Hello stranger, como vai você?
Nesse momento, na minha pasta de rascunhos do TinyLetter, existem quatro textos marcados como #76, nenhum deles concluído. Seus títulos são:
No Recreio #76: O Lá
No Recreio #76: Tudo que você faz me faz chorar
No Recreio #76: Namorados públicos
No Recreio #76: O avesso perfeito
Sinto que um texto pode existir quando consigo dar um título pra ele. Na verdade, sinto que ele começa a existir quando descubro o título. Às vezes ele já tem algumas centenas de caracteres quando o título nasce e normalmente é nesse momento que o processo ganha um gás e termino o texto de uma vez, mas às vezes passo meses, anos até, com um título na cabeça e nenhuma palavra escrita, e isso não me atormenta porque confio que se tem título uma hora vai nascer. Acontece também de terminar um texto sem saber qual é o título, e esse é o pior dos cenários, porque quase sempre preciso reescrever alguns trechos assim que surge o título. Quando comecei esse rascunho, o título era No Recreio #76: Intermission.
O primeiro filme com intervalo que assisti foi My Fair Lady, um musical de 1964 com quase três horas de duração. Minha versão em DVD preservou o intervalo (intermission) no seu tempo original, um tempo que antigamente era usado pra trocar os rolos de filme na sala de projeção e pra que as pessoas pudessem comer e ir ao banheiro num tempo em que essas funcionalidades não era tão acessíveis nos estabelecimentos e também os cinemas dependiam muito do dinheiro da pipoca. A locadora onde eu costumava pegar filmes na adolescência tinha uma versão bem antiga de O Poderoso Chefão - um filme de três horas - que também manteve o intervalo, eliminado pela edição mais nova e remasterizada do DVD que comprei. Já aluguei versões antigas de Titanic, It - A Coisa e Apocalypse Now que apesar de não terem intervalo vinham em discos separados, e portanto era preciso pausar o filme pra trocá-los.
Em Anarquistas Graças a Deus, memórias de infância de Zélia Gattai, a escritora conta que ir ao cinema era uma de suas grandes diversões de menina, menos pelos filmes e mais pelo modo como tudo nessa época se transformava em festa, e os divertimentos, apesar de poucos (ou talvez por causa disso), ganhavam uma importância imensa. Sobre os intervalos dos filmes na soirée das moças, ela escreve:
"As luzes se acendiam, os comentários no intervalo, enquanto todo mundo se ajeitava e se refazia da emoção sofrida, eram sempre os mesmos: 'Vamos ver como vão se safar dessa...!" Eu me levantava para uma rápida e movimentada escapulida: a torneira da pia quase sempre entupida do malcheiroso toalete era nesse momento disputadíssima pelas crianças na ânsia de tomar água. Eu me acotovelava entre elas e, mesmo que não chegasse a matar minha inventada sede, pelo menos molhava o vestido. Dava pontapés e empurrões nas portas das privadas, sempre ocupadas, mesmo não tendo necessidade de lá entrar. Tudo valia como divertimento. Corria pra frente, junto aos músicos, e passava um dedinho de prosa com Carmela Cica antes de voltar para o meu lugar. Puro exibicionismo. Gostava que todos soubessem da minha intimidade com a violinista."
Não é por acaso que o nome dessa newsletter é No Recreio, e acho que nunca nomeei algo com tanta facilidade. Recreio é uma palavra deliciosa, e é nítido que nossa vida começa a piorar quando substituímos "recreio" por "intervalo" para falar do tempo de pausa na escola. Em toda minha vida escolar sempre tive recreios e intervalos com 20 minutos de duração, mas é impressionante como no recreio dava tempo de comer, conversar, ir ao banheiro, passar na biblioteca e ver os meninos bonitos jogarem futebol, enquanto no ensino médio eu mal saía da sala em alguns intervalos porque achava o tempo tão curto que não valia a pena o esforço. No Recreio, o nome, surgiu antes que eu definisse a linha editorial da newsletter e acabou guiando tudo que mais gosto de fazer por aqui: uma pausa, uma brecha pra compartilhar histórias e besteiras, um tempo para pensar sobre sentimentos, um intervalo do cotidiano.
Muita gente me pergunta se o nome vem da música do Nando Reis cantada pela Cássia Eller, e apesar de sempre ter gostado muito dela a resposta é não. Na verdade, só parei pra realmente prestar atenção na letra de "No Recreio" depois da newsletter e alguns versos até que fazem bastante sentido com a minha linha editorial, tipo "Não acredito que vou gastar desse modo a vida/ olhar pro sol ver só janela e cortina", que é como ela imagina uma vida sem amor. Também gosto muito do verso que abre a música "Quer saber quando te olhei na piscina/ se apoiando com as mãos na borda/ Fervendo a água que não era tão fria", que não diz nada extraordinário, mas é um jeito muito bom de começar uma história e de falar de alguém.
Percebi que não estava conseguindo terminar nenhum dos meus textos porque não estava me permitindo uma pausa. Como uso a escrita muitas vezes para elaborar e entender melhor o que sinto, me peguei querendo acelerar processos internos para ter uma resposta e colocá-la em palavras, ou que evitava certos pensamentos por não ter coragem de encará-los por escrito, menos ainda de dividi-los com os outros ou até comigo mesma. É o tipo de coisa que pode parecer loucura para quem não escreve ou para quem tem uma relação mais saudável e menos simbiótica com a escrita, mas é a verdade que eu tenho. Eu, entusiasta de longas caminhadas e viagens de ônibus olhando a janela, que defendo cochilos no meio da tarde e cinema no meio da semana, não estava conseguindo suportar esse intervalo depois de um turbilhão. O intervalo é pra olhar o céu, tomar um café, esticar as pernas, mas é também na pausa que olhamos ao redor e pra dentro e percebemos a dor, a falta, a incerteza, e às vezes é mais fácil preencher o dia e a cabeça do que encarar essas fragilidades.
No dia 05 fiz dois meses de São Paulo e quando me perguntam como vai a vida aqui eu digo que anda maluca e corrida, o que não é exatamente verdade. Tenho feito dela essa coisa maluca e corrida pela dificuldade, pelo medo até, de me permitir uma pausa, uma pausa pra me divertir e ser feliz depois de chegar onde queria, de me permitir ter algo que depois posso perder, e uma pausa pra deixar doer e curar algumas dores passadas, de perder e deixar ir sem endurecer no processo por medo de dores futuras. Amar, seja um poodle, uma causa, ou alguém, é estar vulnerável à dor, é deixar a pele exposta às arestas da perda, da rejeição, da falta de controle. Recentemente tanto minha terapeuta como uma taróloga me colocaram diante de questões duras que eu precisava muito enfrentar: Por que você corre tanto? Por que você é tão cruel com você? Por que você transforma toda coisa boa em uma punição? O que você tá com medo de sentir? Do que você precisa pra acreditar que está pronta, que pode fazer o que quer? Por que é tão difícil aceitar uma coisa boa? Você não tem medo dos outros, você tem medo de você. Dói mas não mata, morre é quem deixa de viver.
Eu tinha acabado de entrar na faculdade quando li Como Ficar Sozinho, livro de ensaios do Jonathan Franzen. Já li e citei "A dor não nos matará", discurso que abre o livro, tantas vezes que posso recitar trechos de cabeça e não consigo falar desse texto ou desse livro com o distanciamento necessário a qualquer tipo de crítica, mesmo o autor sendo quem é. Franzen fala sobre a diferença entre amar e curtir, sobre casamento e escrita, sobre pássaros, ambientalismo e o mundo tecnocapitalista que nos anestesia num universo curtível e distante da realidade tangível, a tela que nos separa do mundo e das pessoas reais e faz com que eles pareçam desafios intransponíveis. Lembro desse texto a cada nova manifestação que vou e sinto meus ânimos renovados mesmo num cenário calamitoso, só por saber que não estou sozinha. Lembro dele quando me vejo incapaz de colocar meu coração na carreira que escolhi por medo dela me virar as costas, me escondendo atrás de justificativas de sobrevivência e argumentos políticos que, embora muito e assustadoramente reais, não me assustam tanto quando o medo de ver o mundo rejeitar aquilo de mais honesto que posso colocar no mundo, a rejeição de saber que o meu melhor não é suficiente. Lembro desse texto quando percebo que gosto bem menos de mim e de tudo que faço quando me encolho numa versão mais curtível de mim pra caber na vida de alguém, num outro trabalho, numa outra história.
E tudo isso, repito, não por necessidade ou por um objetivo, mas por medo.
"Quando ficamos trancados em nossos quartos, bufando, caçoando ou nos sentindo indiferentes, como fiz durante tantos anos, o mundo e seus problemas parecem desafios impossíveis. Mas quando saímos às ruas e temos relacionamentos reais com seres reais, ou mesmo animais reais, há o perigo bastante real de amarmos alguns deles. E então quem saberá dizer que rumo a vida tomará?"
Faz alguns meses e quatro rascunhos diferentes que tenho tentado escrever essas coisas, mas sem sucesso, porque é algo que não tem conclusão. Minha terapeuta disse que a forma de enfrentar isso era vivendo um dia depois do outro, a taróloga disse explicitamente que eu precisava colocar uma palavra depois da outra, aceitando que viver, sentir, descobrir, construir, se cuidar, se curar e se amar é um processo eterno de dias bons e ruins, certezas e incertezas, vitórias e derrotas, dor e felicidade. Não estou fazendo um favor a ninguém me escondendo, me protegendo e esperando ter todas as respostas para então dizer alguma coisa. Talvez eu ajude mais, a mim e aos outros, admitindo que não tenho, ninguém tem.
Esse texto não tem conclusão, não é uma análise sociológica, não é uma VIVÊNCIA, e não tem a pretensão de abarcar todas as nuances e recortes quando se trata de vulnerabilidade, trabalho, política e escolhas de vida. É um texto pessoal e subjetivo, com a seriedade e sinceridade de quem deixa escapar um segredo enquanto toma Coca Cola no recreio da escola, ou confessa num sussurro no intervalo do filme, enquanto a sala de cinema se esvazia e os ruídos aumentam, torcendo pra ninguém ouvir, mas com a esperança que alguém escute.
Depois do intervalo a vida continua.
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- Nesse esforço de me levar menos a sério, comecei um novo blog, Trash Advisor. A ideia é falar de coisas prosaicas e experiências mundanas como andar de ônibus e comer cachorro-quente. Escrever essas bobagens tem sido um recreio maravilhoso para minha própria cabeça e tinha tempo que a internet não me fazia tão bem. Aos entusiastas do formato newsletter, é possível receber as postagens por e-mail, basta se cadastrar na caixinha que fica na barra lateral;
- Participei do podcast Más Feministas, um dos meus favoritos, numa longa conversa sobre nossas vidas online e saúde mental inspirada na edição Pra Internet Ser Legal de Novo. Foi um papo incrível e se você curte esses assuntos, ouça no seu app favorito;
(É muito bom ser arroz de festa do podcast alheio, me convidem para falar nos seus podcasts!)
- O melhor filme que assisti esse até agora foi Nós, do Jordan Peele, e escrevi sobre nossos duplos malditos lá no Valkirias;
- Também escrevi sobre Homecoming, da Beyoncé, a melhor experiência audiovisual do ano;
("Uma revolução de valores", ensaio da bell hooks no livro Ensinando a Transgredir - clique aqui pra ampliar os trechos)
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Se cuidem, se protejam, sejamos corajosos e vamos que vamos!
Stay beautiful e lutem pela educação!!!
Yours truly,
Anna Vitória
Sempre que quiser, responda essa newsletter como um e-mail normal e escreva para mim ou me encontre por aí
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