Hello stranger, como vai você?
Me conta, quem era você na escola?
Comecei a assistir Big Little Lies, série nova da HBO (produzida pela companhia da Reese Whiterspoon!) que é meio que uma mistura de The OC com Desperate Housewives se The OC fosse bem escrita e tivesse um elenco tão bom quanto Reese Whiterspoon, Nicole Kidman e Laura Dern. Isso e um assassinato conectando as vidas dessas mães californianas, cujos filhos acabaram de entrar no ensino fundamental da mesma escola, cheias de uns dramas cabeludos e outros cotidianos, mas nem por isso menos cabeludos. A série tá no quarto episódio e já existe muita coisa a ser dita sobre ela, mas o que realmente tem prendido minha atenção é como Big Little Lies me faz acreditar que o que eu vivi na escola, e principalmente no ensino fundamental, foi real.
Minha vida escolar do pré até mais ou menos a sétima série - mas principalmente do pré até a quarta série, quando éramos crianças - foi coisa de filme adolescente e, agora, seriado da HBO. Dramas, picuinhas, crueldade, hierarquia social, pais completamente loucos e envolvidos além da conta no cotidiano da escola. Tenho uma coleção de histórias absurdas e malucas sobre essa época, algumas que eu nem conto pros outros porque tenho medo das pessoas acharem que estou inventando. A única coisa que me faz acreditar que não estou inventando é que ainda tenho amigos dessa época que compartilham essas mesmas lembranças. Eles também estavam lá, vendo e vivendo tudo aquilo, e também foram jogados na areia pela menina que fazia as pessoas competirem pra ver quem ia passar o recreio com ela - e os que não fossem escolhidos eram atirados na areia. Essa é uma dessas histórias que ninguém acredita, e que é a cara de Big Little Lies.
Mas quem eu era na escola? Como um amigo concluiu meio rápido demais, eu era a Amabella, filha da Nicole Kidman: a bobinha que apanha dos outros.
Acho que foi minha amiga Renata que há muito tempo escreveu, ou disse, que em todo lugar existiam as garotas cor-de-rosa. Eu era uma dessas. Não só porque eu gostava de rosa - e olha que passei por uma fase intensa de só. usar. rosa. - mas porque eu era quietinha, delicadinha, caladinha, bobinha, e com 7 anos eu pintava as unhas escondido e juntava moedas pra comprar revistas de moda e ver vestidos lindos. Meus pais me colocaram naquela escola maluca quando eu tinha 6 anos e chegando lá eu era diferente: filha única; ninguém conhecia meus pais (que não eram fazendeiros ricos como boa parte dos pais de lá); era uma escola religiosa e eu não frequentava uma igreja - e portanto não sabia cantar nenhum dos louvores que cantávamos nas aulas de religião, tampouco conhecia as historinhas da Bíblia que todas as outras crianças cresceram ouvindo em escolas dominicais que obviamente não faziam parte da minha vida. Eu não era boa em esportes, inclusive odiava esportes, e cheguei lá sem nunca ter jogado queimada/carimbada na vida, aparentemente a brincadeira mais importante do mundo naquela escola.
Quando cheguei na escola, eu já sabia ler e escrever, mas minha turma ainda estava em fase de alfabetização e as crianças pegavam no meu pé por causa disso. Errava de propósito nos ditados porque me ensinaram a ter vergonha de saber ler e gostar de livros. Eu apareci fantasiada pra uma festa junina para a qual ninguém se fantasiou, com pintinha na cara, chapéu de trancinha e batom vermelho. Eu era uma garota cor-de-rosa que chorava muito, cuja voz quase não saía, e que gostava de esmaltes. Em resumo, eu era uma piada, e nos primeiros anos aquelas crianças me devoraram viva.
O que eu queria, como acredito que toda criança (e, em alguma medida, todo adolescente também) quer, era pertencer, me encaixar, ser normal, sumir no meio dos outros. Estava contando essa história pra Clara e disse que meus pais que me motivavam, dizendo que eu era especial e única, e eles realmente diziam isso, mas a gente nunca confia muito no que os nossos pais dizem, e eu só comecei a acreditar que podia ser legal, especial e única (e que isso era uma coisa boa!) quando conheci a Amanda, minha primeira amiga de verdade.
Amanda também era diferente e inadequada na escola. Se eu era uma garota cor-de-rosa, a Amanda era uma garota roxa, porque rosa seria muito básico pra ela. Nossos interesses estranhos eram parecidos, ela colecionava sapatos de Barbie e amostras de perfume, também odiava esportes, era da mesma turma de balé que eu e me levou pra fazer sapateado. Aos sábados nós íamos na feira perto da casa dela comprar adesivos da Hello Kitty e CDs piratas da Britney Spears, que ouvíamos enquanto pintávamos nossas unhas de glitter. Nós recortávamos revistas pra fazer as nossas próprias revistas, organizamos desfiles de moda para as nossas famílias, começamos um grupo de teatro na escola - do qual fazia parte eu, ela e Anaisa, nossa única outra amiga - em que escrevíamos, produzíamos e encenávamos nossas próprias peças. Meu primeiro blog foi o blog que criamos juntas pra esse grupo de teatro, que se chamava Estúdio A.
Tenho certeza que as pessoas na escola continuavam achando que a gente era uma piada, mas de repente isso não importava mais. De repente a gente parou de pedir pelo amor de Deus pra fazer parte do clubinho dos outros e fundamos nosso próprio clube - que tinha só três pessoas, mas tudo bem, porque aquela era a nossa turma.
Não por coincidência, foi com a Amanda que assisti Legalmente Loira pela primeira vez, filme que revi esse fim de semana e que realmente é um dos grandes responsáveis por formar a pessoa que sou hoje, sem hipérboles ou ironias. Também com a Reese Whiterspoon (que mulher), ele conta a história de Elle Woods, meu primeiro grande role model, uma patricinha que decide estudar Direito em Harvard depois de ser chutada pelo namorado, que disse que ela não era uma pessoa séria o suficiente para ele, que queria ser senador antes dos 30 (kkkkk). Ok, ela entra na faculdade pra se adequar às expectativas do ex-namorado babaca, com um plano inicial de conquistá-lo novamente (o que significa roubá-lo de sua atual noiva), mas o filme desconstrói isso tudo aos pouquinhos. Como escreveu a Fernanda num texto sobre os 15 anos do filme, Elle percebe que "nunca será boa o suficiente para ele não pelo que ela é, mas pelo que ele é – um idiota".
De repente, ela para de pedir pelo amor de Deus pra ele aceitá-la de volta e vai viver sua própria vida, conquistando sucesso na profissão e uma rede de apoio de amigos que estão ali por ela ser exatamente quem ela é. Graças à Elle Woods, e também à minha amiga Amanda, tive o privilégio de aprender muito nova qual era o meu valor, que eu tinha um valor, que eu podia acreditar em mim e que eu não precisava me adequar ao mundo, ser normal ou sumir, mas que eu poderia construir o meu próprio mundo e que isso era muito legal. E eu também coloquei na minha cabeça que ia estudar em Harvard (medicina) (kkkkkkkkkkkkkk) porque é esse tipo de fé em si mesmo e na vida que todo bom filme motivacional deve imprimir em crianças de 9 anos de idade.
Citando a Fer de novo,
A capa do DVD traz uma tagline que até hoje não sei dizer se se propõe a ser engraçada, mas levando a mensagem do próprio filme a sério, ou irônica: “pelos direitos das patricinhas”, diz. Mas Legalmente Loira me pareceu ser sobre mais do que isso. Não é pelos direitos das “patricinhas”, uma palavra que hoje parece muito datada, mas pelo direito de ser quem você é.
Tenho consciência que existe uma enorme carga de privilégios que permitem que Legalmente Loira, um filme cheio de garotas, hm, loiras, seja o filme com o qual eu me identifiquei, o filme que tenha me eMpOdErAdO e que pra muitas, muitas pessoas ele continua a não dizer nada, porque não diz mesmo. O que vivi na escola não chega perto de uma opressão que impede tanta gente de ser quem é com liberdade, leveza e segurança, e também de enxergar o seu próprio valor. É um drama de gente branca, mas é o meu drama, e tenho consciência disso enquanto escrevo essa história. Isso só reforça a importância de termos representações diversas, porque somos muitos e muitas, e merecemos modelos que se encaixem às nossas histórias. Revendo o filme e pensando sobre a Elle, vejo como a mensagem dela me tocou tão fundo, tão nova, e os ecos disso na minha vida até hoje.
Lendo histórias sobre o processo de desconstrução que muitas mulheres passam quando descobrem o feminismo, percebo que passei reto por um monte de ideias tóxicas e muito disso é graças ao que aprendi nesse filme e com as minhas amigas de infância. Porque eu fui vítima da rivalidade de perto (e fui literalmente jogada na areia pela menina popular que não me achava boa o suficiente pra passar o recreio com ela), mas fui salva disso por duas garotas que por muito tempo foram meu mundo, e nós nunca competimos, nem quando gostamos do mesmo garoto. Porque ainda que códigos tradicionais de feminilidade sejam opressivos pra muitas mulheres, eles eram (e ainda são) parte importante da minha identidade, eram coisas que me faziam (e fazem) feliz, e eu nunca acreditei que eles me faziam fraca, fútil ou inferior. Porque eu já estive em meios masculinos, e às vezes batia a insegurança de querer a aprovação deles, e apesar de alguns conflitos (porque a adolescência bate pra todos) internos eu nunca realmente quis ser uma dos caras e abandonar esse lado ~BUBBLY~ da minha personalidade, dos meus gostos e do meu jeito. Eu sabia que não era pior que ninguém por ser uma garota.
E sei que é um longo caminho que a gente precisa percorrer pra acreditar na gente desse tanto, é um exercício diário de afirmação que não acaba nunca, porque a insegurança não tira férias (nem dorme muito à noite quando se é uma pessoa ansiosa), mas, de novo, reconheço o privilégio que foi descobrir essas coisas tão nova e começar tão cedo a acreditar que tudo bem eu ser do meu jeito.
Anaisa é uma das minhas melhores amigas até hoje, mas eu e Amanda começamos a nos afastar por volta dos 12 anos. Quem conheceu a gente às vezes me pergunta como, ou acha isso estranho, mas foi um processo natural e sem sofrimento. Pensando sobre isso agora, vejo que nós não apenas crescemos e descobrimos interesses diferentes, começamos a querer coisas diferentes para as nossas vidas, coisas que nos afastavam uma da outra de forma prática e também subjetiva. O que hoje eu vejo é que pra continuar sendo amiga dela eu teria que me adequar, e vice-versa, e nós duas aprendemos juntas, talvez muito antes de realmente aprendermos e entendermos isso de verdade, que esse tipo de adequação nunca é o caminho, e então acabou. Fico feliz por nós duas.
Enfim, se você estiver num dia/semana/vida meio bosta precisando de algo motivacional que te faça querer ser a melhor, provar seu valor e deixar os outros olhando com cara de bobos, veja Legalmente Loira, sempre. E também Big Little Lies, só porque é muito ótimo e eu quero conversar sobre isso com o máximo de pessoas possível. Também veja Parks and Recreation, porque é a melhor série, tem tudo a ver com isso, e faz muito tempo que eu não digo que você precisa ver Parks and Recreation.
Não achei um gancho pra colocar esse gif, então fica a motivação da semana: única resposta possível pra todas as pessoas que duvidam que você é capaz de fazer alguma coisa:
Música da Semana
Liability (Lorde): Música, e não disco, Lorde, porque lógico. Alguém saiu inteiro depois dessa? Eu já tinha adorado Green Light, mas Liability foi todo um outro nível de amor, sofrimento, e identificação num nível espiritual que me fez escrever e-mails enormes sobre sentimentos até de repente estar chorando na mesa de trabalho. Essa música tem muito a ver com a temática ~*identidade*~ da edição de hoje porque mostra um outro lado de sermos radicalmente quem somos: isso pode acabar sendo demais pra muita gente, e nada garante que, sendo quem somos, não seremos também um bocado mais sozinhas. Vou deixar essa questão no ar.
A Milena escreveu um texto lindíssimo sobre a música, e também sobre Warsan Shire, e as mulheres difíceis de amar, não deixem de prestigiar.
Links, Links, Links
- Semana passada tivemos o dia da mulher, que desde que me aproximei do feminismo sempre foi um dos piores dias do ano pela quantidade de merda que a gente é obrigada a ler e ouvir por aí. Fui surpreendida esse ano: acho que todo mundo está tão de saco cheio de vibes negativas, de falar de problemas, de apontar erros que rolou meio que um pacto coletivo - pelo menos na minha bolha da internet - de só celebrar e falar de coisas boas. Mulheres celebrando mulheres, a gente se dando força, sendo fãs públicas das amigas e de desconhecidas incríveis que gostaríamos de transformar em amigas. Foi um dia bom com energia legal, podia ser assim sempre.
Lá no Valkirias, nos juntamos a um grupo de sites para promover a Ação Nerd Feminista e, pensando nela, tivemos alguns posts especiais na última semana:
Let's get information: 9 livros sobre feminismo para iniciantes (por yours truly);
- Assisti Logan no fim de semana e amei demais, me fez pensar por que passei tanto tempo nutrindo ÓDIO pelos filmes solo do Wolverine - ou na verdade mostrou exatamente por que tive raiva daqueles filmes: no fundo, eu sabia que eles poderiam ser tão mais incríveis, tão incrível como Logan é. Esse texto da Sofia sobre o limite físico dos super-heróis, um dos pontos que mais me tocou no filme, traduz bastante minha experiência assistindo ao filme.
(Me perdoem por ser viciada no meu próprio site, mas é que quando falta tempo o trabalho de editora se mistura com o lazer, e eu realmente tenho um puta orgulho do conteúdo que publicamos todo dia)
- 30 escritoras compartilharam os livros mais transformadores que elas leram quando tinha 20 anos: uma lista bem legal e diversa da Nylon com recomendações que fogem das figuras carimbadas desse tipo de lista e traz um contexto muito bacana e interessante por trás de cada indicação das escritoras. Acho que se fosse indicar uma leitura pra uma lista dessas hoje falaria sobre Amanda Palmer e A Arte de Pedir, e você?
- Por que a síndrome da impostora continua atormentando as mulheres? - Já li bastante sobre a síndrome do impostor (e esse é um dos meus temas favoritos e mais recorrentes), mas essa matéria do El País foi a primeira que vi a tratar do assunto como algo especificamente feminino, uma questão de gênero, a síndrome da impostorA - o que, quando a gente para pra pensar, tem tudo a ver com o problema.
- Não escuto muitos podcasts porque acho difícil conciliar o hábito na minha rotina, às vezes demoro dias ouvindo um único episódio, que foi o que aconteceu com o Um Milkshake Chamado Wanda da semana passada, que, pra quem não conhece, é o podcast do Papel Pop. Ele é bem longo, então só escuto quando curto muito o convidado da semana, que dessa vez foi a Tchulim, uma das minhas ídolas da internet. No podcast eles basicamente passam duas horas falando merda, rindo e comentando os acontecimentos da semana (e respondendo cartinhas com conselhos!) e sei lá por que, mas ri tanto que cheguei a gargalhar almoçando sozinha no self-service enquanto escutava. Fica a dica pra quem gosta de umas bobajadas despretensiosas (meus outros episódios favoritos são com a Jana Rosa e a Manu Barem, minhas outras ídolas da internet).
- O NYT fez um especial MUITO legal com uma lista de 25 músicas que dizem pra onde a Música está indo atualmente. Tem coisas bem bacanas e diferentes, com textos ótimos de pessoas igualmente bacanas e diferentes falando sobre suas escolhas e o que elas querem dizer sobre o futuro para o qual estamos caminhando rápido demais. O texto que abre a reportagem também é muito bom, uma das melhores coisas que eu li explicando como e por que identidade é o que melhor define nossa produção cultural atual. Vale muito a pena tirar um tempinho para ler e ouvir tudo com atenção (ainda estou fazendo isso!).
This is what we talk about now, the music-makers and the music-listeners both. Not the fine details of genre and style — everyone, allegedly, listens to everything now — but the networks of identity that float within them. Maybe decades ago you could aim your songs at a mass market, but music does not really have one of those anymore. Artists have to figure out whom they’re speaking to and where they’re speaking from. The rest of us do the same. For better or worse, it’s all identity now.
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Se quiser, me responda esse e-mail contando qual filme formou seu caráter ainda na infância/início da adolescência e é um dos responsáveis por você ser quem é, vou adorar saber. Além de Legalmente Loira, minha lista também tem Anastasia e Crossroads.
Espero que seja uma boa semana e que possamos passar por ela tal qual essas galinhas de Boston: de suéter por conta da frente fria (obrigada pelo link, Anaís!):
Stay beautiful!
Yours truly,
Anna Vitória
Sempre que quiser, responda essa newsletter como um e-mail normal e escreva para mim, vamos continuar conversando depois que o sinal bater.
Twitter * Instagram * Valkirias