para ler ouvindo: fiona apple - fetch the bolt cutters, o álbum
ou: Vou tatuar um alicate quando tudo isso passar
(Alerta de gatilho: ansiedade, trauma, luto, pandemia - mas essa não é uma newsletter de bad)
Hello stranger, como vai você?
A semana entre o Natal e o Ano Novo é a minha semana favorita do ano. Parece um pedaço de tempo deslocado no espaço, quando você pode simplesmente desistir de todo e qualquer plano porque existe um outro ano logo ali na esquina para te dar a chance de ser uma pessoa melhor. Por que fazer agora alguma coisa que você pode fazer depois? É uma semana completamente perdida, e nesse mundo em que tudo tem que ser aproveitado ao máximo, em que todo suspiro deve ser transformado em produção, em conteúdo, em resultado, perder, desistir, deixar passar, ou só preferir não é o maior luxo de todos.
A semana entre o Natal e o Ano Novo para mim consegue ser melhor do que o Natal e o Ano Novo juntos. Depois do dia 25, quando somos confrontados com a pergunta existencial de o que fizemos agora que chegou o Natal, não existe mais obrigação de fazer nada. É aquele bimestre na escola depois que você já passou de ano, a semana depois das provas finais que você só vai na aula para passar a manhã inteira conversando com seus amigos no fundo da sala, aquela tarde de sexta que você decide passar na frente da televisão quando aceita que não vai conseguir terminar tudo que tinha que fazer. Mesmo nos anos em que precisei trabalhar durante essa semana, existia uma espécie de estado de exceção no ar: trabalhar de moletom, pedir alguma comida gostosa no meio do dia, chegar atrasada depois do almoço, não sair do sofá depois do expediente e não sentir a menor culpa por isso. Semana que vem seremos melhores, temos à frente 365 dias para sermos melhores, ninguém vai se lembrar dessa semana depois.
Sinto que 2020 inteiro foi uma espécie de semana entre o Natal e o Ano Novo, para o bem e para o mal, mas principalmente para o mal que parece não existir nessa semana entre o Natal e o Ano Novo - afinal, a graça de uma semana perdida é que ela dura uma semana só. Quando saí de São Paulo acreditando que passaria no máximo um mês fora, não pensei em quais roupas deveria levar, em tudo que poderia precisar, seria um mês perdido em que esse tipo de preocupação não faria diferença. Quando estava deprimida demais para fazer qualquer coisa além do mínimo necessário, repetia para mim mesma que estava tudo bem, o que são dois meses perdidos? Três? Um semestre inteiro? Um ano?
No dia 13 de junho meu avô foi internado na UTI com Covid-19. Não sei se vocês já viveram a experiência de viver dias e mais dias com todas as energias concentradas em chegar até o próximo segundo, e o próximo, até o dia seguinte, para então começar tudo de novo. Para mim essa é a melhor forma de explicar como é viver enquanto uma pessoa amada está entubada em uma UTI durante um período de isolamento social. Passei o primeiro mês sentada no sofá da sala enquanto filmes e séries começavam e terminavam na minha frente até que a noite chegasse para que eu pudesse colocar um comprimido embaixo da língua e ter a chance de não sentir nada por algumas horas. Eu não queria morrer, mas foi a primeira vez que realmente quis desaparecer na história, como aquela semana entre o Natal e o Ano Novo.
Foram 54 dias perdidos, o que é estranho de se pensar porque eu nunca mais vou ser a mesma depois deles, assim como ninguém vai ser o mesmo depois deste ano. Nesse mesmo período perdi duas tias queridas que não pude enterrar, defendi minha qualificação de mestrado, trabalhei, cumpri todos os meus prazos, e meu avô se recuperou em condições que até o mais cético dos médicos fez questão de chamar de milagrosas. Foram 54 dias em que aconteceram mais coisas do que em muitos anos inteiros, mas não lembro de quase nada deles, é tudo um borrão na memória que fica nebulosa no dia 13 de junho e só volta a ganhar foco no dia 7 de agosto, como se eu estivesse abrindo os olhos e me acostumando à luz como alguém que acorda às seis da manhã no sofá de casa depois de beber demais, como meu avô que acordou do coma dois meses depois como se tivesse dado entrada no hospital no dia anterior.
Nesse processo de melhora, foi importante encontrar meios de lidar com a passagem do tempo de formas menos destrutivas, deixar de perder os dias para viver os dias. Em vez de uma sequência de horas a serem suportadas, meus dias viraram etapas na manutenção da vida de uma série de plantinhas novas, massas que crescem, milímetros de expansão do meu próprio corpo e das minhas articulações adquiridos a cada novo dia iniciado no tapete de yoga. Comecei a estudar uma coisa nova que me empolga, um pouco todos os dias, dando a esses dias um banho de vida em meio a tanta tristeza e morte. Meu avô saiu do hospital 65 dias depois, e quando segurei a mão dele de novo após 6 meses de isolamento, senti que estávamos renascendo juntos.
No entanto, ainda me sinto culpada pela sensação de que esses dias não existiram quando tudo que fiz e tudo que aconteceu me levou aos limites da experiência do que é existir, e às custas da vida de tanta gente. Acho que envelheci 10 anos em 2020, mas também acho estranho pensar que meu aniversário já está chegando e eu não pude viver meus 26 nesse ano perdido. Às vezes ainda esqueço que a tia Zeca morreu quando vejo um Clio prateado na rua, chego na casa da minha avó no domingo e quase consigo vê-la apoiada no balcão da cozinha. Mas ela não está mais aqui, meu avô ainda perde o fôlego e agora anda muito mais devagar, eu ainda tomo um comprimido todos os dias antes de dormir e tenho crises de choro de repente que não sei dizer de onde vieram. Em casa todos perdemos quilos, sono, juventude e muitos fios de cabelo, e a parte boa é que acho que nos amamos muito mais, aprendemos de um jeito novo o que é amar e cuidar. 2020 é a semana entre Natal e Ano Novo que cobra todas as suas consequências, um ano perdido em que perdemos demais, sem retorno, e que tudo que ganhamos também parece amplificado por esse contraste, um novo jeito de viver o que é bom que também parece sem retorno.
Não sei se isso faz de nós melhores ou piores. O mundo definitivamente parece pior, e não tenho muitas esperanças em relação a ele, mas tenho tentado fazer minha parte (terapia duas vezes na semana) para transformar tudo que vivi esse ano, tudo que vivemos, em algo bom. Mas nesse momento não tenho grandes reflexões, menos ainda conclusões, e gostaria que todos tivéssemos o direito de usufruir dessa semana entre o Natal e o Ano Novo para deixar nossos traumas, vitórias e derrotas simplesmente serem: sem grandes significados, grandes aprendizados, palavras bonitas. Ao relembrar esse ano amaldiçoado, me sinto grata por todos os dias que pude perder, o suporte material e emocional que tive e que me permitiram me perder na dor da minha tragédia pessoal sem que tivesse que dizer ou fazer nada. Cercada de pessoas amorosas, atenciosas e infinitamente compreensivas, tudo foi perdoado, tudo foi permitido, e foi esse tempo perdido que me ajudou a eventualmente levantar. Porque a gente sempre se levanta, sempre existe aquela primeira segunda-feira do ano em que tiramos o pijama velho, trocamos as roupas de cama, abrimos as janelas e acreditamos, nem que seja por dois minutos, que seremos melhores.
Mas enquanto essa segunda-feira não chega, que a gente possa simplesmente ser e estar nesse final de ano, e brindar a cada um de nós por ter chegado até aqui. Tenho certeza de que, independente do que você passou em 2020, estar aqui hoje só foi possível foi às custas de muita coisa. Repetindo uma citação de Grey's Anatomy que já usei aqui antes, e olha que nem assisto Grey's Anatomy: Você está vivo. Respeite isso. Nem todos estão.
Meu disco do ano, caso alguém esteja se perguntando
Eu fiz um blog! Já faz um tempo que tenho repensado minha forma de ser e estar na internet e voltar a blogar me pareceu a decisão mais honesta do que fazer comigo depois de tantas mudanças. Eu adoro o espaço da newsletter e acho um privilégio sem tamanho poder chegar direto na caixa de entrada de tanta gente, mas senti necessidade de ter um espaço que fosse meu, com formatação bonita e todas as frescurites que gosto. Tenho me divertido tanto que já posso dizer que foi uma das decisões mais acertadas do ano, mas ainda não sei muito bem o que fazer em relação à newsletter.
Minha ideia inicial era deixar os ensaios mais íntimos e pessoais para os e-mails, e o blog para outros tipos de textos e reflexões, mas as páginas bonitas do Wordpress realmente me seduziram e simplesmente não consigo não postar tudo lá. Como sei que nem todo mundo consegue ou tem interesse em acompanhar blogs, pensei em enviar uma cartinha mensal para vocês com qualquer que tenha sido o último ensaio mais pessoal e íntimo que publiquei no blog, junto a uma curadoria breve de coisas interessantes que encontro pela internet, como fazíamos antes. Às vezes sai um texto inédito, como é o caso de hoje, mas nem todas as semanas são a semana entre o Natal e o Ano Novo em que tenho todo o tempo livre para escrever. O que vocês acham?
Ainda não estou plenamente satisfeita com esse formato, e não quero abandonar nenhum dos canais, portanto aceito sugestões do que vocês gostariam de ver na caixa de entrada, de preferência algo que não dê muito trabalho e que eu consiga cumprir. Até lá, deixo com vocês os links do que mais gostei de escrever durante esse tempo e o convite para conhecer o blog, que está muito do bonitinho e ainda me emociona por ser produto de minhas próprias mões e muitas horas vendo tutoriais de php no Youtube.
Ufa, agora acabou! Obrigada pela companhia e por chegar até aqui, ao final de mais um ano. Que você possa encontrar qualquer pedacinho de paz e acolhimento nos próximos dias, e não se esqueça de que, na medida do que for possível para você, tudo foi perdoado, tudo é permitido, pelo menos nessa semana.
Vejo vocês do outro lado, com desejos sinceros de saúde e amor.
Stay beautiful!
Yours truly,
Anna Vitória
Sempre que quiser, responda essa newsletter como um e-mail normal e escreva para mim ou me encontre por aí
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