Ou: This is why we can't have nice things
Hello stranger, como vai você?
Passei a primeira metade de 2017 pedindo desculpas por "não estar lendo direito". Mesmo quando aceitei que isso era uma bobagem e produtividade é uma grande mentira inventada pelo capitalismo, passei o ano me sentindo distante da rodinha das pessoas que leem -- um lugar que até então entendia como meu. Isso porque eu estava lendo pouco. Porque não estava lendo o que todo mundo estava lendo. Porque eu estava lendo quatro livros ao mesmo tempo ou lendo o mesmo livro há quatro meses. Porque eu ainda não tinha lido aquele livro que estava todo mundo comentando (e não pretendia ler tão cedo). Porque eu passei semanas inteiras sem encostar num livro. Porque eu terminava um livro e não queria pegar outro logo em seguida. Porque eu estava preferindo assistir alguma série antes de dormir ou passar aquele tempo no ônibus ouvindo um podcast ou só olhando o dia lá fora, mas nunca lendo. Porque, em resumo, eu não estava lendo o suficiente ou pelo menos não do jeito certo.
Ser uma pessoa que lê foi uma identidade que grudou em mim ainda muito nova: eu ganhava prêmio no fim do ano por ser a aluna que mais pegou livros na biblioteca da escola; sou a caricatura insuportável da pessoa que cheira as páginas dos livros, faz carinho em capas e lombadas, coleciona edições de títulos favoritos e considera Ir na Livraria (ou, melhor ainda, Ir no Sebo) um evento turístico a ser feito em todo lugar que visito. Eu já tive três dates que começaram numa livraria porque é um lugar onde me sinto à vontade, onde me divirto de verdade mesmo sem comprar nada e é uma experiência que adoro dividir com as pessoas que gosto. Boa parte da minha família sabe muito pouco sobre mim, mas todo mundo sabe que eu amo ler.
Ser leitora no Brasil ainda é ocupar um espaço de enorme privilégio: temos quase 12 milhões de analfabetos, quase metade da população não lê, 30% nunca comprou um livro. Livros são caros, nossa educação é precária e tudo isso contribui para que a leitura seja um hábito tanto elitizado como também sacralizado. Ser a pessoa que lê da minha família e entre os meus amigos me fez ver como a leitura ainda é um capital social importante, como gostar de ler faz com que automaticamente você seja vista como uma pessoa mais especial e mais inteligente e que é muito fácil acreditar nisso. Minha mãe enche a boca para contar pros outros que eu gosto tanto de ler que levo livros até pra praia, e que isso é lindo, ainda que ela sempre reclame quando faço isso.
Até o fim da adolescência a leitura sempre tinha sido uma coisa muito minha, muito solitária, e foi só quando comecei a participar mais da internet que descobri o mundo das pessoas que leem, um mundo completamente descolado da realidade, mas que se tornou o meu mundo. Ele é maravilhoso e me rendeu (e ainda rende) discussões, amizades e experiências incríveis, mas também é um microcosmo muito louco que pode ser (e tem sido, muito, pelo menos pra mim) overwhelming. Compartilhar leituras, seja em textos, vídeos ou redes sociais feitas para isso, é muito legal, muito rico, mas nos cobra uma PERFORMANCE elaborada que quer nos transformar num leitor ideal, que é um troço que nem existe e que é muito cansativo e triste de tentar alcançar. É uma construção sutil, tipo um inconsciente coletivo: uma culpa que a gente sente pesar quando acha que não está lendo de acordo com o esperado (vide o primeiro parágrafo do texto) ou um orgulho besta que bate quando superamos a expectativa média, que já é muito alta, criando mais uma meta difícil de atingir que os outros vão admirar, tipo ler Ulisses no original ou ler 100 livros num ano. Como questionou a Letícia numa edição passada da femrecs, será que a gente gosta mais de ler ou de ter lido?
O pior dessa rotina é que ela se constrói num discurso de incentivo a leitura, genuinamente bem intencionado, mas acaba afastando muita gente dos livros, reforçando que ler é algo restrito a poucos e seletos iluminados. Já ouvi de várias pessoas que elas queriam muito ler igual eu, mas por algum motivo não se sentem capazes ou suficientes pra isso. Lembro que minha melhor amiga da escola se sentia mal por não gostar de ler e direto criava umas metas de leitura que não iam para lugar nenhum, porque ela achava que precisava ler Dostoiévksi e Machado de Assis para ser validada como leitora (eu não ajudava muito sendo a sociopata que lia essas coisas aos 15 anos), ignorando que o fato de ler Crepúsculo, Diário da Princesa ou A Irmandade das Calças Viajantes, que era o que ela gostava de ler, já fazia dela alguém-que-lê. Eu não aguento mais as pessoas se justificando ou se desculpando por não estarem lendo certo ou o suficiente, como se eu fosse uma espécie de sacerdote capaz de conceder uma indulgência por esse pecado; eu não aguento mais achar que preciso me justificar ou me desculpar com amigas que leem mais só porque não estou a fim de ler (coisa que fiz umas duas ou três vezes em 2017).
Sobretudo, eu não aguento mais a ideia de que ler te faz melhor que os outros ou que não ler (ou ler pouco, ou não ler o que todo mundo leu ou não AMAR ler) te faz alguém pior.
Ler é maravilhoso, abre portas e pode te fazer uma pessoa melhor, mais inteligente e mais empática, mas ninguém é melhor, mais inteligente ou mais empático só porque lê (vocês já ouviram falar de ACADÊMICOS?), assim como existem pessoas que nunca leram ou não tem o hábito de leitura que são incríveis, empáticas e muito inteligentes. Ano passado surgiu no grupo da Pólen um debate muito legal que começou quando a Lorena perguntou qual era nossa "confissão de leitor", tipo nunca ter terminado algum livro importante ou não gostar de algum autor queridinho. A própria Lorena confessou que apesar de amar ler, os livros não são a sua forma favorita de entretenimento e que outros tipos de conteúdo, tipo televisão, são mais importantes pra ela atualmente. Relendo a discussão agora me identifiquei muito, porque assistir Crazy Ex-Girlfriend em 2017 foi mais transformador e importante pra mim do que qualquer outra leitura que fiz no ano.
Admitir isso só ganha peso de confissão quando se trata de leitura; muita gente faz resolução de ano novo para ver mais filmes ou acompanhar mais séries, mas a resolução de ler mais é a única que vem para corrigir um caráter supostamente falho. GENTE VAMO PARAR COM ISSO!!!
Sei que a internet não cria sozinha nenhuma dessas doenças, mas, como em muitos outros casos, ela veio para intensificar e maximizar um problema que já existia na sociedade e no ser humani. Ela torna mais fácil saber o que os outros estão lendo, armadilha perigosa para comparação; cria grandes conversas públicas sobre alguns temas e livros e deixa mal quem tá de fora, lendo e pensando em outras coisas; seu sistema possui uma lógica gamificada que nos faz querer ler sempre mais-mais-mais, que mede e retribui apenas em quantidade, não qualidade, e se torna uma experiência ruim quando estamos lendo menos-menos-menos. Pra quem produz conteúdo é ainda pior, porque existe a cobrança de se manter Relevante e conquistar a atenção das pessoas (e já é tão difícil cativar o público falando de livros!) e isso significa seguir certas regras. Outra preocupação menos nobre é como lidar com nosso cérebro viciado em dopamina diante da consciência que aquele update no Goodreads ou o texto sobre o livro que ninguém conhece ou se importa não vai render nenhum like ou comentário, não vai viralizar na internet.
Uma das minhas grandes crises de 2017 foi justamente esse conflito de estar desconstruindo minha forma de consumir cultura (que tinha deixado de ser um prazer para se tornar uma ANGÚSTIA, pelas razões supracitadas), mas ser cobrada externamente e sentir que nem sempre vou poder dizer não, porque é meu trabalho e eu preciso desse público (nem vou tocar no assunto MILITÂNCIA, que gera todo um outro drama, toda uma nova crise). 2017 também foi o ano que deu pra pagar um boleto com dinheiro que veio de livros, então existe mais coisa aí do que simplesmente ligar o foda-se e seguir com a vida.
Escrevi tudo isso não pra dizer que existe algo de errado em querer ler muito, fazer metas de leitura, participar de desafios, compartilhar leituras, ler os livros da moda. Se é isso que te faz feliz e funciona pra você, ótimo, inclusive admiro o esforço (principalmente se ele está relacionado a sair da zona de conforto para leituras mais diversas)! Funcionou para mim por muito tempo e nada impede que um dia eu volte a ser assim, mas a partir do momento que desviei dessa norma comecei a sentir que não pertencia mais a esse mundo, que não tinha direito a ele, e isso é ridículo. Ninguém veio me expulsar ou dizer que eu não era suficiente, foi uma coisa que eu coloquei na cabeça e sei que muita gente coloca. Já existe incentivo o suficiente na internet pra todo mundo ler mais e melhor, mas ainda existe um tabu na hora de desconstruir ou questionar qualquer coisa que tire os livros ou o leitor do seu lugar sagrado ou que pelo menos nos leve a repensar alguns hábitos consagrados.
A Ariel Bissett publicou um vídeo falando sobre tudo isso e assisti-lo foi um verdadeiro BÁLSAMO PRA ALMA, não só porque me senti contemplada por todas as questões dela, mas também porque acho importante demais ver produtores de conteúdo (principalmente de grande porte) dando um passinho pra trás e questionando o meio do qual fazem parte e que ajudam a criar em seus vícios e virtudes. O canal da Ariel é meu favorito faz tempo, mas se tornou meu good place no Youtube em 2017 porque gosto demais de como ela tem conseguido lidar com essas pressões e ser honesta com seus interesses, sem deixar de produzir um excelente conteúdo (o vídeo sobre livros que ela está doida pra ler e ninguém liga me fez querer ir pro Canadá a pé pra dar um abraço nela).
Em 2017 eu li pouco e os livros não foram meu entretenimento favorito. Eu não li o que todo mundo estava lendo. Cheguei a ler quatro livros ao mesmo tempo, demorei mais de quatro meses (and counting!) pra terminar um livro e larguei várias leituras no meio. Não li os livros que todo mundo comentou e nem sequer senti vontade de ler vários deles. Passei semanas inteiras sem encostar num livro e troquei a leitura por séries, podcasts ou simplesmente por fazer nada e não quero me desculpar por isso. Apesar de ter lido menos que as pessoas ao meu redor, num ritmo bem estranho e meio fragmentado, a maioria das minhas leituras me acompanhou de um jeito muito intenso em tudo que escrevi, pensei e falei ao longo do ano. Quando comecei a ignorar as pressões internas e externas pude aproveitar melhor isso e ler voltou a ser legal: rabisquei livros com gosto e naturalidade pela primeira vez, falei obsessivamente sobre alguns, me permiti passar semanas impactada por um único conto ou ensaio, e aceitei que não leria nada em seguida se não tivesse vontade. Reli vários capítulos, várias vezes, e li um mesmo livro duas vezes num ano só porque deu vontade e foi bom demais.
Passei o ano sem falar de várias leituras que foram importantes pra mim e não consigo organizar meu ano literário numa retrospectiva bonitinha, como venho fazendo desde 2010 (!) na internet (só falei de alguns destaques no Twitter), mas gostei de ter tido a chance de me reinventar como leitora e repensar alguns hábitos em 2017. Para 2018 só quero vencer minha atenção fragmentada e meu cérebro estragado pelo consumo excessivo de internet, todo o tempo que jogo fora no scrolling eterno e os livros que deixo de aproveitar quando a falta de concentração é mais forte que eu. Isso e rabiscar mais livros.
Que estejamos atentos e fortes nesse ano que começa, e que você possa ler o que te der vontade e ser muito feliz!
Top livros lidos em 2017, sem ordem específica (para contradizer o propósito das 2000 palavras acima)
Confissões do Crematório (Caitlin Doughty);
Uma Vida Pequena (Hanya Yanagihara);
A Mãe de Todas as Perguntas (Rebecca Solnit);
Dias de Abandono (Elena Ferrante);
A Louca da Casa (Rosa Montero);
The Hating Game (Sally Thorne);
One Day We'll All Be Dead and None of This Will Matter (Scaachi Koul);
A Era do Imprevisto (Sergio Abranches);
Turtles All The Way Down (John Green);
Big Little Lies (Liane Moriarty);
Disco da Semana
Pleasure (Feist): O disco novo da Feist saiu ainda no primeiro semestre do ano passado, com essa capa incrível, e eu ouvi e gostei muito, mas acabei esquecendo. Voltei pra ele no final do ano e foi o momento certo, ele grudou em mim e floresceu, se fosse fazer um top 10 discos de 2017 ele com certeza estaria lá. Gosto de Pleasure porque ele passa a impressão de ser exatamente o disco que a Feist queria fazer, um pouco na contramão do que esperavam dela por sucessos passados, um disco que demanda um tempo e uma atenção que tornam fácil esquecê-lo no meio de tantos lançamentos, mas o investimento se paga completamente. Conheci Leslie Feist na época de "1234" quando o Disk MTV era uma coisa que todo mundo assistia, eu e minha melhor amiga ficávamos tentando decorar a coreografia e aquele macacão de lantejoulas azul era tudo que eu queria (talvez ainda seja) e ver o amadurecimento dela como artista é algo que me inspira bastante.
Músicas favoritas: Any Party, Pleasure, A Man Is Not His Song, The Wind, Century
Bônus: vale muito a pena assistir ao show dela em San Francisco, que tá lindo demais (esse vestido cor-de-rosa é minha nova roupa desejo influenciada por Leslie Feist)
Links, Links, Links
- Has reading become competitive??, o vídeo que vi e me fez pensar nesse post;
- Eu não amo ler, um texto da Clara que lá em agosto começou a botar o pé na porta no tema leitura na minha cabeça;
- O que significa tornar públicas nossas leituras privadas, adoro todos os textos da Carla Soares e suas Experiências de Leitura e esse conversa diretamente com o tema da edição e tenho pensado nele desde que li pela primeira vez;
- Meu perfil de leitora em 2017, o vídeo que me deu o insight que nosso perfil de leitura muda ao longo do tempo, e tudo bem;
- Ansiedade causada pelas internets, vídeo da Helmother falando com a Jout Jout sobre como a internet tá afetando a cabeça dela, algo que senti com muita força esse ano (é irritante DEMAIS a Jout Jout não entendendo o assunto, mas relevem);
- 2017, um ano desses, bicho - a Milly Lacombe ficou com o prêmio de melhor e mais inspirador textão de fim de ano;
- Feminismo e amor - tenho pensado (e tido várias crises) sobre a dificuldade de ser feminista e me relacionar com homens, e esse texto foi terapêutico;
- Mãe! e o mundo criado por homens: no recesso finalmente assisti ao controverso filme Mother e gostei muito de finalmente ler o que a Jumed escreveu sobre ele lá no website Valkirias;
- How I stopped procrastinating and got my shit together. um guia bem completo de produtividade feito por uma pessoa com TDDA que pode ajudar muito quem sofre com ansiedade, depressão e outros problemas que afetam o trabalho; pra organizar a vida, pirar menos e manter o controle;
- Is is too late to follow my dreams?, 2018 já é lindo porque a Roxane Gay tem uma coluna de conselhos;
- Ainda pra inspirar o início de ano, uma entrevista com a Ashley C. Ford, uma das minhas escritoras heroínas;
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui, principalmente se você sobreviveu à minha melancólica retrospectiva de fim de ano. Aos seguidores novos, sejam muito bem-vindos e obrigada a todo mundo que nesse fim de ano compartilhou e ajudou a divulgar a newsletter por aí <3 Você pode responder esse e-mail quando quiser, falar comigo nas redes sociais listadas lá embaixo ou mandar perguntas no Curious Cat. Quem quiser acompanhar minhas leituras (kkkkk), é só me seguir no Skoob ou no Goodreads.
Feliz ano novo e vamo que vamo!
Stay beautiful!
Yours truly,
Anna Vitória
Sempre que quiser, responda essa newsletter como um e-mail normal e escreva para mim, vamos continuar conversando depois que o sinal bater.
Twitter * Instagram * Valkirias