para ler ouvindo the national - i am easy to find
Hello stranger, como vai você?
Nos últimos meses desandei a perder as coisas, e não de um jeito poético. A arte de perder não é nenhum mistério.
Começou no dia 4 de maio, quando deixei as chaves no banco de trás de um carro.
Sei que era dia 4 de maio porque há alguns anos eu e minhas amigas fizemos o projeto Um Dia, inspiradas pelo livro de mesmo nome do David Nicholls. O livro acompanha Emma e Dexter, Dexter e Emma, por 20 anos de suas vidas, sempre no dia 15 de julho, dia de St. Swithin. Em 15 de julho de 1988 os dois passaram juntos a noite de formatura e no dia 15 de julho de 2007... bom, esse vocês vão ter que ler. Talvez eu já tenha contado essa história antes.
Tenho minhas dúvidas se hoje acharia o livro tão bom como achei aos 16 anos, mas ele rendeu histórias que gosto de lembrar. Por conta de um texto que escrevi sobre ele, meu blog foi citado em uma coluna de jornal e eu comecei uma amizade engraçada com o jornalista, um cara que eu lia toda semana, religiosamente, que me deu muitas referências de música, cultura pop e jornalismo, e que acabou revisando o livro-reportagem que escrevi na faculdade anos depois. Hoje discordamos em quase tudo, eu não leio mais os livros que ele indica, mas nos nossos últimos e-mails concordamos sobre a última temporada de Twin Peaks e ele disse pra eu nunca parar de estudar e escrever, e pra dar um jeito de ir embora daqui.
Por causa de Um Dia, passei alguns anos registrando tudo que acontecia comigo no dia 4 de maio, data que eu e minhas amigas sorteamos para a nossa versão do romance. Contrariando todas as minhas expectativas, o dia 4 sempre reservava alguma lembrança especial, ou talvez eu só encontrasse uma narrativa interessante por estar muito disposta a ter um dia memorável. Em 2013, passei 12 horas no aeroporto. Em 2014, perdi um voo e ganhei de presente um dos melhores dias da minha vida no Rio de Janeiro. Em 2015, chorei, vi novela e senti saudades do Rio, de onde eu tinha voltado no dia anterior. Em 2016 tive uma crise de pânico que durou a noite inteira porque meu avô estava no hospital e eu tinha certeza que ele iria morrer.
Ele não morreu nesse dia, mas nunca mais escrevi porque não queria lembrar.
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No dia 4 de maio de 2019, um sábado, eu almocei no Lótus e fui para o parque do Ibirapuera. Fiquei um tempo deitada no sol ouvindo o disco novo do Vampire Weekend, que saíra no dia anterior, e tudo parecia tão bom e perfeito que me dei conta que era 4 de maio. Não lembrava o que tinha acontecido em 2017 e 2018, mas em 2019 ele definitivamente parecia um dia dos meus e a ligação da 99 informando que eu havia esquecido as chaves no carro só confirmou a impressão.
O motorista, que até hoje aparece como "Flávio da 99" na agenda do meu celular, era uma pessoa engraçada. Quando entrei no carro nós conversamos bastante e ele perguntou o que eu gostava de ouvir. Nunca sei o que responder nessas horas (lembro de um dia que entrei em pânico e disse ROCK, então o motorista colocou uma música do Coldplay), falei que ele podia escolher o som e ele colocou pra tocar um disco completo do Vitor Kley. Não vou nem tentar explicar aqui como minha vida se conecta à desse expoente do pop reggae catarinense contemporâneo, mas fazia muito sentido que de toda a frota de carros de transporte compartilhado de São Paulo eu fosse esquecer minhas chaves no banco de trás do Flávio, da 99, fã de Vitor Kley.
Flávio, da 99, me mandou os áudios mais engraçados que já recebi de uma pessoa aleatória, com seu jeito de falar cantado e sua infinita disposição pra me ajudar. Eu e a Clara morremos de rir quando ouvimos aquilo perto de uns poemas ruins gravados em pedra que achamos no meio do caminho. Seguimos andando pelo parque falando sobre um dos nossos amigos e de repente alguém grita meu nome. Era esse amigo, correndo descalço na grama, absolutamente eufórico por nos encontrar ali, num parque daquele tamanho, numa cidade desse tamanho, uma euforia em parte patrocinada por drogas recreativas, e em parte porque a vida às vezes é engraçada. Quatros de maio.
Já era mais de 10 da noite quando abri a caixa de correio da casa Clara e encontrei minhas chaves ali dentro, como mágica. Em seu último áudio, Flávio, da 99, me desejou uma vida maravilhosa e fiquei pensando que ouvir tanto pop reggae deve fazer algum bem.
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Desde o episódio das chaves, perdi meus fones de ouvido, três garrafas d'água, um travesseiro de pescoço, alguns prazos, e um único pé do meu par de meias favorito. Teve o dia que saí da padaria deixando minha mochila inteira pra trás. Em um intervalo de poucas horas, prendi meu piercing do nariz na cera quente, depois enroscado na toalha do banho, e quando fui tentar recuperá-lo pela terceira vez a argola caiu direto no ralo. Entendi o recado e deixei o buraco fechar.
A Clara fez um mapa conceitual com alguns dos meus planos para o futuro, coisas que só consegui dizer em voz alta pela primeira vez naquela tarde em que tomamos chá. "Ela quer o sol", foi a conclusão da pergunta "Mas o que a AV quer?", e eu fui embora deixando a folha na mesa, um sol desenhado com muitas palavras escritas ao redor. Sempre penso na pessoa que encontrou o papel, se leu e entendeu alguma coisa, se teve uma inspiração e vai executar esses planos muito melhor que eu pra quem sabe um dia escrever uma crônica fragmentada sobre objetos encontrados e coincidências do destino.
Sei que quem encontrou o papel jogou fora sem nem ler, mas fico pensando nisso mesmo assim.
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Algumas dessas coisas sei exatamente onde deixei mas nunca vou pegar de volta, outras eu só me dei conta de que haviam sumido sem história nenhuma pra contar. Me pergunto o que é pior: perder algo e nunca saber o que aconteceu, ou simplesmente esquecer um objeto no meio do caminho, deixar escapar por entre os dedos, sozinho no banco vazio do ônibus.
Tenho saudade deles, mas não é nada sério.
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Até a adolescência, eu era uma pessoa que perdia tudo. Lembro do fascínio que tinha pela coleção de sapatinhos de Barbie da minha melhor amiga de infância, em parte porque sempre gostei muito de sapatinhos de Barbie e os dela eram lindos, mas o que mais me impressionava era a capacidade de ter todos ali guardados - ironicamente, numa caixinha de sapatos de bebê - enquanto eu perdia tão rápido os meus que era como se minhas Barbies viessem descalças de fábrica.
Dado esse histórico, nunca liguei para jóias, porque não vejo sentido em investir tanto dinheiro em algo que se perde tão fácil. Penhor não vale nada nos dias de hoje e acho um desperdício deixar aquilo guardado.
Minha avó diz que toda mulher precisa ter suas joias pra ter algo seu pra vender se tudo der errado. Como já precisou fazer isso muitas vezes, ela tomou pra si a missão de me dar uma joia de presente de aniversário de tempos em tempos, "enquanto eu não morro pra você herdar as minhas". Sempre digo que não quero, que não precisa, que não tenho maturidade, que minha herança são os lenços e os livros, mas as caixinhas continuam aparecendo. Uma pulseira de formatura, brincos de pérola, argolas de ouro, um colar de família, uma pulseira com meu nome: dei tudo pra minha mãe guardar enquanto sigo comprando bijuteria barata, já que o destino de todos os meus anéis é ser esquecido na pia de algum banheiro público qualquer. Tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério.
Como pessoa que sempre perdeu as coisas, sei que as perdas muitas vezes vêm em ondas até que perco algo tão grande que me torno capaz de passar alguns anos sem perder nada. Isso acontecia tanto que no meu antigo blog tinha um subeditoria inteira que funcionava como um memorial de coisas perdidas. Escrevia sobre essas perdas na esperança de que aquele registro público fizesse minha atenção redobrada, mantivesse minhas mãos nos bolsos, me obrigasse a nunca mais sair de um carro ou ônibus de viagem sem checar os bancos e o chão. Meu superpoder. Nunca mais perdi minha lapiseira. Nunca mais perdi um voo. Achei que nunca mais perderia um celular.
Quando percebi que estava de novo vivendo numa sucessão de coisas perdidas, fiquei com medo da Perda Definitiva que romperia essa corrente. Na última terça, perdi meu quarto celular.
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Aos 17 anos perdi um celular na máquina de lavar. Foi exatamente isso que aconteceu.
Duas semanas depois, perdi um celular - emprestado - num ônibus, quando voltava de BH.
Em 2014, aos 20, perdi um celular no banco de trás de um táxi.
Assim como Flávio, da 99, seu Zé Manoel, da Rádio Táxi, foi um motorista inesquecível. Era uma sexta-feira de chuva e ele andava devagar com o carro no meio da pista. Errou o caminho duas vezes. Não enxergava direito na hora de dar o troco. Parou de fila dupla sem dar seta. Fez tudo errado, mas era um amor. Depois de uma noite em claro em profundo estado de desespero, seu Zé Manoel finalmente atendeu minhas ligações e disse que tinha achado o celular, sim. "Quando vi essa capinha [do Mickey, com orelhas] achei que fosse seu e guardei no porta-luvas." Fiquei pensando que ser completamente sem noção no trânsito faz bem.
Em 2019, aos 25, perdi o celular a caminho de um date. Esquecer o celular no banco de trás de um Uber é uma experiência que não recomendo a ninguém, mas serviu como excelente quebra-gelo para um primeiro encontro. Quando um estranho no bar é a única pessoa que pode te ajudar a lidar com seu celular perdido, ele deixa rapidamente de ser um estranho. Esse é o tipo de experiência que une instantaneamente duas pessoas, e ele ainda tinha uma história ótima sobre ter perdido o celular no banco de trás de um Uber na África do Sul.
Enquanto esperávamos a resposta da Uber, perdi também a noção da hora e de quantos drinks bebemos. Queria lembrar pelo menos quais foram, porque foi tudo muito bom e queria poder contar vantagem depois.
No dia seguinte, depois de outra noite em claro em busca de um celular, o motorista (Orlando, da Uber) finalmente retornou o contato - no celular do cara, que precisou ir atrás de mim no Facebook e torcer pra que eu visse a mensagem. A coisa toda foi muito mais logística e menos romântica do que parece contando assim, mas dois dias depois viramos duas doses de cachaça na noite mais fria do ano pra comemorar.
Não sei se vamos nos ver de novo, não sei se seremos amigos, mas nessas histórias ele vai ser pra sempre o cara que encontrou meu celular. I am easy to find.
Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério.
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Sei que tudo isso não significa nada, mas achei que seria engraçado contar. A arte de perder não é nenhum mistério.
Todos os gifs foram retirados de I Am Easy To Find, filme escrito e dirigido pelo Mike Nicholls com músicas do The National. Alguns trechos do texto foram retirados do poema "A arte de perder", de Elizabeth Bishop.
Stay beautiful!
Yours truly,
Anna Vitória
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