- I smell snow...
Na mitologia de Gilmore Girls, se é que podemos chamar assim, existe uma mística relacionada à neve. Lorelai adora neve. Ela adora tanto que consegue sentir seu cheiro antes dela cair e sempre sabe quando vai nevar, contrariando todas as previsões do tempo. Lorelai ama neve porque é o início da sua época favorita do ano e as melhores coisas da sua vida aconteceram quando nevava: seu melhor aniversário, seu primeiro beijo, os primeiros passos da Rory. Na série também acontecem coisas mágicas em dias de neve, como Rory e Jess dividindo uma carruagem (dsclp) ou todas as vezes que Lorelai acorda no meio da noite sentindo cheiro de neve e convoca quem estiver mais próximo pra prestigiar os primeiros flocos caindo junto com ela.
É um detalhe absolutamente bobo e talvez por isso eu goste tanto dele. Eu nunca vi neve, mas sou uma pessoa absolutamente boba e consigo me identificar com esse fascínio que faz ela ficar acordada de madrugada esperando a neve cair (se nesse momento você está pensando em me escrever de volta dizendo que neve nem é lá essas coisas, e que na verdade é um saco, e não sei o que não sei o que lá, eu peço que pare agora pois não estou interessada). É mais ou menos como me sinto com relação à chuva. Eu amo chuva. Ok, a maioria das pessoas sente o cheiro da chuva e não tem nada de especial sobre isso (na verdade tem sim, cheiro de chuva é o melhor cheiro), mas não acredito que esse detalhe faça da primeira chuva depois da seca um acontecimento menos mágico.
Ser fã de fenômenos meteorológicos é um pouco sem graça quando se mora no Brasil, que tem estações menos definidas que os países do hemisfério norte, uma situação que fica um pouco mais patética aqui onde moro, no interior de Minas Gerais, no meio do cerrado de meu Deus, em que as estações funcionam mais ou menos assim: muito calor (janeiro e fevereiro); muito calor com chuva (março); um pouco menos calor e alguma chuva (abril); friozinho e céu lindo (maio, junho e julho, com duas semanas de muito frio no meio, que costuma ser nosso inverno); muito calor, muito seco, morte iminente (agosto e setembro); muito calor e alguma chuva (outubro, novembro e dezembro). Tirando maio, junho e julho, quando realmente dá pra sentir que o clima está substancialmente diferente, quando o céu muda e a luz é definitivamente outra (e não por acaso essa é a minha época favorita), o que faz diferença por aqui são as épocas de chuva inauguradas por ele, o Primeiro Dia de Chuva (cue to Taylor Swift - Come With The Rain.mp3).
O Primeiro Dia de Chuva, principalmente o primeiro dia de chuva da primavera, é especial porque ele sempre vem quando chegamos no limite e o negócio sobre limite é que você nunca sabe onde ele está até chegar nele, e pra chegar você precisa suportar a caminhada. Agosto é um mês cruel por conta da aridez e das tempestades de vento, mas pelo menos venta e isso é um consolo; quando chega setembro as árvores param de se mexer e o calor fica inerte no ar, como um corpo invisível que pesa sobre nós quando deitamos pra dormir tentando não sucumbir ao ventilador ou ao ar condicionado. É como se estivéssemos presos num globo de neve, mas no lugar da neve é só um deserto fechado numa bola de vidro.
No início de setembro fui para o Maranhão e lá experimentei o calor mais quente e absurdo de toda a minha vida, mas mesmo enquanto suava no aeroporto com as minhas roupas inapropriadas (tênis!! meias!!! calça preta!!! jaqueta de couro!!!1) eu já me sentia melhor do que havia me sentido em meses porque ali era possível respirar. São Luís é muito quente, mas São Luís é uma ilha.
Quando voltei, o contraste foi tão insuportável que fiquei dias com uma dor de cabeça que não passava nunca. O período que antecede a Primeira Chuva é como num vídeo-game, a dificuldade aumenta à medida que chegamos no fim e o chefão costuma ser cruel porque antes da Primeira Chuva tem a (ou as, se a natureza estiver se sentindo particularmente sádica) Quase Chuva. O dia em que quase chove é um dia em que o céu passa horas cozinhando uma tempestade: tudo fica cinza, surgem uns ventos estranhos, às vezes uns trovões, e você passa o dia indo na janela pra ver se está chovendo. Você sente o cheiro da chuva, você quase pode sentir a chuva, você refaz os seus planos pensando na chuva, mas não chove. Às vezes chove por cinco minutos e mal dá pra sentir os pingos caindo. Você começa a questionar os seus sentidos e se pergunta se a chuva sempre foi sem graça assim e você estava fantasiando o tempo inteiro. Você esquece como a chuva é de verdade.
Não apenas não chove, mas de repente o tempo abre do nada, começa a fazer mais calor ainda, e é precisamente nesse momento que você pensa que chegou no limite. O dia da Quase Chuva e todos que vêm depois dele até a Primeira Chuva são dias em que você quer sair correndo, gritando e arrancando a roupa no meio da rua. Se a vida fosse uma série de TV, esse seria um daqueles episódios que todos os personagens estão meio loucos e as coisas parecem fora do lugar (cue to Santa Ana Winds). Foi numa dessas, em outubro de 2014, que entrei numa piscina mais ou menos suja movida pelo mais profundo e sincero desespero.
Essa é minha história favorita sobre Primeiros Dias de Chuva. Era aniversário de 70 anos do meu avô e vários parentes vieram de (atenção para essa informação) Goiânia pra uma festa que durou todo o fim de semana. Sábado foi dia de churrasco e também provavelmente o dia mais quente e seco que Uberlândia já viu. E por circunstâncias sádicas que só posso creditar ao absurdo e à crueldade que fazem parte de toda a véspera de Primeira Chuva, a piscina não estava limpa. Isso é uma coisa que até hoje não consigo entender: como minha família resolveu dar uma churrasco na beira da piscina no dia mais quente de todos e não mandaram limpar a piscina? Fica o mistério. O fato é que estávamos todos feito idiotas perto de uma churrasqueira, encarando uma piscina, no dia mais quente de todos os tempos. Teve primo de Goiânia passando mal, sabe? Você pode não saber muito sobre Goiânia, mas você provavelmente sabe que lá é QUENTE e essas pessoas que vieram de um lugar famoso por ser QUENTE estavam padecendo no quintal da casa da minha avó por conta do calor.
Lembro que passei o dia flertando com a ideia de colocar o pé na água. No meio da tarde, quando o sol mudou de posição, eu já estava oficialmente sentada com as duas pernas dentro da água. Quando anoiteceu (sem refrescar nem um tiquinho só) eu comecei a me enfiar um pouco mais quando ninguém estava olhando. Porque a piscina tava suja, mas não tava suuuuuuja. Sabe assim? Ela estava só mais ou menos suja, exposta aos elementos por um pouco mais de dias do que seria recomendado. Pouco convidativa para um banho à luz do sol, mas estava de noite, era um dia de festa, os adultos já estavam bêbados e o calor estava me deixando completamente maluca. Eu queria tirar a roupa e sair correndo gritando. Eu pensei foda-se e entrei com tudo na piscina, de roupa mesmo.
O limite: você nunca sabe onde ele está até que ele chega.
E então, mais tarde naquela noite, choveu. Sem muito alarde, em poucos minutos o céu inteiro mudou de cor e começou a chover. Forte, mas não forte o suficiente pra fazer estrago, só uma chuva firme e constante que durou a noite inteira. A Primeira Chuva sempre é perfeita, uma definição acadêmica do dia de chuva ideal de qualquer pessoa. Tenho uma lembrança muito viva dessa noite, talvez por conta da história da piscina, mas talvez porque tenha passado muito tempo no escuro, na sacada do apartamento, vendo a chuva cair e de vez em quando colocava o braço pra fora pra sentir a chuva, pra ter certeza que era aquilo mesmo, tinha água caindo do céu.
Minha vida não é um episódio de Gilmore Girls e eu não tenho histórias mágicas sobre dias de chuva -- pelo contrário, eu coleciono histórias de perrengues embaixo de chuva. Essas histórias são engraçadas de contar, mas na hora mais se parecem com histórias de terror em que estou tentando chegar em casa no meio de uma tempestade, com medo de ser atingida por um raio enquanto ando no meio da rua pra fugir da enxurrada. Já tomei granizo na cabeça; já passei por chuvas horizontais; meu guarda-chuva já virou do avesso no meio de uma ventania; já tive voos cancelados por conta de chuva; já peguei metrô no Tietê de manhã cedo depois de umas dessas chuvas que alagam e destroem São Paulo inteira. Nunca fui beijada na chuva, mas a única vez que briguei de verdade com uma amiga, de ficar meses sem conversar depois, eu estava no ponto de ônibus com meu guarda-chuva cor-de-rosa, digitando freneticamente no celular e chorando na frente de todo mundo. E na maioria das vezes não são coisas tão dramáticas, só o drama cotidiano de passar o dia com as meias molhadas.
Ainda assim, não consigo me desviar do fascínio que dias de chuva me provocam, principalmente quando se trata da Primeira Chuva. Gosto de Primeiras Chuvas porque elas são uma resposta programada -- sem data certa, mas que sempre vem. Não importa o quão insuportável e insustentável for o calor e a estiagem, eu sei que uma hora vai chover. Tem que chover. Sempre chove. Nossos ancestrais aprenderam a viver de acordo com a natureza, organizando a vida de acordo com os seus processos, mas toda a história da nossa evolução, principalmente a moderna, da qual somos herdeiros, é uma história sobre tentar controlar, regular e domar o que foge do nosso controle. A ironia é que hoje é muito mais difícil regular ou prever a natureza justamente graças ao descaralhamento do planeta causado por essa evolução e por isso é cada vez mais difícil prever quando chove, por exemplo, mas sempre chove, pelo menos aqui, pelo menos por enquanto, e isso me acalma.
Não são muitas coisas na vida que nos permitem contar com essa redenção depois do limite. Na maior parte das vezes a gente suporta a caminhada sem garantias de que vai dar tudo certo no final -- afinal, que opção nós temos? Às vezes tudo que o limite reserva é uma receita de remédios controlados.
A Primeira Chuva da primavera de 2017 aconteceu numa noite de sexta-feira no final de setembro. Lembro bem disso porque também foi o dia que terminei um trabalho muito difícil e importante que estava me consumindo há semanas, que até o dia anterior eu jurava que não seria capaz de terminar. Mas eu terminei, e aquilo me pareceu bom, e ainda que tivesse milhões de outras coisas pra fazer decidi me dar aquela noite de folga, porque eu tinha terminado, e estava chovendo. Dava pra ouvir as pessoas comemorando na rua quando a chuva começou a cair.
A chuva é uma metáfora pronta, sem sutileza nenhuma, nessa e em qualquer outra história. São pingos de chuva escorrendo na janela que a gente encara quando está triste e pensando na vida. Os casais se beijam na chuva no final do filme. Hillary Duff e Chad Michael Murray se beijam no final de A Nova Cinderela e então chove depois da pior seca da história da Califórnia. A chuva é recurso narrativo de uma história qualquer nota, mas eu disse no início do texto que sou uma pessoa absolutamente boba que é pra vocês saberem o que esperar das histórias que eu conto aqui.
O que eu queria mesmo dizer é que a vida é muito, muito difícil, e não temos garantia nenhuma sobre nada e eu gosto de saber que existe pelo menos um aspecto da vida em que o limite nos encontra com o espetáculo redentor de uma tempestade. Eu preciso de uma resposta programada. Eu preciso de um dia de chuva depois de maior onda de calor de todos os tempos, preciso me permitir colocar os braços pra fora pra sentir os pingos e dormir com as janelas abertas. Eu preciso de algo maior que justifique as meias molhadas, o medo de raios e os voos cancelados, porque chuva é água caindo do céu e quando ela cai não existe absolutamente nada que a gente possa fazer -- e eu preciso muito que isso seja bonito de alguma forma porque assim posso fazer as pazes com todas as outras coisas que não posso controlar.
Tão boba.
primavera - 2014
Os melhores dias de chuva da cultura pop de acordo com Anna Vitória Rocha
Aquele do final de A Nova Cinderela, é claro;
A música Fearless, da Taylor Swift, e os momentos em que ela faz chover no palco como a psicopata perfeita e adorável que é;
O episódio The Rainy Day Women, de The OC, aquele com o beijo de Homem Aranha ao som de um cover questionável de Champanhe Supernova;
"I love you... most ardently" ou a declaração de Mr. Darcy ou Lizzie e Darcy brigando na chuva ou ainda a cena com maior tensão sexual da história do cinema e o maior subtexto de hate sex da literatura universal;
Quando o Radiohead tocou Paranoid Android no Brasil e literalmente começou a chover na hora do rain down (esse infelizmente tá só na minha memória, mas dá pra ter uma ideia aqui);
"Isn't This a Lovely Day?", o melhor número de musical e sapateado em Top Hat, o melhor musical de todos;
Todo o filme One Fine Day;
Disco da Semana
A Ghost Is Born (Wilco): Tenho impressão que esse disco é a única coisa que tenho escutado nos últimos dois meses, qualquer outra coisa sou eu tentando disfarçar que não tenho tido vontade de ouvir mais nada que não essas músicas. Não por acaso, A Ghost Is Born é o disco de desgraçamento de cabeça do Wilco, e também não é por acaso que ele é o trabalho menos palatável da discografia da banda, se me permitem o palpite. A Ghost Is Born é o disco do limite, e no limite eu estive e tenho estado, e seus solos de guitarra de muitos minutos funcionam são representações de crises de enxaqueca e crises de abstinência, desgraçamentos de cabeça diversos, mas também funcionam como uma explosão catártica que vem depois da crise, o estranho conforto de uma tempestade de raios. Esse disco é perfeito.
Músicas favoritas: todas, muito todas, loucamente todas, mas principalmente At Least That's What You Said, Hummingbird, Wishful Thinking, I'm a Wheel e Theologians.
Hello stranger, como vai você?
Depois de um mês sem aparecer por aqui, achei que seria simpático quebrar a quarta parede no final e contar por onde estive. Nesse mês que passou, estudei muito, trabalhei muito e também comecei a trabalhar exclusivamente de home office. Ainda estou me adaptando, então tem dias, como ontem, que saio pra passear no shopping no meio da tarde como se minha profissão fosse a de herdeira, mas em outros eu passo bem mais tempo na frente do computador do que quando tinha hora pra entrar e sair da firma. Por conta dessa nova agenda consegui passar uns dez dias em São Paulo, um deles pra fazer uma prova, os outros para gastar quase R$100 no bilhete único andando pra lá e pra cá pela cidade. Foram muitos negronis de fim de noite na cozinha da casa dos meus tios, água com gás e chá gelado um dia inteiro. Amigos foram vistos e muito abraçados, mas agora é estranho andar pelo centro quando tanta gente foi embora de lá. Eu e a Clara pudemos conversar por muitas MUITAS mUiTaS horas e o Matheus finalmente conheceu vários dos meus Amigos da Internet, num encontro perfeito dos meus melhores universos. Teve karaokê, Guerrilla Girls, muito calor e pouca chuva, e agora posso adicionar a linha azul do metrô na lista de Lugares Públicos Onde Já Chorei em São Paulo.
Vi menos filmes do que tinha planejado, esqueci completamente da exposição do Nirvana, não descansei nada e, como sempre, voltei pra casa desesperada pra sair de lá e ao mesmo tempo muito triste por ir embora. Conquistei o coração da gata Juno e três dias depois de voltar recebi a triste notícia que a gata Doce, minha sobrinha gata, que estava com meus tios há 16 anos, tinha ido embora. Ela estava bem doente e frágil, e me despedi dela com o coração partido sabendo que não a veria de novo, mas isso não ajudou em nada o meu coração que sempre volta dessas aventuras completamente esgotado e ressaqueado de Viver e Sentir. A parte boa é que voltei a fazer terapia depois de mais de um ano dizendo todo mês que mês que vem eu volto pra terapia -- no limite você pode encontrar chuva, uma piscina suja, um grande vazio existencial ou um divã pra entender melhor os desgraçamentos da cabeça e do mundo. Não esperem chegar no limite.
O que mais? Temos novas temporadas de Broad City e Crazy Ex-Girlfriend; um livro novo do John Green que eu já comprei, li e amei; disco do Niall; uma música ridícula e perfeita da Taylor Swift; escrevi um texto sobre o documentário da Lady Gaga, e também estou na nova edição da Deriva junto com tanta gente que sou fã que acho que nem tenho roupa pra frequentar tal publicação, mas o texto está lá; o Valkirias também foi convidado para participar de dois eventos muito legais, e no meio disso tudo eu tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo.
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Obrigada especialmente para quem mandou mensagem perguntando sobre a newsletter, parece uma coisa muito pequena ou que deixo tudo grande demais, mas eu tenho estado bem overwhelmed nos últimos dois meses e é bom saber que vocês se importam. Escrever aqui me faz muito bem, mas também demanda um esforço muito grande, então esses impulsos são sempre bem vindos. Obrigada!
Pra encerrar, fico com a pureza do semblante dos poodles e o olhar de absoluto contentamento no rosto do Beck ao conhecer Riku, o poodle gigante que é meu cachorro favorito em toda a internet.
Stay beautiful!
Yours truly,
Anna Vitória
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