para ler ouvindo gal costa - baby
Hello stranger, como vai você?
Essa foi a primeira semana de frio do ano e nunca quis tanto ter uma banheira. Ter uma banheira em casa talvez seja o meu sonho de consumo mais duradouro, por mais prosaico e pequeno-burguês que seja, e a quarentena fez com que esse desejo voltasse com força. Pelo menos umas duas vezes por semana penso que tudo seria muito mais fácil se eu tivesse uma banheira em casa, estejam os dias quentes ou frios. Até coloquei um banquinho de plástico no box do chuveiro pra ficar um tempo ali sentada deixando a água quente bater nas minhas costas - depois que parei de comer carne, me sinto completamente autorizada a esse pequeno desfrute - mas não é a mesma coisa.
No começo pensei que a quarentena fosse me inspirar, já que essa situação remete a ideias que sempre foram Meus Temas: solidão, falta de controle, luto, vida online, a merda que é ser sujeito histórico. Só que viver em quarentena (ou melhor, eternamente esperando a quarentena começar) nesse desgoverno me tira qualquer vontade ou inspiração de ser filosófica num cenário em que essa solidão, esse luto, essa grande merda que é ser sujeito histórico vêm não da entropia das nossas vidinhas pós-modernas, mas de um projeto de morte com alvos direcionados vindo do que há de pior, mais burro, delirante e rasteiro que essa terra já gerou. Só tenho sentido raiva, muita raiva, e por mais que defenda a raiva como um excelente motor para mudanças, não dá para sustentar essa energia presa por tanto tempo num apartamento em isolamento social sem morrer um pouquinho por dentro - e aí eu passo muitos dias sem sentir absolutamente nada.
Os banhos quentes ajudam, tho. Revisitando alguns textos em que escrevo sobre água (são muitos, é até engraçado) percebi que faço uma relação recorrente entre estar na água e o abandono. Não um abandono negativo, de desleixo ou negligência, mas o abandono como o ar saindo dos pulmões quando você passa muito tempo segurando a respiração sem perceber. Fiona Apple descreveu essa ideia perfeitamente em "Heavy Balloon": I've been sucking it in for so long that I'm bursting at the seems. Minha vida em quarentena se parece bastante com a ideia de andar por aí brincando com um balão muito pesado, tentando mantê-lo acima da cabeça pra vida continuar, mas sempre chega o dia em que ele cai. Mas aí a água amortece a queda, me ajuda a pensar com mais leveza, ou não pensar de jeito nenhum, e os morangos brotam de novo.
Nunca tive uma banheira em casa, mas ao longo dos anos fui encontrando atividades que me permitiam esse abandono que é tão importante pra mim, ou a contemplação, o "exercício das pequenas coisas" que uma amiga querida sempre menciona, para usar termos menos baixo astral. São longas caminhadas pela cidade, viagens de ônibus, um café com amigos no meio da semana, ir ao cinema sozinha. São as perdas minúsculas que mais me doem e me acostumei a brincar que já teria terminado minha dissertação se pudesse pegar um ônibus uma vez por semana pra poder pensar melhor. Para compensar tenho cozinhado bastante, gasto um tempo ridículo no mise en place, me envolvo em fofocas de celebridade e me arrumo toda pra ir no supermercado uma vez por semana, percorrendo todos os corredores mesmo sem necessidade.
Nessa quarentena finalmente entendi por que as pessoas fumam. Às vezes sento na sacada pra aproveitar um pouco do sol e me dá vontade de acender um cigarro pra acompanhar o café e aquele sol da manhã. Pouco antes do mundo acabar, eu e meu melhor amigo pegamos um ônibus interestadual juntos e em uma das paradas ele desceu pra fumar e ficamos ali, no meio do nada, no meio da noite, enquanto ele baforava a fumaça escondido atrás do ônibus e por algum motivo eu não conseguia parar de rir. Virou nossa piada interna, "vai sair pra pitar, é?", e acho que era isso que eu queria: acender um cigarro e ficar fumando na janela ou encostada do lado de fora de algum lugar. Eu não vou começar a fumar, mas foi uma grande revelação.
Não acredito que a quarentena me fez romantizar o cigarro.
Essa semana, enquanto tirava a meia-calça pra entrar no banho, olhei para os meus dedos dos pés e me lembrei de um texto antigo que gosto muito onde falo de todas essas coisas, principalmente da graça que tem tomar um banho de banheira. Se até a Globo está reprisando novelas antigas, achei que não teria problema publicar algo de novo e manter essa newsletter viva de alguma forma. "Você precisa tomar um sorvete" foi publicado originalmente na Revista Pólen, em 2016, e aqui fiz uma pequena edição para consertar alguns aspectos que hoje em dia já não gosto tanto.
E caso vocês tenham interesse em ver o que tenho feito por aí, tenho uma playlist de quarentena que vou alimentando de tempos em tempos com minhas músicas favoritas do momento, escrevi na Deriva sobre O Irlandês e sua relação com a morte de um mundo que deixa de existir, e no podcast Conversa de Adulto falei sobre meu novo hábito de manter diários.
* Os gifs dessa edição foram retirados do filme Os Sonhadores, um filme que amo e acho insuportável na mesma medida.
A época em que mais trabalhei na vida também foi a época em que morei num quarto de hotel. A parte mais importante desse quarto era a banheira, e ainda que ela fosse ruim – resquícios de uma reforma barata em uma construção antiga, uma das grandes chagas do centro de São Paulo – o importante é que ela era minha, pelo menos naquelas semanas. Eu estava realizando o sonho da banheira própria, coisa de criança mesmo, e ela me sustentava naquelas manhãs geladas em que eu me arrastava da cama poucas horas depois de ter deitado. Enquanto tomava banho de pé no chuveiro, olhava pra ela, que me olhava de volta como uma promessa. Se eu vencesse aquele dia, a banheira estaria me esperando.
Sempre pensei que a melhor parte de morar em um hotel – outra fantasia infantil – seria o café da manhã, mas a banheira ainda era o que me fazia mais feliz. Porque eu estava sempre tão cansada e com tanto frio. Foi o pior inverno na cidade em mais de 20 anos, e os 15 minutos de caminhada do trabalho até o hotel eram suficientes para que meu rosto doesse, algo que nunca tinha sentido antes. Minhas mãos ficavam roxas na ponta dos dedos e passei tanto tempo de meia, às vezes com várias meias, que era sempre uma surpresa encontrar meus pés no final do dia, naqueles poucos minutos do banho em que eles apareciam descobertos.
E então a água quente, a sensação de estar submersa e livre de toda aquela roupa, mais aquecida do que em qualquer outro momento do dia. O cheiro de sabonete, os dedos enrugados, a música que tocava, a visão embaçada por todo o vapor acumulado no banheiro, aliviando meu sistema respiratório pouco acostumado a andar tanto a pé em São Paulo. Na minha primeira noite de sexta-feira naquele quarto de hotel, tomei um banho de uma hora e meia.
Em A redoma de vidro, Sylvia Plath escreve que uma banheira com água quente é o lugar onde ela se sente mais como ela mesma. Não sei se meu gosto por esses longos banhos vem da sensação de extraordinário contato comigo mesma ou se é o extremo oposto – se são naqueles momentos embaçados e úmidos que posso esquecer de mim e da minha cabeça numa espécie de fuga. Ou pausa. Porque fuga pode parecer algo negativo, covarde, mas todo mundo merece uma pausa.
E um café. Todo mundo merece uma pausa para um café. Café é a minha pausa favorita: são alguns minutos amargos suspensos no tempo das coisas em que você simplesmente para. É uma questão de sobrevivência. Não é sobre cafeína – ainda que ela faça o retorno ao mundo mais fácil – mas sobre se permitir um descanso. Queria que as pessoas entendessem que quando as convido para um café, não estou falando sobre café. Pode ser uma água, um chá, uma cerveja, mas quando chamo alguém para tomar um café estou chamando aquela pessoa para fugir por algumas horas e rir, comer alguma coisa gostosa, falar mal dos outros, esquecer o relógio. Para mim isso é um café. Se necessário, podemos ter conversas profundas e difíceis, rasgar o coração. Isso são dois ou três cafés. Nossa rotina não permite esse tipo de imersão, então vamos burlar o sistema e ir ali tomar um café.
Gosto desses pequenos prazeres porque a gente não precisa deles. Você não precisa tomar um banho longo de banheira quando existe um chuveiro. Você não precisa sair para tomar um café – o café que você precisa tomar nunca tem o mesmo gosto do que aquele você toma porque sim, porque quer. São pequenas resistências na forma de coisas supérfluas e doces, e ainda que seja um tanto bocó dizer que um longo banho de banheira é um manifesto político, visto que não existe sonho mais classe média que esse, ainda me parece uma resposta possível à grande máxima de não pensar em crise, mas trabalhar. Não pense em nada, esqueça o relógio, tome um longo banho, um café que dura a tarde inteira, um sorvete de sobremesa.
***
Minha música brasileira é “Baby”, porque ela começa dizendo “Você precisa saber da piscina, da margarina, da carolina, da gasolina” e isso me faz pensar num mergulho gelado num dia quente, pão fresco de manhã, carolinas muito doces num café da manhã de hotel, inspirar mais do que deveria o cheiro confuso e proibido da gasolina. São coisas banais, que a gente não precisa.
A música aparece pela primeira vez no álbum Tropicalia ou Panis et Circencis, lançado em 1968, que além de CD era também o manifesto tropicalista, misturando as manifestações culturais brasileiras mais tradicionais às vanguardas artísticas europeias e também à cultura pop americana. Nesse contexto, “Baby”, um dueto lindo de Gal e Caetano, usa o verbo precisar como ironia às aspirações capitalistas mundanas, aos anúncios de propaganda que afirmam que a gente precisa de um monte de coisas que, na verdade, não são nada essenciais. Ao mesmo tempo, eles cantam com tanta doçura e sinceridade, e falam de coisas tão singelas, que a gente não consegue saber direito o que é ironia e o que é verdade – e essa é a graça da música.
Quem me ensinou a amar Gal Costa foi minha avó. Quando eu era criança, na época do horário de verão, ela me buscava na escola, me levava pra casa dela, colocava um colchão velho no quintal e nós ficávamos deitadas vendo desenhos nas nuvens e ouvindo Gal. "Baby" já era a música que eu mais gostava. Ela não precisava fazer isso, mas não seria ela – e não seria eu – se não tivesse feito. Com isso eu aprendi que a gente pode sequestrar o tempo e fazer dele todo nosso, nem que seja só até a última bolha de sabão se dissolver na água, agora já não mais tão quente, com o vapor condensado escorrendo em gotas no vidro como quem diz que é hora de sair. É uma pausa para fazer do nosso pequeno mundo um lugar melhor, mais confortável, nos dando a oportunidade de fazer necessárias as coisas menores, já que as grandes não parecem vir de nós, nunca estiveram tão distantes e mais esmagam do que nos salvam.
Uma pausa. Um sorvete. Um sonho. É disso que a gente precisa.
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Se cuidem e cuidem dos seus, e vamos que vamos.
Stay beautiful!
Yours truly,
Anna Vitória
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