para ler ouvindo gal costa - viagem passageira
Nunca acreditei muito nessas histórias de pessoas que desmaiam e passam mal durante sessões de filmes supostamente perturbadores, até que Midsommar me fez vomitar.
Era uma sexta-feira 13 de lua cheia, pré-estreia do filme em São Paulo. Eu achei que seria muito engraçado ver um filme de terror no cinema, um filme supostamente perturbador como Midsommar. Não gosto de ler muito sobre filmes antes de assisti-los e não sabia nada da história, minhas únicas referências eram as imagens muito claras e alegres do trailer, um óbvio prenúncio de coisa ruim, mulheres de branco com flores na cabeça chorando e gritando juntas. E o Ari Aster, claro. Eu amo o Ari Aster. Gosto tanto do Ari Aster que assisti Hereditário duas vezes seguidas, e nas duas o final me deu vontade de gritar.
Eu tinha menstruado naquele dia, o que deixava tudo que já sabia sobre Midsommar muito mais engraçado, e a Clara recomendou que eu tampasse o umbigo antes do filme. Não tinha esparadrapo em casa, e não sei até que ponto acredito nisso, mas fui de macacão com uma blusa por baixo só por garantia.
Nunca tinha entrado no shopping Iguatemi antes, só passado na porta de ônibus, e sempre me impressionava com a loja da Tiffany logo na entrada, mas dessa vez entrei distraída porque estava conversando com o menino que eu poderia gostar. Tinha um show da Gal Costa naquele dia e nós tínhamos combinado de ir juntos, mas ele precisou viajar e fiquei com preguiça de ir sozinha, principalmente porque o preço do Uber de volta pra minha casa era quase o preço do ingresso, e a casa dele ficava convenientemente no meio do caminho (ah, o romance na cidade grande!). Gal Costa, cantora favorita dele e uma das minhas também, foi assunto de uma das nossas primeiras conversas, e duvidei que essa história fosse durar até a próxima apresentação dela em São Paulo. "Agora você tem companhia", foi o que ele disse quando anunciaram o show, junto com o emoji das duas menininhas de maiô preto e tiara de orelhinhas, e eu fiquei pensando em como seria assistir de mãos dadas com alguém o show de um disco que me lembra outra pessoa. A pele do futuro, finalmente.
Dois meses depois desses primeiros contatos, estávamos tendo uma das nossas conversas mais íntimas sobre relacionamentos. Eu estava num ônibus que descia a Teodoro Sampaio enquanto falava sobre como ser uma mulher que se relaciona com homens muitas vezes significa estar sozinha mesmo nos melhores relacionamentos, da minha frustração com isso em experiências anteriores, do meu incômodo com a dificuldade dos homens de dizer o que sentem e de se comunicar com clareza, de como é cansativo ter que processar os sentimentos pelo outro e do trabalho emocional que sempre cai nos nossos ombros e é tão alienante sustentar.
Nunca tinha conversado com um homem tão articulado emocionalmente, ele estava sentado no aeroporto esperando o voo enquanto se abria comigo como se participasse de um desses documentários sobre masculinidade que estão na moda agora. Falou sobre seu processo terapêutico, da relação com os pais e os amigos, de como havia pouco espaço pra falar e até pensar sobre sentimentos mais profundos quando se é homem e como era conveniente aceitar essa limitação e se fechar num casulo escuro, deixando tudo nas costas da parceira, da mãe, das amigas, da irmã, protegido pela eterna desculpa de que homem é assim mesmo. Foi a primeira vez que vi um homem disposto a dividir essa responsabilidade em vez de só pedir desculpas vazias e reclamar que é tudo muito confuso.
Todo esse francês de cara moderno e sensível foi gasto só pra me colocar algumas semanas depois nesse mesmo lugar de solidão e angústia que eu havia descrito com tanta dificuldade, me perguntando se tinha inventado essa conversa e todas as outras ou se estava exigindo demais dele, numa esperança ridícula de que ele fosse melhor que isso - ou será que o problema era comigo, que nunca seria boa o suficiente pra receber mais que isso? Chorei no chuveiro por conta de alguém que ainda nem sabia direito se realmente gostava, mas que por puro desleixo me fez distorcer a forma como gostava de mim. Goddamn, man-child.
Mas eu ainda não sabia de nada disso no dia do filme e fui puxada pra fora da nossa conversa cheia de vulnerabilidade e sentimentos pelo susto que levei ao me ver diante de uma loja da Chanel. Do lado, uma loja Louboutin com os sapatos de sola vermelha expostos na vitrine com suas etiquetas de preço de quatro dígitos, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Talvez eu seja caipira demais pra essa cidade, mas ainda me surpreendo quando lembro que esse tipo de coisa existe no mundo real e não só nos filmes ou nos reality shows da E!. Eu já estava quase dessensibilizada quando minha amiga me levou pra ver a loja da Cartier, e a sensação foi parecida com a de estar diante de um ponto turístico muito famoso que você já viu por foto milhares de vezes e ainda assim é tomada pela aura daquela paisagem ou monumento.
Falo Aura de Walter Benjamin como se fosse uma aluna do primeiro semestre de Comunicação, mesmo sabendo que era uma experiência diferente que ele queria descrever quando cunhou esse termo. As lojas do Iguatemi têm uma aura, mas uma aura do mundo invertido, algo que choca e encanta e hipnotiza ainda que no fundo de tudo só exista dinheiro. Me perdoa Lagerfeld, me perdoa Saint Laurent, é muito difícil pensar na moda como arte depois de uma surra de concentração de renda como a que o shopping oferece.
Pensar em Midsommar como um filme de terror provoca um sentimento de distorção bem parecido. Todos os elementos de horror do filme estão ligados àquilo que simbolicamente associamos ao bem, principalmente nos filmes de terror. Sol, dia, fertilidade e comunidade antagonizados pelos seus opostos que assumem a forma daquilo que devemos temer: escuridão, noite, sombras, solidão, morte. "Midsummer" é o termo que se usa para falar do solstício de verão e as festividades que acontecem por conta dele, principalmente em países nórdicos como a Suécia. Se esses dias marcam o momento em que a Terra recebe a maior incidência de raios solares no ano, em lugares como a Suécia, cenário de Midsommar, isso significa dias inteiros em que o sol não vai embora, e essas coisas que nos amedrontam não conseguem mais se esconder.
Vistas à luz do dia, certas ideias não parecem tão estranhas, e é perturbador enxergar tanto sentido nelas. Eu coloquei as mãos no rosto quando me dei conta que as pessoas pulariam do penhasco e dei um pulo na cadeira quando elas saltaram e cobri minha boca escancarada com as mãos, o horror daquelas imagens misturado com a ideia, e com o horror dessa ideia, de que sim, talvez seja mesmo melhor pular de um penhasco na frente de todos do que ter tanto medo de morrer. É mesmo menos radical morrer entubada num hospital?
Alguns meses depois estava lendo Para toda a eternidade, novo livro da Caitlin Doughty, e ela descreve um ritual de morte parecido com aquele praticado no filme. Dessa vez não fiz uma careta de espanto, só achei bonito.
Quando um pai morre, a pira é acendida pelo filho mais velho. Quando as chamas ficam muito quentes, a pele borbulha e é consumida. Na hora certa, um cajado de madeira é trazido e usado para abrir o crânio do homem morto. Naquele momento, acredita-se que a alma é libertada. Um filho, ao descrever as cremações dos pais, escreveu que "antes [de quebrar o crânio], você treme, pois essa pessoa estava viva algumas horas antes, mas quando bate no crânio, você sabe que o que está pegando fogo na sua frente é só um corpo, afinal. Tudo que estava ligado a ele se foi". A alma é libertada enquanto uma música indiana espiritual soa em um alto falante: "Morte, você acha que nos derrotou, mas nós cantamos a música da madeira em chamas".
Saindo da sessão, me senti estranhamente reconfortada pela experiência de andar de carro por São Paulo no meio da madrugada. Eu estava com medo da luz, eu estava com medo das flores, eu estava com medo de todas as certezas que Midsommar desestabilizou. Lembrava de uma blusa que tinha e era exatamente igual ao figurino do filme, e pensava se algum dia eu teria coragem para usá-la novamente. Meu estômago começou a revirar assim que deitei na cama, e a explicação racional é que pode ter sido a massa com manteiga de sálvia que comi antes do filme, ou o fato de ter passado a sessão inteira stress-eating um saco enorme de pipoca depois de virar um expresso duplo às onze da noite, mas a ânsia de vômito só veio de verdade quando lembrei do excesso de sol do filme, uma atmosfera que mistura pesadelo, jet lag, e a pior viagem de ácido de todos os tempos. Enquanto vomitava, pensava que Midsommar é exatamente o que imagino que seja uma onda ruim, motivo pelo qual nunca tomei alucinógeno algum - isso, e o medo de não voltar.
O vômito também é uma distorção. O corpo simplesmente trabalha ao contrário, como se rebobinasse a digestão pra expulsar do organismo uma coisa ruim. Eu sempre acho que vou morrer segundos antes de vomitar, não consigo explicar em outros termos. Do mesmo jeito que em francês usam la petite mort, a pequena morte, para se referir ao orgasmo, vomitar é uma pequena morte só que horrível, um orgasmo dirigido pelo Ari Aster. Também sempre choro depois de vomitar, as lágrimas e a melancolia repentina como uma reação involuntária do organismo a esse movimento que parece tão antinatural embora não seja.
Mas nesse dia só lavei o rosto e voltei pra cama como se nada tivesse acontecido naquele banheiro escuro; não acendi nenhuma luz depois que cheguei em casa.
Passei as semanas seguintes basicamente implorando pra que todos os meus amigos assistissem Midsommar, porque precisava saber que não estava sentindo todas aquelas coisas sozinha. Eu não sabia se aquele era o melhor ou o pior filme que eu já tinha visto, e esperava que alguém me contasse. Dois amigos choraram no final e outro disse que não esperava que a grande mensagem do filme fosse, na verdade, uma afirmação de vida. Queria assistir de novo, mas só a ideia fazia meu estômago revirar, como se fosse a lembrança de uma comida estragada. Só que depois dessas conversas o misto de repulsa e fascínio que a história me causou sempre voltava a me perturbar, até que o segundo elemento começou a ganhar.
Com o passar do tempo, os sacrifícios e horrores de Midsommar foram perdendo espaço na minha cabeça, mas eu continuava pensando na Dani, a protagonista que vai parar em Hårga depois de perder os pais e a irmã de maneira trágica e a única pessoa que lhe resta é o namorado, que é pior do que nada. As brigas dos dois no início, a manipulação emocional, a forma como ele distorce as discussões fazendo com que ela peça desculpas numa briga em que tem razão, o distanciamento, se sentir alienada e pouquíssimo bem-vinda ao lado daquela pessoa que você ama e confia, um peso inconveniente na vida da única pessoa que te restou. O isolamento dela me fez lembrar de O Bebê de Rosemary, um dos meus filmes preferidos e que na adolescência me causou uma perturbação quase física bem parecida com Midsommar. Quando o vi pela primeira vez, também disse que não sabia se aquele era o melhor ou pior filme que já tinha visto.
Fui revê-lo só esse ano, e se antes meu medo vinha da visão do berço preto do bebê diabo ou do aflitivo emagrecimento da Mia Farrow, dessa vez só conseguia pensar que o verdadeiro horror do filme era a solidão de Rosemary ao ser manipulada pelas pessoas que mais confiava, perdendo o controle sobre seu corpo e sobre a sua percepção de realidade. Os olhos vermelhos do demônio não fazem cócegas perto do terror de gênero que é perder a autonomia e a confiança em si e na própria sanidade.
Existe um ritual parecido em Midsommar, uma espécie de estupro sofrido por um homem ao redor de várias mulheres em uma das cerimônias da comunidade. Uma amiga me contou que Jack Reynor, o ator, disse numa entrevista que fez questão das cenas de nu frontal para imprimir mais fragilidade à situação do personagem, mas também como forma de reparação histórica, subvertendo a maneira como corpos de homens e mulheres são usados nesses contextos, principalmente em filmes de terror. Seu personagem é um dos grandes vilões do filme, sem dúvidas, mas a vulnerabilidade de seu corpo nessa cena é mais uma das muitas distorções perturbadores que Ari Aster cria, o homem que tem a própria sexualidade usada contra si, manipulada por outras pessoas, um ato chancelado por aquela sociedade, em plena luz do dia. É uma imagem confusa porque estamos muito pouco acostumadas a ela, o próprio personagem parece não conseguir entender o que está acontecendo - de certa forma ele queria aquilo, mas está sendo violado.
Existe algo de trágico na consagração de Dani, assim como na de Rosemary, mas consigo ver por que meus amigos experimentaram um choro catártico ao final do filme. Existe algo de poderoso em se render, em tomar para si a pior coisa que te aconteceu, o pior lugar onde já te colocaram, e transformá-los. Não posso dizer que coisas realmente horríveis já aconteceram comigo, não vivi muitos traumas, mas ainda assim me vejo com medo de tudo, como se a falta de controle e tudo aquilo que não conheço pudesse me matar, e é por isso que consigo entender que existe uma beleza em iluminar a morte, a solidão, a dor, a impermanência de todas coisas, e olhar pra isso tudo na luz do dia, tirando deles o poder de te assustar. "Qual a pior coisa que pode acontecer?", é uma pergunta que minha terapeuta me faz constantemente como exercício, uma espécie de terapia por exposição controlada.
O sorriso de Dani no último frame de Midsommar é parecido com o sorriso de Thomasin no final de A Bruxa, quando ela se transforma, enfim, no pesadelo que todos acreditavam que ela fosse, que ela foi praticamente forçada a ser, e de repente aquilo não se parece mais com um filme de terror.
Não sei como decidi que me fantasiaria de Rainha de Maio para o Halloween, foi uma ideia que se concretizou na minha cabeça de forma espontânea, sem que eu parasse um segundo sequer para pensar. De acordo com a mitologia do filme, a Rainha de Maio é a última mulher a permanecer em pé numa competição de dança que consiste em girar e girar ao redor de um poste sob efeito de alucinógenos. Mas, em outros lugares da Europa, a Rainha de Maio é uma figura que faz parte das celebrações da primavera e simboliza fertilidade. No dia 31 de outubro, dia das bruxas, também acontece a celebração de beltane, festividade celta que exalta a fertilidade, a união das energias masculina e feminina. É claro que eu estava no meu período fértil quando tudo isso aconteceu.
A festa mesmo foi só no dia 02 de novembro, finados, e num outro texto que estou tentando escrever sobre o tema (rs), começo dizendo que a simbologia da data diz respeito à dissolução da fronteira entre vivos e mortos. Os mexicanos acreditam que no Día de Muertos seus entes queridos voltam para visitá-los e, em vez de se esconderem com medo de fantasmas, eles enfeitam a casa, pintam caveiras e preparam oferendas para recebê-los. Leio e escrevo todas essas coisas e penso em tudo isso como entrega, como vida, o sorriso no final do filme de terror. Qual a pior coisa que pode acontecer?
Fui pra festa de ônibus com minhas duas tiaras de flores na cabeça, a bata branca bordada que achei que nunca mais usaria, saia longa e botas. Demorei alguns segundos até conseguir abrir a porta de casa e sair, por vergonha, mas logo comecei a achar a experiência engraçada. Não era como se eu estivesse com um chapéu de bruxa ou dentes de vampiro, signos que entregariam logo de cara que aquilo era uma fantasia. Para a maioria das pessoas eu só era uma mulher estranha com flores na cabeça, uma pessoa maluca, e acho que teria sido mais fácil andar por aí se eu estivesse fantasiada de uma forma mais explícita. Ao mesmo tempo, quase torci pra alguém me encarar de forma inconveniente ou perguntar sobre o contexto da roupa, porque já tinha uma série de respostas prontas para deixar os outros desconfortáveis: acabei de fugir do meu casamento, faço parte de uma seita, não falo português.
Nada disso aconteceu, só o olhar divertido do garçom que sempre me atende na padaria quando sentei pra comer um pedaço de pizza no balcão. "Tô indo pra uma festa à fantasia", disse, e ele se permitiu cair na risada, o que tomei como elogio.
Precisei andar alguns quarteirões do ponto de ônibus até o local da festa por ruas cheias de bares com mesas na calçada, todas ocupadas graças ao sábado à noite. Um grupo de homens gritou alguma coisa que não consegui ouvir e só segui em frente apontando o dedo do meio para quem ficava pra trás. Mandei uma foto pr'aquele cara do início do texto sem dizer mais nada, e não esperei a resposta.
Eu poderia usar essa roupa pro resto da vida.
O sonho é ter tudo dissolvido
O corpo, a mente, a fonte da lembrança
Enfim, ponto final na esperança
Somente as ondas soltas no oceano
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui.
Não vou ficar explicando os motivos do meu sumiço, que é nenhum e todos ao mesmo tempo, nem dizer que isso é uma volta, porque não sei. Mas a newsletter da Carol Bensimon sobre escrever e não-escrever (e o fogo na Califórnia) me ajudou um pouco a me sentir mais, digamos assim, autorizada para escrever e publicar o que eu quisesse.
Sendo absolutamente sincera, tenho medo que esse mal estar com redes sociais e excesso de informação acabe com minha vontade de escrever. E não acho que eu seja a única a estar sentido isso. Se a internet está centrada no “eu”, e você escreve escreve às vezes coisas de não-ficção baseada em experiências e sentimentos pessoais, fica muito fácil se colocar nesse contexto doentio e achar portanto que você não deve escrever (faz mal para você) e, mais do que isso, que você não tem o direito de escrever (afinal-minha-experiência-de-branca-privilegiada-falando-de-pequenas-coisas-da-vida). Mas aí você pensa: Lucia Berlin. Alice Munro. Raymond Carver. Sam Shepard. Isso dá algum alento. Só não sei se eles sobreviveriam a esse tempo.
Se nem a arte deles está garantida, o que sobra pra mim?
Também não sei, mas fiquei cansada de pensar sobre isso sozinha e senti falta de quando tudo isso era mais simples, quando era só chegar aqui e perguntar: ei, você já viu Midsommar?, e não pensar muito sobre isso.
Stay beautiful!
Yours truly,
Anna Vitória
Sempre que quiser, responda essa newsletter como um e-mail normal e escreva para mim ou me encontre por aí
Twitter * Instagram * Valkirias * Curious Cat
Edições anteriores * Medium * Trash Advisor