Atenção: essa não é uma newsletter de bad.
Não sei se o amor vence no final ou se é a maior arma que temos. Na verdade, acho que não. Os últimos meses se esforçaram bastante pra me ensinar que não.
Precisamos de estratégias, de educação, de canais de informação acessíveis, de proteger os mecanismos institucionais com os quais ainda podemos contar, das universidades públicas, de nos unirmos como democratas de forma pragmática, de sair do DCE e voltar pras bases, de ocupar espaços e de muitas outras coisas que pessoas mais capacitadas que eu estão escrevendo e que vocês certamente já estão lendo à exaustão. Não é o amor que vai nos salvar, porque dizer isso é acreditar que existe um sentido narrativo em que o bem sempre vence no final, ou que há um senso inato de justiça no universo que faz a história cobrar e corrigir os erros do passado. Se isso fosse verdade não estaríamos nessa situação.
Somos nós fazemos a história, para o bem e para o mal, e o amor só vai vencer se fizermos alguma coisa, agora. E ainda assim: sei lá, viu.
Mas e quanto ao resto, o que nos resta?
É isso que tenho me perguntado sempre que abro um novo documento em branco para tentar escrever alguma coisa.
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Em 2018 chorei mais por política do que chorei por amor, mas é sobre amor que eu sei escrever. Nos últimos meses, no entanto, me parecia impossível falar de amor, porque tudo que eu queria era arranjar briga na rua e mandar todo mundo tomar no cu. Deixei a mesa do almoço de família em dois domingos diferentes, as mãos tremendo tanto que não conseguia segurar o garfo. Chorei na mesa do trabalho algumas vezes e numa dessas precisei ir correndo até o banheiro porque tive vontade de vomitar depois de ler três notícias de assassinato diferentes, três crimes de ódio em nome de um candidato que agora é nosso presidente. Rompi uma amizade, e acho que foi a primeira vez que cortei uma amiga próxima da minha vida de modo tão ativo. Agora já voltei atrás, mas foi porque as circunstâncias mudaram. Sei que poderia ter virado as costas pra sempre e acho que pela primeira vez entendi de verdade o que é guardar um rancor.
Cito tudo isso porque até então não sabia que tinha todas essas coisas dentro de mim e fiquei assustada com a força da minha indignação. Sei que essa raiva é justa e me permiti ser tomada por ela, consolada pela fala de uma amiga que disse que se sentia melhor pela certeza que todo esse desgaste é por algo muito importante e que vale a pena lutar, mesmo se for pra perder. O efeito colateral, no entanto, foi um coração mais fechado, mais cínico, que me fez endurecer mesmo com pessoas queridas e me deixou paralisada de medo por algumas semanas; um mal estar relacionado à Conjuntura Política Atual, claro, mas que contaminou todos os setores da minha vida como se eu tivesse tomado veneno. Tive uma recaída ansiosa, emagreci, perdi muitos fios de cabelo, questionei afetos e tudo que construí nos últimos meses. Brasil de lado, 2018 vai ficar marcado por um crescimento emocional que fez nascer a versão mais forte e mais feliz de mim que conheci em muitos anos, uma versão "sábia e graciosa", nas palavras da minha psicóloga, e poucas vezes um elogio me deixou tão contente. Fiquei com medo de ver tudo isso ir embora e de ser esmagada pelo mundo de novo. Me senti ridícula por quebrar tão fácil e hipócrita também.
Como continuar escrevendo sobre vulnerabilidade em um mundo como esse? Quem sou eu, na minha redoma de privilégios, para falar sobre corações abertos? Como ser resistência se não estava resistindo nem aos meus dramas de mulher-branca-de-20-e-poucos-anos?
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No meio dessa bagunça emocional, aconteceu o show da Lorde. Eu havia passado as semanas anteriores ouvindo Death Cab For Cutie sem parar - eles também tocariam no festival, uma trilha sonora muito mais adequada ao meu desconsolo - e era o show para o qual eu estava mais ansiosa. Sorrow drips into your heart through a pin hole, just like a faucet that leaks and there is comfort in the sound. Dois dias antes, no entanto, me dei um ultimato e me obriguei a parar de sofrer com uma determinação que até me impediu de aproveitar a experiência de ver Death Cab em todo o seu potencial. Foi lindo, mas tudo que eu queria era dançar.
Comecei a chorar assim que a Lorde pisou no palco toda linda vestida de vermelho, e a única outra vez que me emocionei tanto diante da simples visão de um artista foi quando vi o Paul McCartney. No caso dele, a emoção vinha do fato de me ver diante de alguém que eu não acreditava (e ainda não acredito) ser real, mas com ela foi o contrário. Era como reencontrar uma amiga muito especial depois de meses trocando confidências por e-mail, as letras do Melodrama como uma correspondência compartilhada entre todas as pessoas que estavam ali dividindo os mesmos segredos sobre viver, se apaixonar, sentir, quebrar a cara e descobrir coisas, e agora estávamos ali, juntos, para passar todas elas a limpo.
Lembrei que ano passado escrevi que não conseguia ouvir o Melodrama sem um certo distanciamento de época e de idade, como se aquela minha fase já tivesse passado. No entanto, as coisas que vivi esse ano estão muito mais próximas da energia do álbum do que qualquer outra experiência anterior, principalmente naquele exato momento do show em que eu estava absolutamente entregue, feliz e triste ao mesmo tempo, eufórica e dançando esquisito enquanto acalentava um coração partido recente e era tomada por uma onda de amor. Sentimentos conflitantes, sim, mas que nesse ano, e especialmente naquela noite, aprendi que poderia carregar dentro de mim sem que eu precisasse me curvar. We told you this was melodrama.
O que mais me emocionou no show foi pensar no que significava pra Lorde - Ella Marija Lani Yelich-O'Connor, 22 anos, vinda de uma cidade que ninguém conhece da Nova Zelândia - estar ali. O público do Popload cantou todas as sílabas de todas as palavras de todos os versos de todas as músicas, não teve um peeew ou tch-tch que tenha passado despercebido, e foi um dos shows - se não o show - com uma das energias mais poderosas que já vi. Fiquei imaginando como devia ser a sensação de escrever um disco falando sobre suas próprias experiências de viver, se apaixonar, sentir, quebrar a cara e descobrir coisas e ver isso ressoar de forma tão intensa, para tantas pessoas, em lugares tão distantes. Ela estava visivelmente emocionada, os olhos marejados, ali sentada na beirada do palco vendo uma multidão entoar as suas palavras, palavras que diziam "in our darkest ours I stumble on a secret power" em que esse poder, que ela associa à bruxaria, é a escrita, e a escrita como exercício de vulnerabilidade.
Ter a chance de estar lá e fazer parte de tudo isso me deixou muito comovida porque senti que aquilo era uma manifestação muito genuína do espírito da minha época e eu era parte daquela história. Cresci ouvindo músicas de gerações anteriores, me apaixonando por bandas sem ter vivido seu auge, internalizando, adaptando e ressignificando contextos que não eram os meus em busca de algo que falasse comigo. E embora eu sempre encontrasse - afinal, é isso que a boa arte faz - ainda havia o desconforto de ter que me encaixar, me apropriar. No show da Lorde, me senti protagonista. As histórias que ela narra são histórias que eu e meus amigos vivemos, são lugares que conhecemos, sentimentos que experimentamos pela forma como nos relacionamentos. Depois do show, quando estava num vagão de metrô vazio observando minhas amigas se pendurando nas barras, dançando e fazendo farra, enquanto ríamos alto e falávamos bobagem numa mesa cheia de milkshakes e batatas fritas, enquanto fotografávamos nossas roupas - cada uma de nós vestida como uma versão hiper de si mesma - percebi que a própria Ella poderia estar ali.
Ela é uma de nós e é por isso que sua música conversava com quem estava ali daquele jeito tão profundo e genuíno, e também porque ela colocou o coração inteiro em seu trabalho, as partes boas e as ruins, o que havia de feliz e triste, e essas partes que estão dentro de nós vibraram em resposta. Não por acaso "Liability" foi a música que me fez chorar com mais força, pois fala de uma dor muito profunda, mas em vez de se fechar diante dela depois de mais uma decepção, Lorde a tira pra dançar. The girl that I love, the only love I haven't screwed up. She is so hard to please, but she is a forest fire.
No início do ano, quando escrevi sobre o show do Radiohead, defini a experiência como um encontro de solidões compartilhadas. Dia 15 de novembro foi diferente, foi o oposto da solidão.
Estávamos ali juntos como jovens adultos aprendendo a navegar pelos próprios sentimentos num mundo que rejeita sentimentos complicados, mas também como uma geração obrigada a viver nos escombros de uma sociedade cujas instituições estão falidas, mas ainda não há espaço para o novo florescer. Tudo que a geração anterior nos prometeu, uma felicidade na forma de casa própria e emprego estável, não faz sentido e nem existe mais, mas insiste em nos puxar pra baixo. Uma onda conservadora e fascista está ameaçando os progressos que conseguimos fazer, tentando fechar as portas que abrimos na porrada. São portas que estão sendo abertas há séculos, aos poucos, e que nunca mais se fecharam e nem vão se fechar, não totalmente, mas como é difícil segurá-las. É uma época curiosa (horrível) pra se viver, crescer e descobrir seu lugar no mundo, mas estamos juntos e isso tem que significar alguma coisa. Estamos assustados e com medo, e isso cria armaduras, mas existem momentos em que nos despimos de tudo isso e uma potência muito grande surge. Naquela noite, senti meu coração se costurar de volta.
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No final da apresentação, quando a multidão se dispersava, ia aos poucos encontrando várias pessoas queridas e todas me pareciam igualmente transformadas por aquela experiência. Abracei muita gente, porque era só isso que eu conseguia fazer, era só isso que eu queria fazer. Senti a mesma coisa em setembro, quando participei de uma manifestação. Depois de semanas assustada, com medo e sendo esmagada diariamente pelo noticiário, foi muito importante sair de casa, encontrar pessoas que estavam do meu lado pela liberdade e pela democracia. No meio do ato começou a chover, uma chuva forte de primavera, e ninguém dispersou. Estávamos ali por uma coisa séria, mas mensagens de luta eram entoadas no ritmo de funks e marchinhas, e encontrei e abracei tanta gente querida que parecia um bloco de carnaval, o mesmo bloco que fui esse ano e também foi pego de surpresa pela chuva, onde abracei várias pessoas feliz e bêbada com glitter escorrendo pelo corpo. O próprio carnaval, não podemos esquecer, é uma festa de resistência, quando o medo se transforma em farra, afronta e deboche, e fazemos festa sobre o desconforto de carregar alegria e tristeza no peito. A gente combina de se amar pra sempre por uma noite, a gente combina de não morrer, e mesmo que isso pareça ingênuo quando as luzes se acendem e a festa termina, é da energia dessa união que precisamos lembrar pra seguir em frente.
As eleições de 2018 foram uma ruptura traumática com a ideia de segurança social que nós, que nascemos na democracia, nos acostumamos a viver. A experiência Brasil dos últimos cinco anos nos ensinou que essa ideia é, e sempre foi, uma ilusão, e vivemos numa sociedade definida pela escassez. É essa instabilidade, esse medo de perder o pouco que já temos, que cria monstros em resposta a medos que se sobrepõem a qualquer racionalidade. Essa é uma ideia que a Brené Brown desenvolve em A coragem de ser imperfeito:
"Testemunhamos acontecimentos que vêm dilacerando nossa sensação de segurança com tamanha força que nós os vivenciamos como traumas pessoais, mesmo sem estarmos envolvidos neles de forma direta. (...) A preocupação com a escassez é a versão da nossa cultura para o estresse pós-traumático. Ela surge depois de que estivemos no limite por muito tempo e, em vez de nos unirmos para resolver o problema (o que requer vulnerabilidade), ficamos zangados e assustados."
Mas com fascistas, racistas, homofóbicos, xenofóbicos e corruptos saindo do armário, tomando o poder, repito a pergunta: o que resta? O que nos resta?
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Não é o amor que vence no final, mas ele nos dá forças pra fazer o que tiver que fazer. O oposto da solidão. Não temos uma palavra para o oposto da solidão, escreveu Marina Keegan, um sentimento que não é exatamente amor e nem exatamente comunidade, mas isso que acontece quando estamos juntos. "Apaixonados, impressionados, admirados, assustados. E não temos que perder isso.". Não temos. Não vamos.
Faz semanas que estou com essas ideias rascunhadas como parte de textos diferentes que não iam para lugar algum porque no fundo eu sabia que eram ideias que precisavam ser articuladas juntas, mas não tinha coragem de fazê-lo, algo em mim dizia que seria vulgar ou inapropriado. Mas a vida é essa coisa sem ordem e sem educação em que coexistem emoções conflitantes, experiências pessoais e coletivas se misturam e a gente aprende a lutar enquanto aprende a viver, se apaixonar, sentir, quebrar a cara e descobrir coisas. É nessa bagunça que se forma a matéria humana de que somos feitos e acho que faz bem, para todos os efeitos, lembrar que é isso que somos.
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Não sei se é isso que vocês esperavam ler sobre um show, sobre política, sobre mim, mas não conseguiria escrever sobre nenhuma dessas coisas sem aceitar que tudo anda junto, me render.
Ontem abri meu e-mail e encontrei essa newsletter da Sofia fazendo exatamente esse movimento, que iluminou um monte de coisas aqui dentro e me deixou com vontade de fazer o mesmo. Lá fora existem problemas enormes que não sei como resolver nem escrever a respeito, mas aqui dentro, entre nós, é isso que tenho a oferecer. O oposto da solidão. E a gente segue em frente.
the end of the world is cruel. but it can be kind in the smallest of things.
o fim do mundo é, no contexto do livro, literal. mas a frase me vem nos mais diversos momentos, um lembrete diário da beleza no caos.
um lembrete diário de que o medo e o amor podem conviver em mim.
um lembrete diário de que sentir pode continuar sendo especial.
um lembrete diário de que há sempre a possibilidade de carinho e acolhimento.
e, assim, a gente segue tentando.
(sofia soter)
Stay beautiful, abram portas e janelas, saiam na rua, chorem em público, abracem pessoas e amem com todo o coração.
Yours truly,
Anna Vitória
Sempre que quiser, responda essa newsletter como um e-mail normal e escreva para mim ou me encontre por aí
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