Mas hoje, às vésperas de mais uma eleição histórica, o niilismo (ora festivo, ora trágico) que tomou conta de mim nesses últimos tempos abriu um pouquinho de espaço para enxergar esse meu lugar de testemunha a partir de uma perspectiva mais bonita. Era pra ser só uma legenda de foto pré-eleitoral no Instagram, mas decidi publicar aqui mesmo.
O desdobramento quase natural daquela Constituição que apresentou para mim, lá atrás, um país sedimentado pela democracia, seria a ascensão de um presidente do povo que faria uma série de reparações e projetos para trazer mais inclusão para esse lugar que desde sua fundação é tão desigual. Eu era criança, mas vi acontecer.
Hoje, gosto muito de pensar que estava prestando vestibular quando a lei de cotas foi aprovada e que minha experiência de universidade pública já foi muito mais diversa, múltipla e extraordinária do que foi antes da minha geração. Depois, no mestrado, pude ver como essa mudança se refletia nos modos de se fazer e pensar ciência, questionando uma série de hegemonias que pela primeira vez tinham seu pedestal balançado de forma contundente. Nos meus dias mais otimistas, gosto de pensar que esses espaços só são atacados hoje com tanta virulência porque de fato conseguiram mexer no que estava posto. Essa é uma história que ninguém precisou me contar: eu fui, eu tava, eu sou e nos últimos dias o que mais tenho lido e ouvido por aí são histórias de pessoas que também viveram isso numa dimensão ainda maior que minha experiência conseguiu alcançar.
Ainda falta muito para mudar de vez essas estruturas, mas gosto de pensar que existe um limite até mesmo para o retrocesso, porque agora a gente carrega nos ossos a lembrança de que dá para ser diferente, dá pra ser melhor. Até o Ratinho, que é o Ratinho, reconheceu isso. Ainda reclamo, e sempre vou reclamar, da desgraça que é ser uma geração de transição, do pé no saco que é ser sujeito tão intensamente histórico, da contradição das declarações de guerra misturadas com a natação à tarde, mas gosto de pensar que esses terremotos todos ao menos me ensinaram que história não tem fim, mas é disputa constante, que se escreve todos os dias, e estamos aqui pra isso. Sou apenas uma camponesa de classe média no meio disso tudo, minha resistência é no máximo a de ter chegado aqui um pouco menos boba do que era em 2016. Torço para que mais pessoas tenham usado esses anos para aprender isso também e, nos melhores dias, penso sobre o que foram esses meses de campanha e acho que fizemos algo de certo nesse sentido.
Sei que os próximos anos não vão ser fáceis e temo pelas próximas semanas e meses. Sei que talvez daqui um tempo eu volte a esse texto e sinta vergonha de ter deixado a vulnerabilidade à mostra e me permitido acreditar de novo, mas ainda não sei fazer as coisas de outro jeito.
Às mulheres brasileiras, que me cobriram de flores e de carinho, peço que acreditem que vocês podem. As futuras gerações de brasileiras saberão que, na primeira vez que uma mulher assumiu a Presidência do Brasil, a machismo e a misoginia mostraram suas feias faces. Abrimos um caminho de mão única em direção à igualdade de gênero. Nada nos fará recuar.
Neste momento, não direi adeus a vocês. Tenho certeza de que posso dizer “até daqui a pouco”.
Seguimos.
Viu esse texto no Twitter, gostou, mas ainda não me acompanha por aqui? Hora de mudar isso!
Lá em 2016, encerrei a edição da newsletter pré-golpe com um poema da Wisława Szymborska, “Filhos da Época”. Agora, encerro com um trecho de Maiakovski que a própria Dilma escolheu para fechar seu discurso.
"Não estamos alegres, é certo,
Mas também por que razão haveríamos de ficar tristes?
O mar da história é agitado
As ameaças e as guerras, haveremos de atravessá-las,
Rompê-las ao meio,
Cortando-as como uma quilha corta."
Em setembro, tive a chance de atacar de jornalista para o Monkeybuzz entrevistando o Teago Oliveira, da Maglore, sobre o disco novo da banda. V já é um dos meus discos favoritos do ano e é uma das melhores coisas pra se ouvir ao longo do fim de semana. No nosso papo, Teago e eu falamos de Lula e Beatles, escrever na pandemia, como ser otimista no meio do caos e aquela coisa esquisita que rolou em 2013. Fica aqui um teaser do que rolou:
Você tem todo o direito de ficar em silêncio e de não dar cara a tapa, mas sinto essa obrigação porque as minhas músicas sempre falaram [de política] desde o primeiro disco. Agora é um momento crucial, talvez o ano mais importante desde a redemocratização. Essa eleição é a mais importante de todas. Eu votaria numa pedra. Eu votaria numa pedra para tirar o governo. As pessoas falam que eu sou petista e de certa forma eu sou mesmo, se for comparar com o resto. Mas eu votaria numa pedra se o Lula não fosse candidato, eu votaria em qualquer outro que não fosse Bolsonaro. É nesse lugar que me encontro.
Bruno Capelas, meu prometido, agora também tem uma newsletter, onde escreve sobre drinks harmonizados com discos brasileiros. Em pouco tempo ele já se tornou o newsletteiro oficial desse casal, mas se me sobra alguma autoridade nesse latifúndio, fica aqui a recomendação de seu texto mais recente, que de alguma forma inspirou isso aqui também.
Para quem está se perguntando, sim, eu ainda existo. Já prontinha com a roupa de votar, sempre cansada, mas sem esmorecer.
Se você gostou do texto de hoje, aproveite para compartilhar por aí. O problema do artista é que ele precisa ser elogiado.
Stay beautiful e não deixem de ir às urnas no domingo em nome de um Brasil melhor!
Com carinho,
Anna Vitória
Tem muito da minha vivência nesse texto pois tive o privilégio de não passar muito perrengue debaixo da asa dos meus pais, e durante o período que fiz minha graduação em uma particular vi amigos meus finalmente conseguindo estudar pelo Prouni, e o ambiente onde estudei já era mais diverso do que meus pais viveram quando se formaram (apesar de ter um recorte aqui: minha mãe estudou em uma faculdade particular em Itaquera, que era uma realidade bem a margem perto da minha), mas ainda sim eu era muito sensível as mudanças que o Lula representava, e que a Dilma carregou o quanto conseguiu. Política pra mim virou um campo minado pra minha saúde mental, justamente por ter visto todas essas mudanças ao vivo em pouco tempo, esse meu passado burguês não me preparou pra apanhar tanto socorro
O comentário não tem conclusão hahaha, o texto foi foda!
amei, amei todo o texto <3 parabéns pela escrita tão linda e potente :')