para ler ouvindo elton john - rocket man
Hello stranger, como vai você?
Foi no começo de dezembro de 2018 que eu descobri que tinha sido aprovada no mestrado em São Paulo. A lista demorou a sair e, quando finalmente foi liberada, não dizia quem tinha sido aceito, só divulgava as notas. Vi que minha nota era suficiente para ser aprovada, mas isso não bastava. No entanto, algo em mim dizia que eu tinha passado porque senti muito medo e quase desejei não ser aprovada, e é mais ou menos assim que reajo sempre que alguma coisa muito boa acontece comigo.
Eis que algumas semanas atrás meu orientador me contou que eu não tinha sido aceita no programa, mas ele mudou de ideia de última hora.
Era o último dia de aula do semestre e ele convidou toda a turma pra beber alguma coisa pra comemorar as férias que ninguém, de fato, iria ter. Já estávamos na segunda rodada de mandioca frita e nem sei em qual garrafa de cerveja quando ele disse que a seleção final tinha ficado dividida entre eu e outro garoto, que ele acabou escolhendo por ser um aluno conhecido, com um projeto que ele estava familiarizado. Ele chegou a protocolar toda a papelada, mas disse que meu trabalho não saía da sua cabeça, por ser diferente de tudo que havia feito até então mas exatamente o que tinha vontade de fazer quando pensava no futuro da própria pesquisa. O prazo da escolha já tinha passado, mas meu orientador voltou atrás, refez toda a papelada, e foi assim que meu nome apareceu, enfim, ao lado do dele na lista de alunos selecionados naquele 05 de dezembro de 2018.
Agora, quando olho pra trás e lembro de como reagi ao saber da minha aprovação, é quase impossível não acreditar que, de alguma forma, eu pude sentir o quão instável era aquela situação - e o quão instável a vida inteira é, por consequência. Quando imaginava esse momento, pensava que iria chorar, pular pela casa, abraçar as pessoas, mas nada disso aconteceu. Eu demorei quase um mês pra contar para as pessoas além dos meus pais e amigos mais próximos. "Então é isso?", eu disse pra minha mãe, entregando pra ela o celular com a lista, como se pudesse sentir nos dedos as asas de uma borboleta batendo, aquela aprovação como nada mais que uma parte de uma reação em cadeia, de uma sucessão de acontecimentos aleatórios que, por acaso, tinham o poder de mudar minha vida toda. Eu tinha medo de segurar com muita força e estragar tudo.
Quando meu orientador contou tudo isso agradeci aos céus por não ser o tipo de bêbada que chora, embora eu chore o tempo inteiro. Não era pra eu estar ali, mas eu estava. Ou talvez eu devesse estar ali o tempo inteiro. Lembrei de uma frase que eu mesma escrevi ano passado sobre uma situação diferente, mas também perfeita, improvável e frágil na mesma medida: "Às vezes uma estrela explode no céu e nada acontece, mas às vezes a explosão cria um novo universo."
Naquele noite voltei para a casa improvável que aprendi a chamar de lar em 2019, prestando atenção em todo aquele universo novo que criei pra mim ao longo desse ano e que foi tão difícil habitar em um primeiro momento, mas que agora era perfeito, porque é uma nova vida que consigo ocupar. Meu universo tem uma cama no chão, uma casa cheia de música, horários malucos, livros, muito dinheiro gasto em transporte público, bebidas chiques, remédios para dor de cabeça e ingressos para shows, muito choro na estrada. Fui adotada e adotei uma família, duas gatas, uma cidade, dois professores, novos e velhos amigos, três corações. Minha mãe disse que até minha voz mudou esse ano e meu pai falou que parecia que eu estava saindo de um casulo de transformação - era sobre meu novo corte de cabelo, mas esse é o jeito sem jeito dele de falar sobre coisas mais profundas (e todos sabemos que hair is everything). A Clara disse que a aura da minha escrita mudou e talvez seja por isso que passei quase o ano inteiro sem escrever nada que fosse realmente meu.
Passei os primeiros meses do ano assustada, imobilizada, sem saber o que fazer depois de conseguir tudo que eu queria. Tinha medo de perder, medo de não dar conta, medo de não ser o suficiente, medo do meu mundo acabar, medo de morrer para germinar. Ainda dói quando penso que a vida continua nos lugares onde não estou mais, às vezes fico sem ar de pensar que vai ser sempre assim, eu sempre vou estar quebrada em várias pedaços, várias cidades, várias pessoas, mas estou aprendendo a enxergar a beleza e o privilégio disso, e também a aceitar que não tenho escolha. A única coisa que controlo é o que eu faço diante disso tudo.
"Você está passando por um processo autodestrutivo, de um jeito bom", disse a taróloga que procurei no auge do desespero, "mas pra chegar onde você tem que chegar, você vai ter que apanhar. Você vai apanhar de todo jeito, mas é mais fácil quando a gente colabora." Eu divido meu ano entre antes e depois dessa consulta.
Um mínimo movimento foi o que precisei fazer para que tudo começasse a se movimentar, e então eu não parei mais. Trabalhei muito, me diverti mais ainda, ocupei todo o meu tempo, pensei e senti demais. Minha terapeuta elogiou meu progresso ao longo desse ano, e aceitei o reconhecimento sem modéstia, porque nunca estive tão cansada. "Dá muito trabalho ser uma pessoa no mundo", eu disse, e nós rimos.
Comecei a ler Meu ano de descanso e relaxamento no meio do ano e disse muitas vezes que tudo que eu precisava era fazer igual a protagonista de Ottessa Moshfegh e dormir um ano inteiro, ou pelo menos uns dois dias. Não sei quanto tempo demorei pra perceber que essa pausa não viria, não agora, não em 2019, um ano mais que foi mais parecido com as viagens de Infermiterol cheias da pulsão de vida que a personagem tanto nega do que com sua sonolência embalada por filmes repetidos. Comecei a brincar que esse era Meu ano de caos e privação de sono e até poderia listar todas as coisas que fiz no mundo real para justificar esse título e todo meu cansaço, mas o trabalho interno para chegar aqui foi muito maior e quase inenarrável. Nem filmes eu assisto mais.
Ainda sinto uma espécie de náusea quando penso na quantidade de acidentes que existe nesse ano bom, nessa felicidade, na ideia de seguir mais um ano inteiro, uma vida inteira, tomando decisões difíceis e sendo assertiva a respeito delas, acordando um dia depois do outro em cima de tão poucas certezas, a única delas a trama frágil do universo. Então eu lembro de uma frase que a Clara escreveu: "A vida é doida, mas a gente é mais doida que a vida".
Eu ainda ainda não sou, mas em 2020 espero ser.
Aconteceu três vezes em 2019. Eu estou no banco de trás de Uber, voltando pra casa depois de uma noite perfeita, e começa a tocar "Rocket Man" no rádio, e em todos esses momentos eu estou pensando que é quase uma extravagância estar tão contente, mas eu estava. De novo as asas da borboleta batendo freneticamente na minha mão.
No começo achei que ter aquela música tocando era sorte, e nas outras provavelmente também foi, mas pensa. Não é nem a primeira vez que uma música do Elton John me diz que algo é importante ou raro, ano passado essa música foi "Tiny Dancer".
Ontem enquanto tomava banho tirei um tempo pra agradecer pelo ano que passou e coloquei "Rocket Man" pra tocar, mas a primeira música que ouvi esse ano foi "Que Beleza", do Tim Maia.
Ufa, agora acabou. O texto e o ano inteiro, a década também.
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Não só no final desse texto, mas obrigada a quem continua lendo as coisas que eu escrevo, seja há muito ou pouco tempo. Esses dias parei pra pensar que estar na internet foi uma das, se não a, experiência mais definidora da minha vida até agora e é muito louco pensar nisso. Se você está lendo e fez parte desse ano (e vocês sabem que tô falando de vocês), obrigada. 2019 foi maluco, transformador e muito especial, e vocês são parte disso. Obrigada, com todo o amor do mundo.
E quem não esteve tão perto, e vocês também sabem que estou falando de vocês, podem ter certeza que senti saudades e vou me esforçar para mudar isso nesse ano que começa.
Stay beautiful e feliz ano novo!
(Até o fim da semana devo enviar minhas listas de fim de ano, sei que vocês só estão aqui por causa disso)
Yours truly,
Anna Vitória
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