Hello stranger, como vai você?
Semana passada eu estava no ônibus quando o aleatório do Spotify começou a tocar Elephant Gun, do Beirut, uma música que eu não ouvia há muito tempo e que sempre passo muito tempo sem ouvir, mas toda vez que escuto queria que ela não tivesse ficado tão famosa. Teve um tempo que ela tocou tanto, em todos os lugares, o tempo inteiro, que agora fica fácil esquecer de como ela é bonita. Foi exatamente por isso que salvei na biblioteca do celular: pra que ela começasse a tocar de repente e eu lembrasse como é bonita.
Lembro de estar uma festa no Rio de Janeiro e Elephant Gun começar a tocar, o tipo de festa em que essa música tocando às três e pouco da manhã fazia sentido mesmo sem fazer. Eu e minhas amigas começamos a fazer uma ciranda e rodopiar que nem fadas, e nós girávamos, e ríamos, e as pessoas começaram a parar pra ver a gente dançar. Eu estava tão feliz -- embrigada, é verdade, mas principalmente inebriada por aquele momento perfeito, apaixonada por ele, e por mim, e pelas amigas que estavam comigo naquela noite, por aquela cidade que eu amava tanto, pela promessa perfeita dos próximos dias, e por aquela música que eu nunca tinha reparado como era bonita. Eu tinha vinte anos.
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Para gostar de Melodrama, o novo disco da Lorde, é preciso ter, ou já ter tido, 20 anos. Ou 19, idade dela quando escreveu as músicas. Ou qualquer idade que tenha te levado a um desses momentos - ou lugares - perfeitos. Quando as pessoas falam sobre voltar para alguma fase específica da vida, sempre digo que queria ter 20 anos de novo: livre das inseguranças e bloqueios da adolescência, independente o suficiente pra viver e fazer as coisas que eu quisesse sem ter que pedir permissão, mas não dona da minha vida o bastante pra ter que me preocupar de verdade com ela. Passei a maior parte da adolescência trancada no quarto vendo filmes em preto e branco, lendo livros pedantes e me achando muito melhor que aquelas pessoas da minha idade que precisavam ficar bem loucas pra se divertir. A verdade é que eu estava assustada, era obcecada por controle, e não sabia muito bem lidar comigo mesma, menos ainda com os outros. Lembro de estar no telefone com minha melhor amiga da escola na véspera do meu primeiro dia de aula na faculdade e confessar que eu estava com medo das pessoas, de não saber me comportar naquele novo ambiente de liberdade onde tudo era permitido.
O que me incomodava, e ainda incomoda, em festas é a forma como tudo muda a partir de determinado momento: é como se ocorresse um shift de energia que deixa tudo, e principalmente todos, diferentes -- nem sempre de um jeito legal. É quando as pessoas ficam oficialmente muito bêbadas e muito chapadas e todos os dramas acontecem. All the glamour, and the trauma, and the fucking melodrama. Para quem era uma pessoa completamente sóbria até os 20 anos, estar presente nesses momentos era um pouco intenso demais de um jeito ruim. A Clara disse que isso tem a ver com a energia netuniana (tm) do meu signo, que faz de mim essa esponja que absorve a energia das pessoas e dos lugares, e a verdade é que essa energia na maioria das vezes não é legal. Sóbria, você vê coisas, e vê as pessoas de uma forma como elas não são normalmente, numa outra versão que nem sempre é boa e que você preferia não conhecer. Eu me sentia terrivelmente sozinha e inadequada, e acabava indo embora sem falar com ninguém. What the fuck are perfect places, anyway?
Demorou mais de um ano pra que eu me sentisse segura e confortável o suficiente pra vida de rolezeira e por uma breve janela de tempo entre meus 19 e 20 anos vivi uma fase de juventude, energia, festas, madrugadas, shows, bebida, viagens. Colocando dessa forma parece que o álcool é uma parte indissociável dessas experiências, mas é muito mais sobre pessoas, energia e sintonia, principalmente pessoas. A verdade é que eu só comecei a beber quando me vi cercada de pessoas com quem eu me sentia segura o suficiente pra abrir mão de um pouquinho daquele controle por tantos anos obsessivamente cultivado, num ambiente com uma energia que não me ameaçava, compartilhando de uma sintonia que embora não impedisse que aquele shift de energia acontecesse, nos punha naqueles lugares perfeitos de felicidade onde era possível ignorar o resto e viver o momento. Algumas dessas noites foram vividas de forma completamente sóbria e na maioria das outras era bem mais sobre acreditar estar mais bêbada do que eu realmente estava e então ter uma licença poética para fazer o que dava vontade, sem pensar e sentir culpa ou vergonha alguma.
Lembro de uma noite estar beijando um cara desconhecido do lado de fora de uma festa, de borrar todo o rosto e a camisa branca dele com meu batom vermelho, me sujar por tabela, arrebentar meu colar, e nada disso fazer com que eu sentisse vergonha, vontade de fugir ou pedir desculpas. I know that you're not my type, still I fall. Era engraçado, divertido e mágico, sem traço algum de ansiedade, e hoje sei que tenho uma resistência alcoólica imensa, então não foi aquela única caipirinha que tomei que fez tudo isso. Era sobre controle e coragem de perdê-lo, o meu melodrama pessoal. Não preciso de mais do que duas mãos pra contar quantas noites foram essas - ainda estamos falando de mim - mas elas fizeram parte de um processo muito mais longo e complicado de confrontar sentimentos duros que a gente evita por um motivo. A Lorde fala sobre a geração l.o.v.e.l.e.s.s., que fode com a cabeça e o coração dos outros, e a verdade é que nunca me engajei nesse tipo drama - embora tenha visto acontecer, e muito, ao meu redor - mas vivi tudo isso dentro de mim, me confrontando com coisas há muito abafadas, me forçando a foder minha própria cabeça e coração pra tentar colocá-los no lugar e me sentir mais como uma pessoa de verdade. Megaphone to my chest.
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Coincidentemente, foi nesse período que saiu o Pure Heroine, primeiro disco da Lorde. Eu tinha 20 anos quando me apaixonei por ele, e aquelas músicas sempre vão ser trilha sonora desses momentos, das noites mágicas e da montanha-russa de sentimentos complicados. Sharing beds like little kids we'll laugh until our ribs get tough and that will never be enough. Hiding that I'm terrified but this is summer. Let 'em talk cause we're dancing in this world alone. É um disco sobre adolescência, a maneira que a Lorde encontrou de capturar e prender sua adolescência numa redoma; eu brincava que estava vivendo uma adolescência tardia porque foi também nesse período que fiz um piercing no nariz, pintei as pontas do cabelo de rosa e comecei a ouvir One Direction e Taylor Swift feito uma maluca. Em seu texto sobre Melodrama, a Barbie escreveu uma coisa interessante: a diferença dele para o Pure Heroine é que antes a Lorde se colocava mais como espectadora daquelas situações, agora ela é agente. Comigo é o contrário.
Foi impossível ouvir o Melodrama sem sentir um distanciamento imenso de tempo e idade. Como escreveu a Clara, o disco me lembrou que a Lorde continua sendo uma garota que fez 20 anos no fim do ano passado. Parece ridículo da minha parte, do alto da minha sabedoria dos 23 (kkkk), achar tão enorme o abismo que separa quem eu era aos 20 de quem eu sou agora, mas aconteceram coisas o suficiente nesses três anos para que eu olhe para esse período como se fosse outra vida e eu fosse outra pessoa agora -- um processo que acredito que vai se repetir pelo resto da minha vida, porque isso é crescer e ainda bem que acontece. Essa pessoa que hoje olha no espelho e diz pra si mesma que vai ficar tudo bem, você consegue, para de chorar e que de fato para de chorar e consegue seguir em frente não existiria se eu não tivesse me permitido viver meu melodrama há uns anos atrás. Não é como se todas as crises e todos os dramas tivessem acabado, mas hoje é mais fácil sofrer e chorar e me desesperar por dois dias, duas semanas ou dois meses sabendo que uma hora aquilo também vai passar. É muito difícil, mas tem sido cada vez mais fácil. Melodrama é cheio de uma urgência e de uma bagunça que eu não tenho mais. E tudo bem.
Gosto de pensar no legado que essa fase deixou, o qual eu vivo agora. Essa newsletter, por exemplo, só existe por conta dessa descarga de sentimentos e obsessão por vulnerabilidade: Broadcast the boom boom boom boom and make 'em all dance to it.
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Não escuto outra coisa desde quarta-feira e todos os dias descubro formas novas e diferentes de amar o álbum, mas pra mim com exceção de Liability e Writer in The Dark Melodrama é um disco sobre memória. Ainda que nossa cabeça tenha uma tendência a transformar as memórias num supercut de melhores momentos, o álbum é presente não só nos seus tempos verbais, mas também na forma como não deixa de capturar as partes menos bonitas dessas aventuras, os shifts de energia que nos transformam em versões um pouco piores de nós mesmos, o chão que fica desastrosamente nojento, cheio de cacos de vidro e restos de bebida, depois de todas as festas. É o que nos aproxima dele, independente da idade ou da fase da vida em que estamos vivendo. Diz muito sobre a competência da Lorde enquanto artista conseguir captar tão bem essas ambiguidades em letras que constroem momentos ao mesmo tempo fascinantes e dolorosos. Seria muito mais fácil escrever apenas sobre as luzes brilhantes dessas noitadas e ninguém pensaria menos dela por isso.
Apesar do distanciamento, Melodrama pra mim foi vívido como ouvir Elephant Gun e lembrar de estar rodopiando no Rio de Janeiro, e seus hard feelings me levam de volta para os momentos que vieram antes e depois daquelas festas perfeitas, que me levaram a elas em primeiro lugar. Talvez por isso ele seja tão intenso e fresco, porque talvez exista algo nesse período da vida que faz você acreditar que aquela fase vai ser pra sempre, e ele capta isso tão bem que nos seus 41 minutos de duração o disco é mesmo Eterno Enquanto Dura. É um elemento essencial da experiência de ser muito, muito jovem, uma das coisas que faz com que tudo isso seja tão mágico, o que me deixa com uma saudade que me faz desejar ter 20 anos de novo - só para acreditar de novo que lá na frente a única coisa que espera por mim é uma luz verde cheia de promessas.
Então o disco acaba, e eu lembro que as fases passam, as coisas mudam, e não existe luz verde alguma, e a gente cresce e, quanto mais eu cresço, mais eu me encho daquela petulância da maturidade que acredita que nunca soube tanto da vida como agora, e acho isso o máximo. Não é arrogância, é a paz de espírito que tenho aprendido a cultivar no lugar de controle, porque controle é uma mentira e foi isso que aprendi nas minhas noites melodrama. Ouço o disco como espectadora das minhas próprias lembranças e me acalmo quando penso que lá na frente eu também vou saber muito mais do que sei agora. Os dramas e crises de agora não vão passar de uma luz estroboscópica piscando frenética, lá longe, no passado. Down the back, but who cares? Still the Louvre.
Disco da Semana
Melodrama (Lorde):
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Músicas favoritas: todas, mas especialmente Liability, The Louvre, Writer in the Dark, Hard Feelings/Loveless e Supercut.
Links, Links, Links
- Melodrama: sentindo demais na loveless generation;
- A segunda parte do Rookie Podcast com a entrevista enorme e maravilhosa da Tavi com a Lorde;
- Melodrama foi Best New Music na Pitchfork e ganhou uma crítica linda-linda;
- Esse papo de festas, álcool e energia me lembrou desse vídeo em que a Lucy Moon conversa com a Hannah Witton sobre seu problema com álcool;
- Por conta do dia dos namorados, escrevi no Valkirias sobre por que Crazy Ex-Girlfriend é a comédia romântica do futuro e tivemos vários outros textos bacanas rondando o tema na nossa segunda Semana do Amor;
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Desde a última edição tivemos vários assinantes novos por conta da indicação da querida Nath, da drops, uma das minhas newsletters do coração. Para quem chegou agora olá olá, meu nome é Anna Vitória e essa edição resume bem o espírito deste espaço: uso cultura pop para falar sobre sentimentos e dar vazão às minhas obsessões pessoais. Uma delas, inclusive, é Harry Styles e estou nesse momento esperando para comprar ingressos para o show dele no Brasil ano que vem. Na próxima edição saberemos se consegui ou não, e no momento estou a beira de um colapso nervoso. Bom dia e boa semana, torçam por mim?
Stay beautiful!
Yours truly,
Anna Vitória
Sempre que quiser, responda essa newsletter como um e-mail normal e escreva para mim, vamos continuar conversando depois que o sinal bater.
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