Hello stranger, como vai você?
Eu tinha duas metas em 2017: finalmente ler Little Women e finalmente terminar Mad Men.
Comprei minha edição de Little Women em agosto de 2012 quando tinha 18 anos, na primeira viagem sozinha que fiz com minhas amigas, com o primeiro salário que ganhei na minha vida. Lembro que me custou uma pequena fortuna, mas foi uma extravagância que não hesitei por um minuto em fazer porque é pra isso que primeiras viagens e primeiros dinheiros devem servir. Só que eu nunca li o livro.
Ao longo desses seis anos, todo ano eu prometia que finalmente o leria, mas sempre tinha uma desculpa. No começo tinha medo de não entender a linguagem, de achar o inglês difícil, o tamanho dele me intimidava. Depois a desculpa era a falta de tempo ou a falta de cabeça para dar prioridade para aquele catatau nas minhas leituras. Durante seis anos eu consegui ler vários calhamaços maiores e mais difíceis, mas convenientemente me esquecia deles sempre que alguém me perguntava sobre Little Women. Porque as pessoas perguntavam. Perguntavam porque, de um jeito engraçado, esse livro se tornou um mito na minha vida, uma anedota recorrente em conversas sobre livros, o meu trabalho de sísifo e também a minha felicidade clandestina.
Quem já leu o livro sabe que ele nem é tão especial assim (spoiler!), mas todo esse tempo que adiei a leitura foi revestindo a obra de uma aura de importância que de repente não me parecia mais possível lê-lo sem uma certa cerimônia. Acho que no fundo eu esperava que algo muito especial acontecesse que me desse permissão para finalmente ler o livro. Acho que eu esperava férias, e 2012, coincidentemente, foi o último ano em que tirei férias de verdade (desemprego não conta). Acho que eu esperava ter a mesma cabeça despreocupada dos 18 anos, por isso nunca tinha "cabeça" para as quase 500 páginas de aventuras das irmãs March, pois a cada ano que passa olho pra trás e vejo como no ano anterior eu era mais leve e despreocupada de um jeito que jamais vou voltar a ser. Acho que eu esperava ser a mulher que eu idealizava que seria quando, há seis anos, comprei aquele livro e me imaginei lendo-o num futuro que parecia estar começando naquela viagem.
Foi uma coisinha boa e besta que fiz por mim e também por quem eu viria a ser, acreditando que lá na frente eu seria aquela pessoa para quem esse tipo de coisinha boa e besta fosse rotina. Eu estava esperando o meu castelo no ar.
Quando, enfim, decidi ler o livro, não poderia estar mais distante daquele futuro idealizado, e essa distância doía mais porque eu acreditava que tinha chegado tão perto. Ainda lembrava da sensação de uma noite, algumas semanas antes, em que chegara em casa às duas da manhã bêbada de amor, de felicidade, de potencial e de um pouquinho de cosmopolitans (quer um gesto mais cheio de esperança na vida do que encher a cara de um drink cor-de-rosa?). Tinha saído de casa às 14h e vivido um dia mágico e inesperado; fui dormir numa nuvem macia de tudo que poderia ser e acontecer a partir dali. Pouco tempo depois essas promessas não se realizaram, a coisinha boa e besta que eu tinha virou um naco de frustração e raiva e vergonha que por um tempo sugou minha energia como um dementador.
Derrota definiu meu fim de 2017, então decidi ler Little Women de birra, por resistência, porque eu não queria arcar com mais um fracasso, por mais idiota que fosse uma leitura no grande esquema das coisas.
Little Women não é o livro que eu esperava. Pela época em que foi escrito, por ser uma história que gira em torno de uma família meio pobre com quatro filhas mulheres, eu meio que esperava que a Louisa May Alcott fosse uma Jane Austen americana, e ter ficado decepcionada por ela não ser é exclusivamente problema meu. Eu não sabia, por exemplo, que Little Women é um livro infantojuvenil, quase um manual de moças de 1868. Ao longo de suas quase 500 páginas acompanhamos a juventude de Meg, Jo, Beth e Amy (inspiradas nas três irmãs da autora, cujo alter ego obviamente é Jo March) numa estrutura em que cada capítulo conta uma pequena aventura de alguma delas, sempre na direção de superar algum vício e desenvolver alguma virtude no lugar.
O que tornou a leitura meio cansativa pra mim foi a ausência de um arco narrativo mais forte que levasse a história pra frente mas, de novo, acho que o problema estava em mim, porque não consegui me envolver com esses arcos de superação moral. The Good Place, minha atual obsessão, é exatamente sobre isso, mas seus personagens são mais humanos e tangíveis, você torce por eles porque acredita neles, enquanto Little Women prega uma negação de si tão forte que as personagens ficam idealizadas demais, quando não viram quase mártires de suas escolhas virtuosas. Beth, a mais pura delas, é tão etérea que morre jovem, como se evaporasse no ar. Sempre pensei que me identificaria com a Jo, a irmã aspirante a escritora, alta demais e da língua afiada, mas no fim minha March preferida é a Amy, que descobre que dinheiro não é tudo na vida, mas não deixa de amar vestidos bonitos.
Me incomodava também o fato de Meg, Jo, Beth e Amy estarem superando a si mesmas muitas vezes para se transformar num ideal de mulherzinha da época. Na introdução da minha edição, assinada pela escritora Jane Smiley, a visão defendida, que eu até concordo, é que o objetivo da autora era fazer com que suas personagens fizessem o melhor que pudessem dentro do papel permitido a elas pela sociedade da época, mas isso é feito sem qualquer vestígio de crítica a essa sociedade -- que é o que vemos em Jane Austen, que também não rompe com convenções, mas pelo menos ri na cara de todo mundo. Não quero jogar Louisa May Alcott na fogueira por essa escolha bem-comportada, ou invalidar a sua obra (dizem que seus romances adultos são mais moralmente complexos e exploram relações de poder entre classe e gênero, o que me deixou bastante curiosa) por não instigar garotas jovens à revolução, mas foi um pouco frustrante sim.
Apesar desses aborrecimentos, Little Women foi uma leitura confortável e aconchegante, e eu precisava de um livro sem pontas afiadas, que fosse como um carinho. Ignorando as opressões, a ausência de direitos e antibióticos, existe algo que me encanta nessa atmosfera doméstica do fim do século XIX, nessa vida de chás, bailes, passeios na beira do rio, que é o que esse livro constrói tão bem mesmo num contexto de quase pobreza. Não é um livro ruim, mas eu teria gostado bem mais de Little Women se tivesse lido com 18 anos, porque tinha menos raiva, estava menos cansada, e porque acreditava que poderia ser uma mulher bem acabada. Suspiros.
Mad Men existe em um universo diametralmente oposto ao de Little Women. Se Little Women é uma promessa, Mad Men condensa em si um monte de promessas não cumpridas: os anos 60, o sonho americano, o capitalismo. Ao longo de sete temporadas que acompanham mais ou menos uma década na vida dos personagens, vemos essas promessas sendo quebradas na vida de cada um deles, uma a uma, e o eco que isso faz na nossa vida incomoda e dói também. Acho que ninguém suportaria assistir por tanto tempo se não fosse uma série tão esteticamente bonita e agradável de olhar.
Comecei a ver Mad Men no natal de 2015 e assisti as três primeiras temporadas em menos um mês. A partir da quarta, no entanto, não consegui mais manter esse ritmo porque foi ficando pesado demais, perto demais e também BOM demais. Se lamento por ter deixado Little Women por tanto tempo na estante, não me arrependo nada pelos mais de dois anos que levei para assistir essa série. Eu gostava de passar dias pensando sobre um episódio e depois meses pensando sobre uma temporada. Li um monte de textos de apoio, ouvi mil vezes as músicas que encerram os episódios (difícil escolher um único momento favorito entre "On the Street Where You Live", "Tomorrow Never Knows", "Both Sides Now", "Don't Think Twice It's Alright" e "Space Oddity"), mergulhei em fóruns com tópicos sobre minúcias aparentemente irrelevantes como os prefeitos de NY na década de 60 e o melhor jeito de se preparar um old-fashioned.
Esse não é o Texto Sobre Mad Men que alguns esperam que eu escreva (porque a série também se tornou meu mito pessoal) e talvez eu nunca escreva esse texto porque, diferente de boa parte da cultura pop que consumo hoje, Mad Men foi uma série que assisti sem qualquer obrigação, consciente ou não, de racionalizar, de elaborar externamente. Mad Men é uma série muito minha, que conversa diretamente com os Meus Temas (eu sou a pessoa insuportável que tem Temas existenciais) e ainda que não haja um texto que reúna todas essas experiências, sentimentos, teorias e ideias, sei que Mad Men está em tudo que pensei e escrevi nesses dois anos.
Não sei de onde veio o impulso para finalmente terminar a série nesse fim de janeiro, simplesmente aconteceu. Fiz a cerimônia que sempre achei que ela merecesse, marquei uma data (!) pensando nos dias que minha mãe estaria fora porque eu precisava de uma casa inteira, de silêncio, de privacidade. Vi um episódio por dia todos os dias por uma semana, antes de dormir (em duas dessas noites eu não consegui dormir depois). Nas três últimas noites pedi delivery, bebi vinho no sofá usando meus robes floridos. Era muito o meu momento e meu eu de 18 anos se orgulharia de mim, apesar de seguir sem nenhum problema resolvido.
Os dois minutos finais me deram um calafrio louco e uma enorme vontade de chorar (gente eu sou muito maluca). Foi uma descarga de energia tão forte que me vi LIGANDO pra uma pessoa e só depois de três toques me dei conta de que era uma madrugada de quarta pra quinta. Mandei uma mensagem pedindo desculpas e disse: "É que eu acabei Mad Men e precisava muito gritar com alguém".
Como escrevi, nunca me forcei a ter conclusões sólidas sobre Mad Men e não foi diferente com o final. Não sei o que achei além de ter certeza que amei, e isso é uma benção. Contudo, antes mesmo de começar a sétima temporada, um dia ouvi uma música que me fez pensar sobre a série com muita força e desde então é o eco dela que escuto quando penso sobre Don, Peggy, Joan, Roger, Pete, Sally, Betty: "No one escapes their life". A música se chama "American Wife".
Mad Men termina como um círculo que se fecha. Os personagens completam suas trajetórias e são transformados por elas, o que lhes permite olhar para o que vem com uma nova perspectiva e um alívio momentâneo, mas sete temporadas nos ensinaram que não se pode escapar da própria vida. No one escapes their life. No one escapes their life. No one. No one.
Semana passada na terapia tive o momento clichê que acho que todo mundo imagina que vai ter ter quando começa a fazer terapia, mas não acredita realmente que vai acontecer de verdade, até que acontece. Eu disse: "Mas se tudo que sei sobre mim é recortado por essas experiências, vícios e padrões, então o que eu sou de verdade se a gente tirar isso tudo?", e como boa terapeuta que segue o estereótipo freudiano a risca, minha analista não disse nada e me deixou dormir com essa.
Se minha vida fosse Mad Men, esse episódio acabaria comigo deitada no divã e "American Wife" tocando bem alto.
But I only play the fool very often
I only bet my heart like a spade
But I like the gambling life
You never know what you're going to get
Bet your shoes, keys, and glasses
You'll be barefoot, free from debt, blinded, and wandering
Maybe then you'll be happier, then
(Then you'll be happier, then)
Livros e séries que são fortes candidatos a se tornar mitos na minha vida pelos próximos anos
Guerra e Paz, do Tolstói;
Os diários da Sylvia Plath;
Six Feet Under;
The Office;
The Sopranos;
Disco da Semana
CTRL (SZA): Eu chego atrasada em tudo e pra variar peguei atrasada o bonde de amar a SZA, mas aqui estou. CTRL é um dos discos de pé na bunda mais fortes e também mais vulneráveis que eu já ouvi. Solána é uma artista que não tem vergonha de arrastar a cara na sarjeta e confessar suas fraquezas e inseguranças. Ela pede desculpas por não ser a garota dos sonhos do cara que a trocou por outra, mas se recusa a deixar de ser quem é por causa dele. Eu adoro que ela se permite ser petty e raivosa, como quando confessa que traiu o ex com um amigo dele, e segura essa onda maravilhosamente bem, ao mesmo tempo que escreve letras que são puro romance, como quando ela diz "I wanna shave my legs for you" em Pretty Little Birds. Acho que desde o Melodrama não ouvia um álbum que me dava uma necessidade tão grande de sentar e escrever a mão todas as letras. Muitas músicas são sobre amor, a perda do amor, mas é essencialmente um exercício de abandonar o controle e abraçar suas fragilidades e, meu Deus, como estamos precisando disso.
Músicas favoritas: Drew Barrymore, Supermodel, Prom, 20 Something, Normal Girl
Pra internet ser legal de novo
A cada edição vou indicar aqui algum projeto online que ajuda a internet a ser legal de novo. Se você tem algum projeto bacana ou conhece algum trabalho que todo mundo precisa conhecer responde esse e-mail me contando o que é (a última edição já rendeu uma lista maravilhosa!).
Para inaugurar essa mini-editoria, vou indicar o Entusiastas, um projeto no Medium onde duas amigas muito queridas escrevem sobre tudo aquilo que as faz sentir muito, sentir adoidado. Meus textos favoritos até agora foram: A coragem de abraçar a vulnerabilidade, Minha avó O'Hara e Quando aprendi, quando eu ensinei. O projeto aceita colaborações de todo mundo que quiser compartilhar seu entusiasmo sobre alguma coisa. A Tary e a Analu também têm ótimos canais no Youtube que sempre aparecem nas minhas seleções de links, mas não custa reforçar a recomendação -- lembrando que o Youtube também está mudando seus algoritmos de divulgação e monetização, então vamos apoiar nossos pequenos produtores de conteúdo!
Links, links, links
- Desde que o Valkirias voltou do recesso já publiquei três textos por lá: lições de Chimamanda Ngozi Adichie para educar pessoas feministas; sobre o filme Extraordinário, adaptação de um livro que amo de paixão; e uma crítica de Me Chame Pelo Seu Nome, inaugurando os trabalhos do Oscar no site. Como sempre, prestigiem!
- Hugh Hefner e a falácia da liberação sexual feminina pela Playboy - estou editando esse texto desde setembro (!) e ele finalmente saiu, uma colaboração de migas lá no Valkirias;
- Cinquenta e quatro vezes amor - uma análise aprofundada que a Seane fez sobre as letras de feminejo, misturando Foucault, Virginia Woolf e Maiara & Maraisa, o tipo de academia que eu acredito e quero viver;
- The Anthropocene Reviewed - o John Green tem um novo podcast com resenhas aprofundadas sobre coisas do antropoceno e não tem como não amar uma pessoa que transforma tudo -- inclusive refrigerantes -- em uma reflexão sobre mortalidade;
- A internet está ficando chata? - o papo da última edição chegou no podcast do Estadão \o/
- Saudades do barulhinho da internet discada - a Taize também escreveu sobre a internet de antigamente e sua história nela;
- A evolução linguística do termo "like";
- Are you there, God? It's me, The Good Place;
- When romance met comedy - hoje é Valentine's Day e estreou no AV Club uma nova coluna que vai analisar a história das comédias românticas, começando com O Diário de Bridget Jones
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Obrigada especialmente pelas respostas da última edição, é bom saber que não estou sozinha nessas pirações. E no fim de janeiro essa newsletter completou dois anos de existência, então parabéns para nós e desculpa qualquer coisa \o/ Uma das primeiras edições foi sobre a minha relação estranha com o carnaval e como eu não sabia direito se gostava da data, e esse ano pulei carnaval de verdade pela primeira vez e estou vivendo a singular experiência de glitter dentro do ouvido e no couro cabeludo. É mais uma era que termina e outra que começa. Feliz quarta-feira de cinzas a todos! Sigamos!
Stay beautiful!
Yours truly,
Anna Vitória
Sempre que quiser, responda essa newsletter como um e-mail normal e escreva para mim, vamos continuar conversando depois que o sinal bater.
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