para ler ouvindo taylor swift - state of grace
Não lembro o que escrevi no primeiro aniversário dessa newsletter, tampouco no segundo. Não fiz uma edição especial comemorando 50 cartinhas enviadas ou algum outro número redondo que deveria representar um marco importante, mas quis o destino que a última edição, sobre o show do Harry Styles, fosse a #69. Foi só uma coincidência engraçadinha, mas também foi um desses momentos em que o aleatório se encaixou perfeitamente a um sentido narrativo e semiótico mais amplo, da mesma forma que o conteúdo foi uma espécie de clímax de uma narrativa maior que fui construindo sem querer ao longo desses dois anos e meio (trívia: a edição #50, no fim das contas, foi sobre o disco do Harry).
No Twitter, o Diego disse que a #69 era o meu Guerra Infinita, “porque foram várias newsletters de construção pra essa edição, que ainda é um crossover”. Sei que estou fazendo alguma coisa certa quando recebo esse tipo de resposta, que pode até ser só uma gracinha, mas vem de encontro a algo que penso muito e tenho pensado ainda mais nos últimos meses, que é a elaboração de narrativas, principalmente das nossas narrativas pessoais.
Na edição #61, graças a Crazy Ex-Girlfriend e a alguns fracassos particulares, descobri que a vida não faz sentido narrativo. Já faz algum tempo que percebi que tudo é caos e vamos todos morrer mesmo, mas de repente ficou impossível desver essa verdade, que assusta tanto quanto liberta. É nessa corda bamba que tenho andado desde então e tenho pensado sobre isso um pouco demais da conta, principalmente porque nos últimos meses tenho vivido coisas ridiculamente narrativas. Eu mudei de casa, cortei o cabelo, troquei de emprego, mudei oficialmente de área, voltei a trabalhar fora, deixei pra trás o bairro onde morei por quase 15 anos, com tudo que eu conhecia e amava, até os cachorros que conhecia pelo nome. Teve a Copa (a Copa!), o fim do meu curso em São Paulo, o começo de um novo projeto, a retomada de outro, um último voo atrasado que me deixou horas no aeroporto meio que pra dizer que eu estava indo embora mas não exatamente, não tão fácil.
Esses são marcos carregados de um simbolismo que, no fundo, é forjado num esforço que fazemos para sobreviver em meio ao caos, para fingir que temos algum controle sobre essa bagunça toda. Mudanças externas, primeiras e últimas vezes, aniversários, dias santos: isolados, eles não significam muita coisa. A gente muda de casa e os problemas vêm na mala, ou enrolados em plástico bolha, em caixas onde se lê FRÁGIL escrito de pincel atômico, em uma sacola com tudo aquilo que tiramos da gaveta de tralha e juramos que aquela vai ser a mudança que vai nos forçar a dar um fim em tudo, até que fica difícil demais e deixamos pra depois. Um emprego novo pode ser muito legal, mas depois de duas semanas vira trabalho de novo e, de novo, não foi dessa vez que você fez amigos. Não é um corte de cabelo que vai me transformar naquela versão mais descolada, mais leve, mais alegre e mais bonita que eu gostaria de ser. Os problemas realmente parecem menores quando você tem a chance de dividir as roupas do armário por cores, comprar um novo creme pro rosto ou um caderno de capa bonita, mas tudo isso são lorotas que inventamos para esquecer que estamos, e sempre estaremos, vivendo no Processo.
Mesmo consciente disso tudo, foi difícil ignorar a força simbólica daquela primeira noite na casa nova. Eu estava viajando durante a mudança e acompanhava o andamento das coisas por meio de mensagens, fotos e ligações da minha mãe. Foi fácil enxergar isso como um supercut em que de um lado da tela ela corria com caixas e quadros, enquanto eu alternava os sentidos da linha amarela do metrô de São Paulo. Então chega o momento em que a música para, as duas telas se fundem, e entro em casa com minha mochila listrada, tão cansada que tenho vontade de chorar quando vejo que ainda é impossível entrar no meu quarto cheio de caixas e um cheiro forte de tinta; os 24 anos de vida que carreguei até ali e muitos, muitos livros para colocar no lugar.
Eu só queria chegar em casa e esse lugar ainda não existia, não tão fácil, mas comecei a criá-lo sem saber quando me tranquei no banheiro para chorar umas dez lágrimas teimosas antes que alguém me visse.
Ainda tinha um date naquela noite e minhas roupas estavam todas espalhadas em malas e caixas diferentes, tornando mais difícil ainda a missão de me vestir. Eu queria parecer charmosa e interessante, a protagonista forte e aventureira do filme da minha vida, mas só conseguia pensar que não fazia as unhas há dois meses e minhas mãos com unhas roídas e feridas de quem arranca as cutículas de nervoso (e só percebe o estrago quando os dedos começam a sangrar) mostravam que eu estava tão bagunçada quanto meu quarto. Tudo passou novamente como um borrão acelerado, um momento para a trilha sonora brilhar (cue to The Chiffons - One Fine Day), até eu entrar de novo em casa já no meio da noite e desistir de dormir depois de uma hora e meia encarando o teto de um quarto novo no mesmo colchão de sempre. Vi o sol nascer da sacada, numa vista nunca antes vista, e como toda chuva numa cena de cinema, aquele amanhecer era duas mil metáforas prontas ao mesmo tempo, o recurso narrativo clichê ideal para uma história meio besta como a minha.
O sol nascendo também representa algo que dá sentido e me consola quando penso no nosso mundo sem sentido: vivemos um dia depois do outro e isso é tudo que nós temos. Nossa casa e nossa história são feitos de um dia depois do outro.
O que eu queria mesmo dizer é que a vida é muito, muito difícil, e não temos garantia nenhuma sobre nada e eu gosto de saber que existe pelo menos um aspecto da vida em que o limite nos encontra com o espetáculo redentor de uma tempestade. Eu preciso de uma resposta programada. Eu preciso de um dia de chuva depois de maior onda de calor de todos os tempos, preciso me permitir colocar os braços pra fora pra sentir os pingos e dormir com as janelas abertas. Eu preciso de algo maior que justifique as meias molhadas, o medo de raios e os voos cancelados, porque chuva é água caindo do céu e quando ela cai não existe absolutamente nada que a gente possa fazer - e eu preciso muito que isso seja bonito de alguma forma porque assim posso fazer as pazes com todas as outras coisas que não posso controlar.
Na edição #60, falando sobre chuvas, eu escrevi isso aqui e nem lembrava, mas a Anna Vitória do passado já tinha algumas ideias que me ajudaram a entender melhor o que eu estou pensando e tentando colocar em palavras há algumas semanas. Além de chuva, eu também preciso muito ver o sol nascer.
Escrever é minha forma de organizar as coisas no meio do caos, de elaborar algum sentido nisso tudo, mas o que fiz quando minha vida virou uma narrativa pronta foi parar de escrever. Pensei em retomar a newsletter durante a Copa, num exercício divertido que fiz comigo mesma e com amigos, que é o de relembrar onde estávamos, quem éramos e o que estávamos fazendo nas últimas vezes que o Brasil perdeu. Na última vez que o Brasil perdeu tinha um garoto no meu sofá, e nós estávamos ouvindo música e tomando vinho, um momento ridiculamente perfeito para o texto que eu estava pensando em escrever, mas não consegui. Eu não sabia como aquilo tinha acontecido, mas sei que se quisesse poderia reconstruir casos e acasos até aquele momento num documento em branco do Word, mas aí não teria a mesma graça.
Às vezes uma estrela explode no céu e nada acontece, mas às vezes a explosão cria um universo. Eu acho muito mais fácil enxergar deus no mistério que separa essas duas.
Uma amiga disse que às vezes minha vida se parece com algo que eu escreveria se pudesse escrever a minha vida (o Segredo é real) e descobri que é precisamente nesses momentos que preciso deixar meu ímpeto narrativo de lado. Porque a história escrita nos dá a ilusão de controle, nos deixa com a impressão que o encadeamento dos fatos é fruto de uma ordem superior, e não o resultado da mistura do caos com as escolhas que fazemos. Não é porque tudo deu certo, porque somos muito legais e bonitos, porque seria perfeito no papel, que vai ser um final feliz. Também não somos reféns eternamente condenados pelos nossos erros ou decepções do passado: às vezes parece que a história se repete, mas não somos mais os mesmos, temos direito de fazer escolhas diferentes e mudar o fim.
Foi parte do meu processo terapêutico não escrever sobre a minha vida porque preciso lembrar que o que acontece não é produto de um sentido narrativo, mas de escolhas difíceis e outras muito óbvias - mensagens mandadas de madrugada depois de 30 segundos de coragem insana, aquele “vamos fazer isso juntas, a gente consegue” que vale mais que a enorme lista de prós e contras em cima da mesa, decidir desafiar 30 anos de traumas e fazer diferente, aceitar ajuda, todos os dias que não tive medo de sair de casa e coloquei um pé na frente do outro e entrei sozinha dentro de um avião ou passei a noite no meio da estrada, anos e anos e anos fazendo uma mesma coisa na esperança de alguém notar e um e-mail cara de pau dizendo oi, vamos almoçar, eu tenho uma ideia, todos os e-mails cara de pau que enviei quando decidi parar de grifar o livro da Amanda Palmer para aplicar o que aprendi, pedir de verdade as coisas que eu quero para as pessoas certas e não ter medo de aceitar - e, claro, sorte.
“No one deserves anything, but sometimes we get lucky.”, escreveu a Helena Fitzgerald no meu mais recente texto favorito, e essa frase me deixa acordada à noite. Ninguém merece nada, mas às vezes a gente dá sorte.
Ou um azar do caralho.
Minha primeira ideia para esse texto era falar sobre casa; minha casa nova, minha casa antiga, os outros lugares onde já morei e as relações profundas que construímos com esse conjunto de chão, teto e paredes que nos guardam do mundo lá fora. Todo o processo de mudança foi muito difícil internamente, ainda que ela só significasse coisas boas. Estávamos indo para um lugar maior, melhor e todo nosso, mas naquele momento eu só conseguia pensar que estava deixando pra trás o lugar onde mais me sentia segura num dos momentos em que estava mais frágil. Eu só consegui viver, crescer e fazer tudo que fiz no primeiro semestre de 2018 porque sabia que minha casa estava sempre me esperando de volta - uma casa feita sobretudo de pessoas, mas que também era o meu quarto, e as luzinhas na estante, e o sol na sala, e os vizinhos que conheciam meu cachorro e o levavam de volta quando ele fugia, as padarias do bairro, o porteiro que me mimava e aparecia no fim do dia pra jogar baralho com meu avô quando ele visitava, minha linha de ônibus favorita apesar do motorista que me odeia, o caminho que fazia todos os dias indo e voltando da faculdade, e depois indo e voltando do meu primeiro emprego, o ponto exato a partir do qual não tinha mais medo de andar mesmo tarde da noite, de madrugada, porque sentia que depois de um certo quarteirão eu estava em casa e nada de ruim aconteceria comigo ali - com todas as pequenas coisas que fazem com que um lugar seja um lar.
Cheguei nesse lugar depois de ser arrancada da minha infância a fórceps, direto do divórcio dos meus pais, e foi lá que aprendi a ser eu mesma de novo, que eu descobri quem eu era depois que tudo mudou, só que isso demorou anos. Tinha muito medo que demorasse anos até que eu pertencesse de novo a um lugar, foi como se me tirassem de novo, de uma vez, aquele cordão de segurança.
(Eu sou uma pessoa muito dramática.)
Só que não foi isso que aconteceu. Minha nova teoria é que não existe momento melhor para fazer uma mudança do que aquele que parece o pior momento. Começos e fins são histórias que inventamos, mas é durante o Processo que mais nos parecemos com a bagunça que somos de verdade e é ela que nos faz fincar raízes. É o conteúdo de caixas que você não teve tempo de empacotar direito e só jogou lá dentro tudo que estava em cima da mesa, são os livros espalhados por todas as superfícies do quarto até as estantes ficarem prontas e ir no supermercado do bairro novo quatro vezes no mesmo dia porque toda hora descobre-se que falta uma coisa diferente.
Quando passou o frenesi da mudança e as coisas pareciam mais ou menos no lugar, lembro que disse que finalmente começaria a colonizar (eu sei, é uma palavra de um peso semântico horrível, mas não consigo pensar em nada melhor para esse contexto) meu apartamento fazendo as coisas que fazem com que me sinta com os pés no chão. Acordei antes de todo mundo para fazer café sozinha na hora que a cozinha se torna a minha cozinha, acendi velas para tomar um banho quente e demorado ouvindo as minhas músicas. Mas, de novo, tudo isso era uma performance, um ritual inventado que significa muito pouco sozinho, especialmente quando queremos demais que ele represente algo maior.
Na verdade, comecei a tomar posse da casa naquele primeiro dia que chorei no banheiro. Nos jogos do Brasil que vimos na sala, no sofá onde trabalhei com o notebook no colo vendo os jogos de outras seleções e onde também dormi no meio da partida para acordar só na prorrogação. No pré-churrasco de inauguração da casa, quando ensinei minha mãe e minha avó a coreografia de "YMCA". Na porta do prédio, de madrugada, ainda com um pouco de medo da rua escura, vendo dois garotos tentando fazer um carro pegar. Nas muitas noites acordada em menos de três meses, na quantidade de vezes que minha mãe mudou o lugar dos móveis da sala dizendo ser aquela a configuração definitiva (e contando), nas visitas que recebemos avisando que ainda não estava tudo pronto não-repara-a-bagunça, nos cafés da manhã na sacada com o pires apoiado no colo porque a mesinha antiga já não cabe mais ali, nas orquídeas e no vaso de alecrim que se adaptaram bem demais ao seu novo lugar ao sol. Foi na sala onde sentei e deixei que a cabeleireira cortasse fora metade do meu cabelo e percebi que, olha só, aquela versão mais leve, alegre e descolada estava dentro de mim aquele tempo todo.
De repente, e sem perceber, eu estava em casa.
O que mudou entre aquela menina de 11 que queria desesperadamente sua vida de volta e quem eu sou agora, é que esses 13 anos que nos separam me ensinaram a deixar que a vida acontecesse. Acho que era sobre isso que eu queria escrever desde o início, mas não tinha como chegar aqui sem falar sobre histórias. Nossa casa é uma das metáforas mais concretas que temos sobre a história que construímos todos os dias e percebi que para escrever sobre minha casa, para encontrá-la dentro de mim, eu precisava viver dentro dela primeiro. E pra conseguir viver, tive que aprender que não existe lar mais sólido do que aquele que tenho em mim. Eu tô aprendendo.
***
Na edição #24, publicada em agosto de 2016, eu também falei sobre mudanças, sobre cortar o cabelo, sobre mudar de casa. Levei um susto quando reli esse texto por me ver de novo passando por um ciclo de mudanças e pensando sobre as mesmas coisas, num mesmo mês de agosto. No texto eu também falava sobre a Taylor Swift, porque tudo que eu estava vivendo me fazia pensar muito sobre o que ela escreveu no encarte do 1989. Enquanto escrevia esse texto, pensava sobre uma frase que o Rob Sheffield escreveu em sua resenha do reputation e nunca esqueci, porque ela tem tudo a ver com o que estou vivendo agora: "how it feels when you stop chasing romance and start letting your life happen".
Eu não sei o que essas coincidências significam e acho que existe uma sincronicidade bizarra aí que é impossível de ignorar, ao mesmo tempo que são fatos que não querem dizer absolutamente nada além de mostrar que penso muito sobre a Taylor Swift. O que eu realmente queria escrever desde o começo é que tô aprendendo a contar comigo e a enxergar o poder das minhas escolhas e gestos como única forma de controle, mas também tô aprendendo a deixar que as coisas aconteçam e a confiar no mistério do caos. Sei que isso não faz muito sentido - se fizesse não seria tão difícil de escrever.
Essa é a edição #70, enfim um número redondo para um marco importante.
* todas os gifs foram retirados do clipe de delicate, da taylor swift.
Links, links, links
Edição especial das coisas que andei escrevendo e publicando enquanto estive fora (não é muita coisa, tá tudo bem):
- Mulheres & Escrita: Fui entrevistada pela Camille, do Pendências e Depósitos, e falei um monte sobre escrita, feminismo, inspirações e citei minha terapeuta mais vezes do que o necessário;
- Vivendo a distopia com Octavia E. Butler: A Parábola do Semeador: meio resenha, meio diário de crise, ou o que deu pra fazer do impacto que Octavia Butler deixou em mim;
- É modinha ser selvática: 7 novas garotas do rock para conhecer e amar: título autoexplicativo da minha contribuição para o especial do róque no Valkirias, em que escrevi um pouquinho sobre Mitski, Soccer Mommy, Any Other e outras garoutas que têm sido minha trilha sonora nos últimos tempos;
Ufa, agora acabou!
Hello stranger, como vai você?
Aos que chegaram agora e aos estranhos que estão aqui desde sempre, bem-vindos à nova temporada de No Recreio. O que vai mudar? Nada, só a identidade visual e meu cabelo que está bem mais bonito. Aos que não me conhecem, meu nome é Anna Vitória, sou jornalista, uma das editoras do Valkirias, tenho um poodle chamado Francisco e penso muito sobre a Taylor Swift. Aqui é um espaço meio sem regras com textões cheios de palavras doida e papos sobre vulnerabilidade, ~*~sentimentos~*~, vida adulta, delírios de tiete, trechos de livros, desgraçamentos de cabeça e histórias de alguém que assistiu a comédias românticas demais.
Não sou a melhor correspondente do mundo, mas sempre adoro receber todo o tipo de resposta, principalmente aquelas que terminam com "não sei por que escrevi tudo isso mas queria compartilhar". Dá pra ler quase todas as edições anteriores aqui e alguns textos são reproduzidos no Medium. Para perguntas, recomendações de livros (The Hating Game, Carry On e Anna Karienina são minhas únicas respostas, sempre), minha música favorita da Taylor Swift e consultório sentimental, temos sempre o Curious Cat e o Twitter.
Espero que gostem, eu só estou aprendendo a viver e tentando ser uma pessoa melhor.
Stay beautiful e até a próxima!
Yours truly,
Anna Vitória
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