(Reparei que não faz muito sentido começar a newsletter com uma saudação uma vez que sempre pulo direto pro texto, que raramente se estrutura formalmente como uma carta para alguém - tiraria zero se fosse no vestibular. Mas toda vez que ameaço iniciar uma edição sem nosso já tradicional hello stranger me sinto estranha, parece que fica faltando alguma coisa ou que estou entrando na casa de alguém sem bater, já despejando minhas bobagens sem muita cerimônia. Embora seja exatamente isso que tenho feito na caixa de entrada de vocês a cada quinze dias há mais de um ano (!), ele pelo menos ajuda a disfarçar, como alguém que limpa os pés antes de entrar ou traz um bolo pro lanche da tarde. Sendo assim, se estiver tudo bem pra vocês, vou continuar com ele.)
Hello stranger, como vai você?
(kkkk)
Aconteceu de repente, no susto, sem que eu planejasse, sem que me desse conta do que estava fazendo. Quando o garçom chegou pra anotar o pedido, eu disse:
- Uma água com gás, por favor.
Me arrependi na hora. Eu nunca tinha pedido uma água com gás antes. Até pouquíssimo tempo atrás eu odiava água com gás; pensar em água com gás me embrulhava o estômago, preferia ficar com sede se ela fosse a única opção. Até hoje minha cara queima de vergonha lembrando do dia que estava acompanhando meu antigo chefe numa reunião no centro da cidade, num dia terrível de quente, ele chegou com uma garrafa de água com gás pra mim trincando de gelada ("trouxe com gás porque é mais refrescante", ele disse, e meses depois fui obrigada a concordar) e tive que recusar, porque ser indelicada desse jeito ainda era melhor do que a cara de nojo involuntária que não conseguiria disfarçar se inventasse de dar golinhos naquela água.
Mas aí não sei por que comecei a sempre tomar aquele shot de água com gás que costuma acompanhar os cafés e percebi que aquilo era o complemento perfeito ao meu clássico café forte (mais sobre isso adiante) com docinho. Às vezes me pegava pedindo um gole da água com gás de outras pessoas, normalmente porque fazia calor e ela sempre parece tão gelada. Um dia alguém perguntou se eu queria um copo pra mim e eu aceitei. E um dia eu fui lá e pedi uma água com gás pra mim.
Fiquei morrendo de medo de achar ruim, tipo quando a gente pede um drink da moda pra se sentir cool mas aí acha horrível, como no dia que inventei de tomar o apperolzinho (tm) que vocês amam e senti um retrogosto de morte e veneno de barata (mas me obriguei a tomar até o fim porque custou R$25 e eu também odeio admitir que escolhi o drink errado). Com a água com gás não foi assim. Era (de novo) um dia muito quente, eu queria tomar algo muito gelado, daquele gelado que água sozinha não consegue ser, o típico dia quente que grita por uma Coca-Cola, o dia que justifica toda a existência da Coca-Cola... mas eu já não tomava refrigerante há um tempo, sabia que ia me sentir mal em poucos minutos, então torci pra que a água com gás desse conta do serviço.
Long story short: amei, tomei tudo, e agora peço uma água com gás em quase todas as vezes que saio de casa.
Gostar de água com gás aconteceu na minha vida mais ou menos como a vida adulta tem acontecido: um dia eu acordo e percebo que alguma coisa mudou. Quando tinha a minha idade o Antonio Prata escreveu uma crônica chamada Adulterado em que ele fala sobre esse fenômeno: "Oi. Meu nome é Antonio Prata, tenho 23 anos e algo estranhíssimo aconteceu comigo: me transformei num adulto. Deve ter sido na calada da noite, enquanto dormia, pois confesso que não percebi nada.". Algumas mudanças são grandes, partes de um processo que, quando paro pra pensar, percebo que vinham acontecendo há mais tempo do que eu imaginava; mas também tem as mudanças bestas, tipo gostar de água com gás, café sem açúcar e acordar cedo por livre e espontânea vontade. Tenho me amarrado nesse processo, mas isso não torna as coisas mais fáceis.
Me tornar adulta tem sido difícil e doloroso, como deve ser, e percebo que minha geração tem sofrido especialmente com isso, o que também faz sentido. Fomos educados e preparados para encarar um mundo que está se desfazendo e não se comporta da maneira como esperávamos, as ferramentas que nossos pais, nossa escola e nossa faculdade nos deram não têm muita utilidade e encontram cada vez menos espaço para serem usadas. Ao mesmo tempo, simultaneamente, nossa experiência nesse mundo em transição nos formou de um jeito que não bate com a lógica das grandes instituições, estruturas e ideias do mundão lá fora, que ainda nos cobra um espírito e ideais que já não fazem sentido pra muitos de nós. Dá pra entender o desencontro, o desencanto e toda a confusão que sentimos.
Ser adulto é difícil pra todo mundo porque é o momento que começamos a nos construir por conta própria, com tudo que tem de legal e horrível nisso, uma tarefa que se torna ainda mais complicada quando ainda precisamos construir o mundo em que vamos viver (e aqui falo de coisas grandes, como sistemas econômicos, políticos e novas configurações sociais) sobrevivendo no mundo antigo que, embora aos pedaços, ainda é o chão onde pisamos. A conclusão de sempre é (repitam comigo): Ser Sujeito Histórico e Transitório é uma Merda, um projeto meu e de Clara Browne. A única parte mais ou menos boa é que somos a primeira geração que tem tempo (acho que já é consenso que quase ninguém vai ter as coisas resolvidas antes dos 30, né?) e espaço (olá internet!) para pensar sobre isso tudo, dar uma sofridinha coletiva e trocar palavras de afirmação.
Apesar de tudo isso, como colocou de forma perfeita minha amiga e profeta Laura Máximo, ser adulta é a realização de um sonho pra mim. Eu odiava ser criança. Primeiro porque fui uma criança com um transtorno de ansiedade não diagnosticado, o que significa que passei boa parte da minha infância sofrendo com um medo e uma angústia enormes sem nem sequer entender de onde vinham todas essas coisas, tampouco o que fazer com elas ou como falar sobre isso com as pessoas, já que ninguém leva criança a sério. Quando se é criança você não tem autonomia pra nada, não pode fazer as coisas do seu jeito e precisa ir com a sua mãe em todos os lugares. Aí você chega na adolescência e continua tendo uma vida mais ou menos limitada, tendo que pedir dinheiro, autorização e carona pra tudo, e todas as coisas que você quer fazer do seu jeito ainda são condicionadas a uma necessidade aterradora de se afirmar, impressionar os outros e ser LEGAL a partir de um referencial bem questionável do que o que de fato significa ser legal -- tudo isso enquanto assiste aulas de física e sobrevive a cortes de cabelo horríveis.
Aí um belo dia eu acordei adulta e meus problemas acabaram. Quer dizer, eles foram substituídos por novos problemas, problemas bem mais difíceis, mas pelo menos eu estou no controle e agora posso beber. E quando você chega no controle você descobre que não tem controle sobre nada nessa vida e vamos todos morrer mesmo, o que só torna mais especial cada oportunidade que a gente tem de tomar nossas decisões (e uns drinks) e fazer as coisas do nosso jeito, sejam coisas grandes ou coisas bestas, e fica bem mais fácil identificar o que não importa e o que a gente pode deixar pra lá.
No início do mês minha mãe viajou de férias e fiquei vários dias sozinha e minha primeira reação foi ficar feliz porque poderia arrumar a cozinha do meu jeito. Minha mãe viaja bastante e estou acostumada a ficar sozinha, mas acho que foi a primeira vez que vivi isso como uma pessoa que sai pra trabalhar todos os dias, chega em casa, passeia com o cachorro, molha as plantas, varre a casa e faz um macarrãozinho com salada pra jantar e ir dormir cedo. Antes eu pedia delivery todos os dias, ficava o máximo de tempo possível no sofá ou na minha cama, com o computador no colo, e deixava pra arrumar a casa só na véspera da chegada da minha mãe. Não é como se eu tivesse decidido mudar de repente, foi algo que aconteceu na calada da noite e me pegou de surpresa.
No sábado, chamei meus amigos para jantar em casa. Fiz uma enorme faxina durante a tarde, fui no supermercado cheia de razão com uma lista e minhas ecobags, comprei vinho, flores e carne (é adulto d+++ comprar carne), cozinhei (e consegui fazer com que tudo ficasse pronto ao mesmo tempo!), e limpei toda a cozinha antes de dormir, pensando na alegria que ia sentir no dia seguinte quando acordasse e a louça estivesse lavada. Depois que todo mundo foi embora ainda tomei o resto do vinho com um pouco de sorvete vendo um episodiozinho de Mad Men me sentindo muito a minha heroína.
Acho que sempre tive vocação pra ser independente e cuidar de mim (minha mãe conta que chorou num domingo que ela e meu pai perderam a hora e quando acordaram viram que eu tinha subido num banquinho pra alcançar o Nescau no armário, fiz meu próprio leite com chocolate, e estava bem quietinha vendo televisão esperando os dois; eu devia ter uns quatro anos) e é muito bom finalmente ter a chance de fazer isso nos meus termos e ainda salvar o (meu) mundo no final. Meu amigo disse que eu cozinhava com muita calma e isso me fez tão feliz, porque é em busca desse estado de serenidade que tento ser uma pessoa melhor todos os dias, a calma no olhar da pessoa que está com três panelas no fogo e uma carne no forno, quatro amigos espremidos na cozinha, dando uma reboladinha com a música, rindo da conversa que está rolando, tudo isso sem deixar o arroz queimar.
Ser adulta é muito difícil, eu não vim aqui dizer o contrário ou tentar seduzir vocês com a ideia de uma vida sem hora de voltar pra casa, passeios pela seção de vinho do supermercado e a possibilidade de andar sem roupa em casa. Às vezes tudo que eu queria era poder ligar pro meu pai e pedir pra ele me buscar de carro em algum lugar, igual ele fazia quando eu tinha 13 anos, só porque estou muito cansada. Esses dias tomei uma lambada violenta da vida adulta e minha reação foi assistir De Repente 30 e Operação Cupido na sequência, e quando minha mãe perguntou o que eu tinha feito fui obrigada a dizer que tinha passado a tarde chorando e vendo filmes, sentindo uma pena ridícula de mim. A parte boa é saber que isso passa; os problemas continuam, os problemas sempre continuam, mas crescer é ter a chance de aprender com nossos tombos (já queimei o arroz várias vezes) e todo dia ficarmos um pouquinho melhores nisso, pra pelo menos não cometer os mesmos erros.
Aí um dia a gente acorda e percebe que está diferente, como num passe de mágica -- ela disse, e tomou um gole de água com gás.
Coisas que a vida adulta me fez gostar
Água com gás, vide texto acima;
Abobrinha, porque todos sabem que a alegria do frequentador de self-service é a farofa de abobrinha e ovo;
Café sem açúcar: o café da firma é ruim, adoçado fica pior, você precisa tomar café, você começa a tomar café sem açúcar com um chocolate, tá ficando caro comprar tanto chocolate, você começa a tomar café sem açúcar e sem chocolate e quando viu já foi;
Funk, porque graças a Deus você não é mais adolescente e não precisa odiar tudo (e MC Kevinho é bom demais);
Mensagens de tia no ZAP, porque desejar bom dia é tudo de bom;
ALCOOIS variados: o dia mais triste da minha vida foi quando contei pra minha prima bebê unicórnio de 13 anos que quando se é adulto você só tira férias uma vez por ano (com sorte) e precisei lidar o rasgo no véu da ilusão dela, de modo que sabiamente concluí dizendo "é por isso que adultos podem beber", posicionamento que ainda sustento.
Faxina, principalmente se você for desgraçadinha da cabeça igual e precisa de um trabalho braçal e esforço contínuo pra parar de pensar bobagem, organizar as ideias e get your shit together (também dá pra se atualizar nos podcasts e fogão limpo é meu maior fetiche);
Disco da Semana
Wonderful Wonderful (The Killers): MEU KILLERS TÁ VIVOOOOOOOOOOOOOOOO - é assim que os jovens falam? Pois bem. Meninas, meu Killers está vivo. Depois de alguns anos e alguns discos meio fora se sintonia e sem saber que rumo seguir, nossos mocinhos de Las Vegas encontraram seu rumo e descobriram para onde queriam ir no meio da bagunça de sintetizadores que batiam no coração do Brandon com a história que a banda vinha construindo desde então. E eu, que cheguei a pensar que a banda tinha colocado a viola no saco, só precisei ouvir Wonderful Wonderful uma vez pra já querer arrombar os portões do Lollapalooza pra poder ver bem de pertinho quando o Brandon cantar essas músicas sentindo horrores e batendo no peito do jeito que a moçada gosta (marcas, gostaria de manifestar desde já meu desejo de prestigiar o Lollapalooza). Lambadinhas deliciosas, música pra ouvir na estrada com os vidros abertos, farofa da melhor qualidade. Maravilha, maravilha.
Músicas favoritas: Wonderful Wonderful, The Man, Life to Come, Run for Cover, Tyson vs Douglas e The Calling
Já sonhaste com este homem???
Links, Links, Links
- Inauguramos uma seção de entrevistas no Valkirias, algo que quero fazer desde o site surgiu, e foi muito especial poder iniciar esse novo espaço entrevistando junto com a Clara a Kathryn Ormsbee, autora de Tash e Tolstói, num papo muito legal mesmo sobre assexualidade, adolescência e encontrar sua voz num mundo saturado de sexo (e Anna Karienina, claro!). Aprendi muito em todo esse processo e o resultado ficou bem top - prestigiem;
- Taylor Swift contra o mundo: antes tarde do que nunca, não poderia deixar de divulgar aqui a análise brilhante que a Clara fez de Look What You Made Me Do;
- O poder de um nome: texto importante da Odhara sobre o perigo de banalizar expressões como "discurso de ódio" ou sobre como chamar a Taylor Swift de nazista não é uma piada engraçada quando se tem nazistas de verdade marchando por aí;
- Indico sempre o conteúdo do meu prestigiado website aqui porque adoro editar um site que tem exatamente o conteúdo que eu gosto de ler na internet. Passado o Emmy (e que Emmy!), vou deixar aqui o que já publicamos sobre as queridinhas da noite Big Little Lies, The Handmaid's Tale, Master of None, Feud e This Is Us;
- Donald Glover, the only dressed man in Hollywood: numa edição do Emmy em que os homens pareciam acuados (kkkk) diante do reconhecimento de tantas histórias que giram em torno, basicamente, de como homens são horríveis, Donald Glover surge de usando um terno roxo Gucci vibrante pois não é homem de se esconder - graças a Deus!
- Como age, pensa e o que é uma mulher: apesar de sua fama, nunca tive vontade de ler Angélica Freitas até chegar a essa reportagem sobre a autora através da newsletter da Stephanie Borges e ficar prontamente obcecada. O texto da Adelaide Ivánova, que sou fã há tempos, é maravilhoso do tipo que faz a gente sentir inveja por saber que nunca vai escrever algo assim, mas é bom principalmente porque a gente termina amando uma autora e um livro que nem sequer conhecemos;
- Como o Criança Viada virou militância, motivo de histeria reacionária e crime;
- Aprendi: para dar aquele quentinho no coração e querer ser uma pessoa melhor, newsletter adorável da Sarah também sobre crescer, vida adulta e todas as coisas que ela tem aprendido com isso;
- Shondaland: cada vez mais próxima da dominação mundial, Shonda Rhimes agora tem um portal de textão reunindo várias das minhas escritoras favoritas, tipo uma Rookie da mulher adulta. Meus textos favoritos até agora: How to be your own best friend, da Danielle Henderson, e uma entrevista da maravilhosa Mallory Ortberg com a maravilhosa Roxane Gay;
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Sempre que as coisas estiverem difíceis, pensem na Frida, a cadela de resgate que já salvou mais de 50 vítimas do terremoto que aconteceu no México <3
Stay beautiful!
Yours truly,
Anna Vitória
Sempre que quiser, responda essa newsletter como um e-mail normal e escreva para mim, vamos continuar conversando depois que o sinal bater.
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