para ler ouvindo taylor swift - mirrorball
Sempre que conheço algum menino que posso gostar e que não me conhece direito (ou seja, que nunca leu algo meu na internet) existe um momento crucial que é aquele em que eu preciso dizer que sou fã da Taylor Swift. É quase um aviso, uma ameaça. Não sinto esse tipo de nervosismo em relação a nenhum outro dos meus gostos ou características, é mais provável que eu fale primeiro sobre as coisas que converso na terapia do que o fato que sou muito fã da Taylor Swift. Na verdade, o que me faz ser fã de Taylor Swift tem tudo a ver com as coisas que converso na terapia, mas quando elas são apresentadas de forma condensada na figura de uma mulher loira, de olhos azuis e ligeiramente megalomaníaca, sinto que estou revelando algo fundamental sobre mim que imediatamente me coloca na posição de quem revelou demais em um primeiro encontro, alguém que já começou perdendo.
A confissão não faz a menor diferença para a pessoa sentada do outro lado na mesa, é algo que os caras simplesmente não entendem, mas me sinto exposta mesmo assim. No máximo ele vai fazer alguma piada na hora ou aproveitar a informação para fazer graça com a minha cara em oportunidades futuras, se sentindo um ás do flerte, e eu vou fingir que me importo torcendo para que fique por isso mesmo, para que ele não leia nada nas entrelinhas. Eu falo que sou fã da Taylor Swift o tempo inteiro, mas dizer isso para alguém que eu quero que goste de mim faz com que eu me sinta mais vulnerável do que o momento em que deixo essa pessoa me ver sem roupa pela primeira vez. Todas as minhas calcinhas são bonitas, mas prefiro ser pega de calcinha bege, furada, do que admitir que "Enchanted" ainda é a minha música favorita.
Em "Enchanted", Taylor Swift narra um encontro perfeito, a sensação inebriante de encantamento e possibilidade que é conhecer alguém, mas do ponto de vista da pessoa que acabou de chegar em casa, fechou a porta atrás de si e repassou a noite toda na cabeça com um sorriso no rosto, até lembrar de que nada é garantido naquela história. "Please don't be in love with someone else", ela clama, com uma honestidade que chega a ser incômoda, algo que a gente evita pensar porque então teria algo a perder. "Please don't have somebody waiting on you".
Ao longo de sua carreira, Taylor Swift sempre foi vista por boa parte dos críticos como uma espécie de chacota, ainda que a maioria admitisse que apesar de tudo ela sempre soube escrever. Poderia citar aqui uma série de motivos para esse desprezo generalizado, sendo o machismo o mais óbvio deles, mas acho que sempre existiu algo extremamente deselegante misturado à escrita sofisticada dela, uma insistência em verbalizar, destacar e explorar sentimentos invisíveis que provoca uma vergonha que transcende até os papéis tradicionais de gênero. "Please don't be in love with someone else", quem é que diz esse tipo de coisa?
Ao mesmo tempo, esses sentimentos todos vinham empacotados dentro de uma artista cuja personalidade sempre esteve atrelada ao controle, em especial o controle de si mesma, da própria narrativa, e acho que a mistura entre vulnerabilidade e controle, o desejo de ser bem vista e agradar, são as duas características menos atraentes que uma pessoa pública pode ter. Ninguém gosta de se ver nesse tipo de espelho, ninguém quer conviver com alguém assim.
Mas foi exatamente nesse espelho que me vi em boa parte da minha vida, minha história não me deixou muita escolha se não a de ser fã de Taylor Swift. Prova disso é que esse é um traço que compartilho com praticamente todas as minhas amigas mais próximas, somos todas fãs de Taylor Swift que se encontraram no mundo, por mais que algumas já nem liguem mais pro som dela. O que fica é esse laço poderoso de reconhecer em alguém o mesmo sentimentalismo deselegante, a mesma obsessão por detalhes e histórias, o mesmo olhar aguçado para narrativas, o mesmo desconforto ao descobrir que não temos controle sobre elas, que não temos controle sobre nada. Vejo o mesmo movimento também em Briony Tallis, protagonista de um dos meus livros favoritos, que é apresentada ao leitor organizando seus animais em miniatura num cenário elaborado, escrevendo uma peça de teatro, ficando frustrada quando os primos não se mostram dispostos a obedecer seu roteiro. Briony é odiada por quase todo mundo que lê Reparação, já que o hábito de usar narrativas para dar ordem a um mundo que não ela compreende a faz cometer um erro imperdoável.
Tenho vergonha de dizer que entendo o lado dela quase tanto quanto tenho de admitir o quão fã de Taylor Swift eu realmente sou, o quanto a busca delas ecoa na minha.
Sou fã de Taylor Swift desde a adolescência, mas sinto que foi só em 2017 que isso se tornou um traço de personalidade. Em 2017 ela lançou o reputation, que para a maioria das pessoas parecia mais um pedido de socorro, mas que para mim é a coisa mais interessante, genial e íntima que ela já fez. Passei mais de um mês estudando o disco e destrinchando suas letras com um rigor que, juro, acho que não tenho nem mesmo com a pesquisa que sou paga para fazer hoje em dia. Ver a Taylor Swift quebrar diante de todo mundo me atingiu como algo pessoal demais porque me mostrava que, assim como ela, eu poderia quebrar também. Na verdade eu já estava quebrando, mesmo sem saber, e o reputation foi uma espécie de luz, de guia ao longo desse percurso.
Semana passada a Clara escreveu que se tornou niilista graças a Crazy Ex-Girlfriend e eu poderia fazer um paralelo e dizer que abracei o meu Processo graças a reputation. A Clara conta que não pensou duas vezes antes de se jogar ao se ver diante do abismo que é a falta de sentido de tudo, mas eu, que não sou tão corajosa, só caí porque fui empurrada - que é mais ou menos o que aconteceu com a Taylor também. Mas aí, talvez por ter passado todo aquele tempo destrinchando o reputation, talvez por ter assistido Crazy Ex-Girlfriend vezes demais, talvez por ter conhecido a Clara, talvez porque finalmente havia começado a fazer terapia, talvez por conta de um milhão de pequenas coisas acumuladas ao longo de uma vida inteira, em algum momento durante essa queda eu simplesmente me entreguei ao abismo e parei de buscar o outro lado.
Eu também estava me apaixonando, e dessa vez não era por um disco, por uma cidade ou por uma banda, mas por uma pessoa. A paixão talvez seja o "visite o decorado" do caos, a melhor forma de se ver em um mundo sem sentido e conscientemente escolher continuar caindo, fazer um espetáculo disso. Naquele ano, incluí "Delicate", da Taylor Swift, em uma playlist que fiz para um menino que eu queria muito que gostasse de mim, e ele não deve ter conseguido ler as entrelinhas, mas aquele era um convite para me ver através das rachaduras.
Coincidência ou não, foi também nessa época que virei fã de The National. A um olhar menos treinado, o The National, ou melhor, o eu-lírico por trás das letras do The National, é quase uma antítese do que a Taylor Swift representa. Tudo que nela é postura e controle, neles é caos e decadência, uma mistura de tristeza e autocomiseração do tipo menos nobre que você possa imaginar. Gosto bastante de um diagrama que reúne os sentimentos mais presentes nas letras da banda: sad, horny, drunk, mad at my wife, um de cada vez, às vezes todos eles juntos. Ninguém quer se ver nesse tipo de espelho, ninguém quer conviver com alguém assim, ainda que a imagem projetada por eles seja muito mais aceita do que a de uma mulher na mesma posição jamais seria.
Nem mesmo o amor é bonito de se ver muito de perto, e é isso que as músicas do The National insistem em mostrar por meio de histórias de pessoas que sentem demais, não sabem se comportar, tomam decisões horríveis e tem a cabeça completamente desgraçada pelo tesão errado. “Can I get a minute of not being nervous and not thinking of my dick?” – quem diz esse tipo de coisa? Sinto que espiritualmente o Matt Berninger está comunicando as mesmas coisas que a Taylor Swift, mas cada um o faz a partir de uma forma e de uma linguagem adequadas aos estereótipos de gênero nos quais se encaixam de maneira quase caricata. É como se através deles o ouvinte experimentasse uma espécie de educação sentimental acerca do que existe de mais embaraçoso dentro de si, junto a uma fórmula generificada para expressá-lo, e como sempre eu fui uma excelente aluna.
Por tudo isso, não pude deixar de me sentir um pouco traída quando a Taylor Swift lançou o Lover na sequência de reputation. Muitos fãs celebraram o álbum como uma espécie de libertação depois de um período difícil na vida da artista, só que para mim aquilo parecia um retrocesso, uma negação; só agora, depois de passar praticamente um ano assistindo episódios repetidos de Downton Abbey, The Office, e programas de culinária, consigo entendê-la um pouco melhor. Rindo: a negação, no fim das contas, nada mais é do que a primeira fase do luto.
folklore, por sua vez, é o disco que eu esperava desde reputation e para mim é o sucessor natural do magnum opus ™ da cantora Saylor Twify – reparem na aproximação até pela escolha de letras minúsculas para grafar os títulos. Só que em vez de soar novo, ele se parece mais com algo que já ouvimos antes, algo que, desconfio, Taylor Swift ouve há bastante tempo, mas só agora conseguiu cantar e contar. Nesse período de divulgação ela disse várias vezes que as músicas não nasciam de exploração de algo inédito, mas sim de um retorno, uma jornada para dentro. Ela canta sobre seus avós e uma série de eventos que aconteceram antes dela nascer, abraçando sonoridades que às vezes soam até meio datadas, e que me lembram de coisas que escutava no início da adolescência, quando o folk contemporâneo era muito cool. Consigo imaginar a Taylor Swift como uma fã de Bon Iver que tratava essa informação como um segredo mais ou menos bem guardado, só porque a informação não combinava com as referências que ela estava explorando em seu trabalho no momento, algo que simplesmente fugia da sua narrativa.
Taylor Swift mergulhou na vida de personagens fictícios para escrever boa parte das músicas, mas o álbum continua cheio de sua mitologia pessoal. Folclore, afinal, é o saber tradicional de um povo que faz parte da construção social de sua identidade. Mas ao contrário de reputation, que explora os mitos e arquétipos mais exagerados atrás dos quais Taylor já se escondeu, agora ela se envereda por elementos de sua história com muito mais nuance, acolhendo perspectivas que antes seriam impensáveis. Enquanto “cardigan” apresenta temas bem típicos na sua discografia – a história de uma garota que foi traída por seu grande amor de adolescência -, em folklore ela é apenas uma das partes de uma trilogia que engloba também os pontos de vista dos outros envolvidos: em “august”, conhecemos A Outra, Augustine, vítima de um romance de verão que não subiu a serra; já “betty” traz a visão de James, que precisou se perder para então descobrir que era mesmo da Betty que elx gostava.
“A vida não faz sentido narrativo” é sem dúvidas o verso mais impactante do número “The End of the Movie”, de Crazy Ex-Girlfriend, mas não podemos esquecer do resto: “Dizemos a nós mesmos que estamos em um filme, cada um de nós no papel principal, mas a verdade é que às vezes você é protagonista e às vezes você é só um figurante atravessando o cenário.” Assim como nessa minha tradução, nem sempre há sentido ou rima: tudo é uma bagunça e todo mundo morre no final.
Se antes esse tipo de contradição e conflito apareciam nas letras de Taylor Swift de forma fatalista, dramática, e muitas vezes unidimensional, agora ela reconhece que as coisas nunca são tão simples quanto a gente gostaria ou quanto nos dizem que são. Quando você é jovem, eles acham que você não sabe nada: não é como se ela tivesse aprendido isso só agora, aos 30 anos, mas pela primeira vez conseguiu inserir o conflito e as sombras de forma mais direta em suas composições, algo que só foi possível depois de aceitá-las internamente e topar dividir isso com o mundo, com menos urgência em querer agradar. E num movimento que parece ter sido gerado dentro da minha cabeça (O! Segredo! É! Real!), ela escolheu fazer isso justamente em parceria com o The National – primeiro através da escolha de Aaron Dessner para ser seu produtor, e depois recebendo a banda inteira em algumas faixas do evermore. Depois dessa, nem se eu quisesse seria possível me excluir da narrativa que ser fã de Taylor Swift me enfiou.
Nos últimos anos, o The National tem passado pelo seu próprio Processo também. Eles não saíram do bueiro, mas pelo menos abriram a tampa, olharam para cima, ao redor. Já faz um tempo que Matt Berninger escreve com sua esposa, a chiquérrima Carin Besser, e sua perspectiva muitas vezes invade as letras da banda, mas foi só no último lançamento, I Am Easy To Find, que esse outro ponto de vista invadiu de vez o trabalho como um todo através da inserção de uma série de vocais femininos nas faixas. Eu poderia escrever um ensaio sobre a trajetória da masculinidade contemporânea através da discografia do The National, começando com o argumento de que a voz e a figura de Matt Berninger fazem com que todos os sentimentos deselegantes que a banda evoca sejam vistos como aspiracionais com uma certa facilidade. O Processo pode ser muito sexy quando se é um homem branco gostoso de 1,90m que tem suas inseguranças culturalmente fetichizadas, e talvez o grande ponto de ruptura seja o momento em que eles desafiam isso ao inserir vozes de discordância que tiram Berninger do centro daquele universo, revelando o quão patético ele, e tudo que ele representa, pode ser.
Um dos meus versos favoritos da banda diz o seguinte: “I have only two emotions, careful fear and dead devotion, and I can’t get the balance right”. De um jeito estranho, consigo enxergar como a banda e a Taylor Swift sempre se revezaram entre esses dois extremos ao longo de suas carreiras, amarrados por fios invisíveis, os dois sofrendo por não conseguir encontrar o equilíbrio, e acho bonito pensar que o equilíbrio está justamente nesse encontro trazido por folklore e evermore. “tis the damn season” é uma música que soa como The National de uma maneira que chega a ser desconcertante, com uma letra que envolve todos os temas da Taylor Swift – gosto de pensar que ela é o reencontro do casal de “Tim McGraw” vinte anos depois. Já “coney island”, em que ela divide os vocais com Matt Berninger, parece ser uma resposta, o pedido de desculpas que tantas vezes o eu-lírico da cantora desejou em suas trágicas canções de amor, revelando que aquele cara não é tão ruim assim. Conexões assim parecem contrariar a premissa de que a vida não faz sentido narrativo, mas gosto de pensar que eles fazem parte da exceção que confirma a regra. Acho que comigo e com a Clara foi a mesma coisa.
Para reparar um erro irreparável, Briony Tallis escreve um livro. Ao final de Crazy Ex-Girlfriend, Rebecca Bunch decide transportar seus personagens internos para um musical de verdade, que não é muito diferente do que a Taylor Swift faz em folklore e evermore. O drama que ela tanto gosta dá vida a narrativas que funcionam como pequenos contos deliciosos, mas o que faz eles funcionarem de verdade são aqueles mesmos sentimentos deselegantes, o mesmo olhar aguçado para detalhes, padrões e narrativas, que se tornaram mais interessantes agora que ela descobriu que pode fazer o que quiser com eles. Sem eras, sem mitos, com roupas repetidas.
No entanto, elaborar tudo isso através da música, e principalmente de personagens fictícios, sem compromisso nenhum com a realidade, parece uma espécie de trapaça. Se a vida não faz sentido narrativo, qual é o objetivo dessas músicas? O que estou fazendo aqui narrando meu Processo para vocês?
A verdade é que não é possível materializar o caos, nas palavras de Joan Didion, “the shifting phantasmagoria which is our actual experience“. Em vários momentos desse ano a consciência desse vazio fez com que eu sentisse que meu corpo estava prestes a rasgar no meio, como o de um astronauta jogado no espaço sem os trajes certos, se desintegrando diante do vácuo. Mas depois do susto vem aquilo que a gente faz dele, em eterno movimento e construção, e o resultado pode até se parecer com aquilo que fazíamos antes, mas já são homens e montanhas diferentes.
Eu parei de escrever por um tempo e comecei a recorrer a uma série de tarefas que em muitos sentidos se parecem com uma construção coletiva com a própria vida, que aceita todo o mistério e poder que existe nela: o cuidado diário de uma série de plantinhas novas, bolos e pudins crescendo no forno, milímetros de expansão do meu próprio corpo e das minhas articulações adquiridos a cada novo dia iniciado no tapete de yoga. E então, quando me vi de novo em um lugar que parecia impossível de sair sem ter alguma referência, e aquelas que eu tinha antes já não serviam mais, minha terapeuta disse que era hora de escrever novas histórias, retomar o poder.
Na hora eu pensei meu deus que lixo, mas criei esse blog mesmo assim. Talvez nada disso faça sentido para vocês, talvez eu só esteja projetando, mas o que vocês esperavam de uma fã de Taylor Swift?
Hello stranger, como vai você?
Esse texto foi escrito em dezembro de 2020 e publicado originalmente no blog que eu havia acabado de criar. Mas hoje saiu o disco novo do The National, trazendo Taylor Swift como uma das convidadas, e senti que valia a pena recordar essas palavras e deixá-las registradas aqui também.
O nome do disco é First Two Pages of Frankenstein e a
tem essa teoria de que “Anti-Hero”, um dos lançamentos mais recentes da Taylor, nada mais é que sua própria tentativa de reescrever o mito do Prometeu moderno. Nem precisa ler o livro pra entender (eu não li), basta assistir ao clipe. O fato do National trazer a mesma referência no título do álbum torna tudo ainda mais saboroso. Vou ouvir o disco e quem sabe escrevo uma continuação desse texto já que, graças a DEUS, a parceria entre eles não para de render frutos.Espero que gostem dessa piração toda. Feliz lançamento do The National para todos que celebram.
Stay beautiful!
Com carinho,
Anna
amei o texto! o primeiro parágrafo ressoou muito pra mim, exceto que eu geralmente escondo essa parte, sabe, que sou fã de taylor swift. esse dias, inclusive, no aniversário de uma amiga, eu fui apresentada a uma fã e a gente passou um tempão conversando em meio a vários amigos meus que não sabiam que ouvir e acompanhar taylor swift faz parte da minha vida há anos. me senti revelando um segredo enorme e fiquei bastante insegura. engraçado.
eu amo demais esse seu texto e que delícia ler ele de novo