Hello stranger, como vai você?
Eu já gostava dos diários do Kafka antes de ser modinha, antes que a ameaça de uma terceira guerra mundial fizesse a gente se lembrar que outras pessoas já passaram por isso e também foram forçadas a se confrontar com o absoluto ridículo de uma vida que continua nos seus detalhes mais mundanos mesmo quando explode o mundo lá fora, com os outros. "2 de agosto: a Alemanha declarou guerra à Rússia. Natação à tarde."
Agora, volto a pensar nesse trecho ao ler meu próprio diário. Sim, eu tenho um diário e não tem um único segundo desde que comecei essa empreitada em que deixo de achar isso hilário, porque é tão básico. Desde o início do ano me vi às voltas com uma crise existencial dessas que a gente acha que só existem nos filmes, ou que parecem tão ridículas e óbvias que podem acontecer com todo mundo, menos com você, até que elas acontecem. Quem sou eu?, Qual o meu valor?, Ninguém me ama!, Será que sou feia?, dentre outras questões. Pior do que a consciência dessa crise foi aceitar o que veio depois: minha terapeuta dizendo que eu deveria escrever sobre isso.
Me acostumei tanto a escrever na internet que nunca consegui manter um diário, não conseguia desligar minha editora interna, rigorosa e cruel, ou o filtro de uma inevitável performatividade de estar sempre falando para os outros, por mais que sejam estranhos em sua maioria. Só que já faz um tempo que não me sinto mais confortável com essa autoconsciência, ela faz parte de tudo que tenho deixado de lado nessa busca por quem eu sou agora, e odiei dar razão para minha terapeuta quando ela disse que esse diário não seria como todos os outros justamente por isso. A vantagem de um self fragilizado e fragmentado, a definição dessa crise em linguagem psicanalítica, é que pela primeira vez foi fácil pegar um caderno e escrever sem saber onde aquilo ia dar. Foda-se.
Escrevo sobre o que fiz no dia, insights sobre a minha pesquisa, descrições minuciosas das minhas refeições, coisas que penso no transporte público quando escuto alguma música e que não interessariam a mais ninguém. Também despejo ali todas as coisas raivosas, dramáticas e mesquinhas que sinto e que me dão vergonha, páginas e páginas sentindo pena de mim mesma sobre coisas que na manhã seguinte eu já não lembro direito o que são. Eu odeio que isso funcione tão bem, uma constatação teimosa tanto quanto descobrir que de fato beber água, comer bem, dormir 8h e fazer exercícios físicos faz a gente se sentir melhor, a constatação de como são básicas as coisas que nos sustentam (e que são impossíveis pra tanta gente, para além de qualquer rebeldia filosófica). Parte de mim esperava ser um pouco mais complexa, um pouco mais sofisticada, em vez de só um bichinho com emoções complicadas, quase uma criança pequena. Faço exercícios, lavo o rosto, como verduras, tento passar menos tempo no computador e beber menos café. Continuo escrevendo.
Na última semana estava cansada demais pra escrever antes de dormir, então comecei a levar o diário comigo pra escrever nas brechas do dia, e de repente me vi no intervalo do curso, sentada ao ar livre, tomando chá de hortelã e escrevendo no meu diário, e não acreditei que tinha me tornado exatamente quem eu imaginei que seria quando tinha uns 14 anos, quem eu tive tanto medo de ser nos últimos anos - uma menina com um caderno. Se você já viu o último episódio de Crazy Ex-Girlfriend, é nesse momento que começa a tocar "Eleven O'Clock".
I wanted to be a good person, yes it's true
Be a good person, but better than who?
This medley just got super-intense
'Cause life doesn't really make narrative sense
O que não dava pra imaginar é que um diário seria, de fato, um registro relevante para os últimos dias. Fui reler o que escrevi na última semana para identificar precisamente o momento em que tudo mudou, mas as observações se misturam, primeiro por acaso, depois de propósito. Na quinta, dia 12, escrevi: "Estamos vivendo uma pandemia. Fui pra USP mesmo assim, tomei açaí com leite ninho e peguei dois livros na biblioteca que agora não sei quando vou poder devolver", numa alusão óbvia ao diário do Kafka, que nesses últimos dias tem me feito pensar muito sobre esses extremos para além do seu efeito cômico.
O fato de ser natação à tarde e não qualquer outra coisa mais urgente é meu detalhe favorito da entrada. Pesquisando para escrever esse texto, me chamou atenção a definição do Dicionário Informal para o termo kafkiano: "Situação indesejada em que um indivíduo, sem o querer, se depara como inserido, ficando com a real impressão de que, enquanto a situação perdura, está vivendo em uma dimensão irreal, em estado de perplexidade podendo, em decorrência, ser levado a uma condição mental totalmente desajustada." Natação à tarde pode ser uma indiferença privilegiada diante do caos social, ou um lembrete que a vida é mais do que mera sobrevivência e ela segue acontecendo, mesmo que não se saiba até quando. Natação à tarde é a insistência em manter algum vestígio de normalidade nessa dimensão irreal em que estamos presos, uma lembrança de que somos bichinhos, sim, mas bichinhos com emoções muito complicadas. Agora consigo ver que existe uma baita complexidade nisso.
Uma pandemia como essa coloca em evidência essa nossa fragilidade nesse mundo, que é sustentada por condições materiais que definem quem vive e quem morre (e quem conta sua história), um sistema que é cruel, perverso e desigual. Não ignoro essas questões, mas posso dizer e fazer pouco sobre elas para além do que já estamos dizendo e fazendo, cada um dentro de suas possibilidades e limitações. Mas, se me afasto um pouco dessa linha de frente, aqui no meu isolamento, penso sobre natação à tarde e em todas as bobagens que tenho escrito no meu diário e tem sido tão importantes para não me deixar sucumbir - seja à minha própria crise de identidade ou, bem, ao apocalipse. Uma pandemia é algo absurdo, um clichê de filme ruim cheio de metáforas manjadas, uma coisa que a gente acha que nunca vai acontecer com a gente, até que acontece. São muitas perguntas sem resposta e quando as estruturas que sustentam nossa percepção de realidade, ainda que de maneiras muitas vezes tediosas e desagradáveis (mas tão confortáveis!), são suspensas - rotina; vida social; prazos de devolução da biblioteca; um trabalho em pausa ou que segue, parecendo a cada momento mais inútil e pequeno - é preciso tricotar alguma coisa para colocar no lugar. Não sabemos o mundo que vamos encontrar do outro lado, mas precisamos chegar lá.
Sei que nada disso é sobre mim, e nunca me senti tão irrelevante quanto agora, mas já faz um tempo que tenho olhado muito pro vazio, pro abismo, e mesmo disposta a fazer deles meus amigos o que aprendi foi que para aprender a flutuar é importante estar inteira. Então eu coloco o grão de bico de molho, arranjo um espaço pro tapete de yoga dentro do quarto, combino de ver um filme ruim à distância com minhas amigas, e juro que amanhã vou tirar o pijama antes de começar a trabalhar. Continuo escrevendo. Natação à tarde.
* Todas as imagens dessa edição foram retiradas de Crazy Ex-Girlfriend, mais especificamente do último episódio.
Como alguém que trabalha em casa e sozinha na maior parte do tempo há alguns anos, o isolamento me trouxe poucas novidades. Mas depois de tanto tempo me orgulhando de um suposto talento pra ser ermitã, tenho descoberto um prazer novo em viver o mundo lá fora, fazer yoga no parque, tomar café na padaria, estar com meus amigos sempre que possível. Com essas possibilidades limitadas, e sabendo da dificuldade que vai ser e tem sido pra tanta gente viver com essa novidade, me deu vontade de escrever, e continuar escrevendo, em busca de um tecido de normalidade e comunidade que nos ajude a chegar do outro lado - tipo um recreio do apocalipse.
Não vou me comprometer com o que não sei se conseguirei cumprir, mas basta dizer que pelos próximos dias quero escrever um pouquinho sobre o que tenho feito dos meus dias estranhos, direto do meu diário (ou não).
Não é uma newsletter de serviço e não pretendo usar esse espaço para compartilhar informações, dados e notícias sobre a pandemia. Creio que disso já estamos bem servidos e o objetivo aqui é proporcionar um instante de distração e um pouquinho de companhia. Vamos ver no que dá?
Se quiser, responda esse e-mail com o que estaria no seu diário do Kafka sobre o dia de hoje.
Ufa, agora acabou!
Mais do que nunca, obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Quem puder ficar em casa, por favor, fique em casa. Se você está numa posição em que pode ajudar que está numa situação mais complicada e vai se prejudicar ainda mais nesse contexto, da forma como for, por favor, ajude. Estejam em contato com as pessoas vulneráveis do seu entorno que possam estar sofrendo com o isolamento, joguem conversa fora, se alonguem, saiam um pouco da timeline e do ciclo de notícias, tomem sol, se masturbem, enfim, vamos tentar fazer da vida um pouco mais confortável, da forma como for possível.
Stay beautiful e stay safe!
Yours truly, de alguma janela do outro lado da rua,
Anna Vitória
Sempre que quiser, responda essa newsletter como um e-mail normal e escreva para mim ou me encontre por aí.
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