para ler ouvindo rilo kiley - pictures of success
Silêncio, Anna Vitória está descobrindo Ailton Krenak.
Hello stranger, como vai você?
Não é de hoje esse negócio de estarmos todos obcecados com o fim do mundo. O mundo já acabou muitas vezes antes disso.
Não estou nem falando da pandemia, mas de todas as outras coisas que já tínhamos que lidar antes disso: aquecimento global, governos de extrema-direita, violência policial, a vigilância das grandes corporações, o RT comentado no Twitter, the usual. Esse é o fim do mundo da minha geração - numa perspectiva na maior parte do tempo branca e classe média, em que essa consciência do colapso ainda é novidade - mas essa angústia existencial não é nova. No início desse ano, quando um monte de gente estava achando graça da possibilidade de vivermos os novos anos 20, the roaring 20's, um monte de gente também lembrou que o hedonismo daquela época não pode ser pensado sem o trauma de uma guerra mundial e tudo que vem depois dela, principalmente para quem não é um Buchanan, e que o champanhe ajuda a disfarçar. Não importa a época: ser sujeito histórico é uma merda.
Em 2016 ou 2017, não sei, Ailton Krenak foi chamado para falar com os alunos de pós-graduação em desenvolvimento sustentável da UnB e, de brincadeira, chamou sua conferência de Ideias para adiar o fim do mundo. Era zoeira, mas fez sucesso porque em 2016 (puts) e 2017 nós já estávamos caindo e havia esse desespero para adiar o fim do mundo, só que Krenak, jornalista, intelectual e um dos nomes mais importantes da luta pelos direitos indígenas, não estava lá para passar a mão na cabeça de ninguém. "Por que tanto medo assim de uma queda se a gente não fez nada nas outras eras se não cair?".
O tema seguiu acompanhando Krenak em outras palestras e entrevistas, e três delas foram compiladas num simpático volume da Companhia das Letras: Ideias para adiar o fim do mundo. Por estar um pouco descolada do discurso público (tm) ano passado, a única referência que tinha dele era a de ser um dos livros que mais vi nas mãos e sacolas das pessoas tanto na Flipop quanto na festa do livro da USP do ano passado. Foi também no ano passado que minha host mom paulistana fez um curso sobre narrativas indígenas. O curso virou a cabeça dela de cabeça pra baixo e virou tema recorrente das nossas conversas, virando minha cabeça também, e foi através dela que ouvi pela primeira vez uma das frases mais impactantes de Ailton Krenak, a qual reencontrei depois em um dos capítulos de Ideias para adiar o fim do mundo.
Em 2018, quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma situação nova no Brasil [rs], me perguntaram: "Como os índios vão fazer diante disso tudo?". Eu falei: "Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como é que vão fazer para escapar dessa". A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos.
Esse trecho foi retirado de uma conferência ministrada por ele em Lisboa, em março de 2019, mas é um pensamento recorrente em seu trabalho. Em uma entrevista concedida em 2017, a mesma ideia é articulada de um jeito ainda mais pungente, principalmente nesse momento.
Já que se pretende olhar aqui o Antropoceno como o evento que pôs em contato mundos capturados para esse núcleo preexistente de civilizados - no ciclo das navegações, quando se deram as saídas daqui para a Ásia, a África e a América -, é importante lembrar que grande parte daqueles mundos desapareceu sem que fosse pensada uma ação para eliminar aqueles povos. O simples contágio do encontro entre humanos daqui e de lá fez com que essa parte da população desaparecesse por um fenômeno que depois de chamou epidemia, uma mortandade de milhares e milhares de seres. Um sujeito que saía da Europa e descia numa praia tropical largava um rastro de morte por onde passava. O indivíduo não sabia que era uma peste ambulante, uma guerra bacteriológica em movimento, um fim de mundo; tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas. Para os povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do mundo foi no século XVI. Não estou liberando a responsabilidade e a gravidade de toda a máquina que moveu as conquistas coloniais, estou chamando atenção para o fato de que muitos eventos que aconteceram foram o desastre daquele tempo. Assim como nós estamos hoje vivendo o desastre do nosso tempo, ao qual algumas seletas pessoas chamam Antropoceno.
Agora me ocorreu que em janeiro desse ano, um tempo que parece outro século, contei essa história para um garoto no meio de um date, quando já estávamos meio bêbados, e fico me perguntando se são momentos como esse que fazem meus romances irem para o brejo. Silêncio, ela está descobrindo o pensamento decolonial.
Em 2013 tive meu primeiro contato com estudos de gênero em uma disciplina optativa da graduação. Atualmente, pelo menos aqui dentro da nossa bolha, a ideia de que não existe uma história única virou quase uma obviedade (escrevi um bocado sobre isso há algumas muitas edições), mas sete anos atrás, antes mesmo até das Jornadas de Junho (tm), um tempo que parece uma outra era geológica, esses discursos não eram tão comuns assim. Descobrir que a história e o universo das mulheres precisavam de uma outra História, uma outra epistemologia, para serem contados e analisados foi um troço que explodiu minha cabeça e pra ser sincera ainda explode. Estou começando o segundo ano de mestrado com uma pesquisa que começou com esse insight e que hoje uso para questionar como ferramentas supostamente universais como objetividade e racionalidade - frutos do pensamento moderno, que é uma marca tão importante do antropoceno a que o Krenak se refere, e que é uma referência única pra tanta gente quando se fala sobre ciências, sejam elas humanas ou não - simplesmente não servem quando falamos da experiência de mulheres. Mulheres, por si só, é uma categoria múltipla que, para toda a sua diversidade, também exige outras ferramentas, novas ciências, um novo vocabulário.
Por estar inserida em tantos grupos hegemônicos - branca, classe média, heterossexual, cria de apartamento no centro da cidade - não era tão difícil assim comprar a ideia de uma única história, uma única ciência, um único mundo que nunca acabou e deve ser protegido. Até hoje é preciso atenção, estudo e vigilância para desaprender essas ideias e perceber que existem mundos e humanidades para além desse que predomina agora e parece tão próximo da ruína, o antropoceno. Em Ideias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak desafia o conceito de humanidade para o qual se costuma apelar em momentos de crise, uma ideia de humanidade que, nos seus bastidores, gera crises como essa. Esse colapso não é um acidente. "Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser?", ele escreve, sobre quem é considerado menos humano e, portanto, desconvidado a fazer parte desse clube.
Sei que a maioria das pessoas, ao usar esse termo, não está fazendo grandes problematizações teóricas, mas apelando para o que o senso comum entende como coletividade e solidariedade, que é sim o que precisamos de maneira tão desesperada agora. No entanto, essa leitura me fez pensar se esses gestos são compatíveis com esse mundo tal e qual o conhecemos, se é natural dele, e talvez a dificuldade nisso tudo esteja em conjurar uma postura diferente da que nos foi ensinada e imposta para sobreviver aqui. Penso no que precisará morrer para que algo assim nasça, de preferência de maneira estrutural e sistêmica. Acredito cada vez mais que a vida não vai voltar ao normal, e isso é trágico em muitos sentidos, ontem mal consegui levantar da cama pensando nisso, mas fico mais calma quando penso na abertura que isso dá para outras possibilidades de vida e como é urgente pensar nelas.
Talvez seja insensível pensar em abstrações como essa no auge de uma pandemia, tentar ver o lado bom das coisas a longo prazo, e eu mesma quase xinguei uma tilelê online por falar em positividade num momento como esse. Talvez isso só traga mais ansiedade para algumas pessoas e tudo bem, peço inclusive desculpas caso você tenha sido pego de surpresa por essa virada de pensamento. Mas me tirar um pouco do centro do universo trouxe uma certa paz existencial no meio de um dia muito difícil.
Já caímos em diferentes escalas e em diferentes lugares do mundo. Mas temos muito medo do que vai acontecer quando a gente cair. Sentimos insegurança, uma paranoia da queda porque as outras possibilidades que se abrem exigem implodir essa casa que herdamos, que confortavelmente carregamos em grande estilo, mas passamos o tempo inteiro morrendo de medo. Então talvez o que a gente tenha que fazer é descobrir um paraquedas. Não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos. Já que aquilo de que realmente precisamos é gozar, viver no prazer aqui na Terra. Então, que a gente pare de despistar essa nossa vocação e, em vez de ficar inventando outras parábolas, que a gente se renda a essa principal e não se deixe iludir com o aparato da técnica. Na verdade, a ciência inteira vive subjugada por essa coisa que é a técnica.
Em 2016, por conta do crime ambiental ocorrido em Mariana, o rio Doce, da forma como ele existia, morreu. Para a família Krenak, que vive nessa região, o rio Doce é conhecido como Watu, e é chamado por eles de avô. Não é um recurso natural e muito menos econômico, mas parte da família e parte do que eles são feitos. Em 2016 esse mundo acabou, assim como outros mundos acabam o tempo inteiro sem que a gente se dê conta, muitas vezes por nossa culpa, ou pelo menos culpa da nossa ignorância, que também é projeto. Pegar Ideias para adiar o fim do mundo num momento como esse teve o efeito de diminuir um pouco minha vaidade trágica e me fazer olhar para os lados em busca de outros sentidos, outras ferramentas, outros vocabulários até para o fim. Perspectiva, pelo menos para levantar da cama por mais um dia.
Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que canta, dança, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim do mundo.
É importante viver a experiência da nossa própria circulação pelo mundo, não como uma metáfora, mas como fricção, poder contar uns com os outros. (...) E os provoco a pensar na possibilidade de fazer o mesmo exercício. É uma espécie de tai chi chuan. Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar.
Talvez essa coisa da fricção literal deva ser adiada, pelo menos por enquanto, mas fica aí umas ideias para pensarmos. Até lá, acho que meu projeto de quarentena vai ser reler O Grande Gatsby para evitar luzes verdes no horizonte.
* Todos os trechos citados foram retirados de Ideias para adiar o fim do mundo, do Ailton Krenak. Por conta do isolamento, o Scribd está disponibilizando 30 dias de acesso gratuito, sem precisar cadastrar o cartão de crédito, e o livro está disponível por lá para quem quiser ler mais. Todo o lero lero que escrevi foi pra não transcrever o livro inteiro aqui, o que era minha real vontade.
** Todos os gifs são retirados de O Grande Gatsby, mais especificamente da adaptação feita pelo Baz Luhrmann em 2013, que está disponível na Netflix. Assista por sua conta em risco. A relação entre os temas é propositalmente irresponsável - por favor, não me eduquem.
*** O curso de narrativas indígenas que falei lá em cima teve como texto base o livro A queda do céu, do xamã yanomami Davi Kopenawa, que é muito citado pelo Krenak. Para quem quiser mergulhar no tema, fica aí a indicação.
Links, links, links
- Ailton Krenak e o Sonho da Pedra é um documentário que aparece nas referências bibliográficas de Ideias para adiar o fim do mundo. É curtinho e interessante para quem deseja conhecer um pouco mais sobre ele e a luta do movimento indígena no Brasil nos últimos anos. Disponível no Youtube.
- Anthropocene Reviewed é um podcast onde o John Green faz resenhas de "facetas da humanidade no planeta em uma escala de cinco estrelas" em episódios de mais ou menos 20 minutos. Maratonei parte dele enquanto fazia faxina hoje e acho que se relaciona bem com o tema, por descrever essa experiência específica de humanidade a partir do que deixamos pelo caminho, como o refrigerante Dr. Pepper e o hábito de pesquisar sobre estranhos no Google.
Caso você esteja muito no mood, recomendo especialmente o segundo episódio, sobre o cometa Halley e a cólera. Em relação ao primeiro, John Green diz algo muito bonito sobre como cometas e outros fenômenos naturais nos trazem o conforto estranho de serem completamente indiferentes a nós e continuarão acontecendo, com ou sem alguém pra ver. Sobre a cólera, a reflexão vale para o que vivemos agora: é uma ameaça que existe exclusivamente por conta da experiência do homem sobre a Terra e as conexões que ele cria, que mata pelas conexões que deixamos de criar, e é combatida, novamente, pelas conexões que devemos criar uns com os outros.
- Não é link, mas indicação de série ou filme: se a gente pensar bem, Downton Abbey também fala sobre o fim do mundo. Boa maratona para se fazer no fim de semana e está disponível no Prime Video.
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Well that escalated quickly! Eu disse que ia escrever só um pouquinho, mas aprendi com a quarentena que minha forma de lidar com momentos de crise global é ler sobre o fim do mundo e outras epidemias. Não desistam de mim. Os diários que vocês enviaram me fizeram muito bem e quem quiser continuar mandando, por favor fique à vontade.
Lembrando sempre que quem puder ficar em casa, por favor, fique em casa. Se você está numa posição em que pode ajudar quem está numa situação mais complicada e vai se prejudicar ainda mais nesse contexto, da forma como for, por favor, ajude. Estejam em contato com as pessoas vulneráveis do seus entornos que possam estar sofrendo com o isolamento, joguem conversa fora, se alonguem, saiam um pouco da timeline e do ciclo de notícias, tomem sol, se masturbem, enfim, vamos tentar fazer da vida um pouco mais confortável, da forma como for possível.
Stay beautiful e stay safe!
Yours truly,
Anna Vitória
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