para ler ouvindo: wilco - what's the world got in store
Ou: O Processo, parte 2
Hello stranger, como vai você?
Quando quero muito me odiar, começo automaticamente a listar uma série de coisas que poderia ter feito e não fiz, tudo que fiz mais ou menos e queria ter feito mais, melhor, e também algumas coisas que preferia não ter feito de jeito nenhum. Às vezes desconfio que, no fundo, minha escolha pela carreira acadêmica aconteceu simplesmente porque foi ali que encontrei um meio para ser continuamente avaliada por pessoas que não me conhecem e onde preciso sempre listar meus feitos e fazer deles uma credencial que chega sempre antes de mim, processo que é ao mesmo tempo autoflagelo cheio de um gozo perverso e o encontro com uma fonte de fundo infinito onde posso mergulhar sempre que precisar de uma dose de aprovação alheia para seguir com meu dia. Até inventaram um termo para isso na internet: síndrome de ex-criança prodígio.
Relendo o parágrafo anterior, que escrevi numa madrugada de fevereiro, durante uma crise de ansiedade que tive ao fazer um relatório de desempenho onde deveria listar e explicar tudo que havia feito no último ano, me deu vontade de escrever um livro de fantasia infanto-juvenil que se passasse numa espécie de purgatório para onde são mandadas as crianças prodígio depois de uma certa idade, para serem torturadas por processo seletivos e análises de currículo, cujos vilões são os Top Voices do LinkedIn. Seria uma daquelas histórias que você só percebe que são sinistras quando relê na vida adulta e entende que a inspiração para aquele purgatório não veio da imaginação de uma escritora qualquer, mas sim desse sistema capitalista em que estamos presos e suas engrenagens que se moldam perfeitamente às nossas neuroses e as mantém girando numa simbiose perfeita.
Hoje acreditamos que não somos sujeitos submissos, mas projetos livres, que se esboçam e se reinventam incessantemente. A passagem do sujeito ao projeto é acompanhada pelo sentimento de liberdade. E esse mesmo projeto já não se mostra tanto como uma figura de coerção, mas sim como uma forma mais eficiente de subjetivação e sujeição. O <<eu>> como projeto, que acreditava ter se libertado das coerções externas e das restrições impostas por outros, submete-se agora a coações internas, na forma de obrigações de desempenho e otimização.(HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. 2020. Grifos e destaques do autor)
Naquela noite, enxerguei com uma clareza assustadora não só como aquele sistema era violento, mas, principalmente, como eu me aproveitava dele para me machucar. Sei que todo trabalho possui - cada vez mais - sistemas de avaliação, mas eu carrego fichas em que a palavra “aprovada” aparece literalmente do lado do meu nome, e me submeto a uma rotina que de tempos em tempos me faz prestar contas do que fiz com o tempo e o dinheiro que me deram, onde é preciso provar de novo e de novo, com resultados, tabelas, e ideias novas, que mereço esse investimento, que sou uma das melhores entre meus pares, que sou capaz. Por ser um trabalho que pressupõe uma série de privilégios, as avaliações funcionam também como maneira de reforçar a ideia de que é preciso, continuamente e apesar de tudo, merecer estar ali. Ainda é o melhor dos mundos, dizem, e eu deveria estar fazendo o dobro, o triplo, para justificar o investimento que se faz em ciências humanas nesse país, por menor e mais precário que ele seja. Quantos não queriam estar no meu lugar?
Não vou me aprofundar em todas as questões estruturais que envolvem esse assunto (que são muitas e que não podem ser deixadas de lado), apenas queria destacar como essas circunstâncias colocam nas minhas mãos uma ferramenta perfeita para, em contrapartida, me fazer acreditar que não sou suficiente, que não mereço as coisas que tenho, e que em algum momento eles vão me descobrir - the inimitable collective, "them". Foram quase três anos de análise para entender algo que venho escrevendo de maneira inconsciente desde os meus cadernos de caligrafia perfeitos da infância, uma metáfora tão perfeita que chega a ser idiota.
Em 2018, quando estava no meio da seleção para entrar no mestrado, escrevi um texto chamado O Processo para registrar, bem, todo esse processo. Eu queria registrar minha trajetória imperfeita para que, caso desse tudo certo, eu não esquecesse que todos os caminhos são linhas tortuosas sem retas de chegada definidas, por mais que as narrativas de sucesso tentem sublimá-las e submetê-las a uma jornada de herói de sentido único, o do progresso. Isso apaga a matéria humana de nossas histórias ou então faz dela um artifício a ser superado em nome de um objetivo, mas o que eu realmente queria dizer - e talvez nem soubesse direito naquele momento - é que o Processo é tudo que existe, nós que erramos ao narrativizá-lo como um obstáculo a ser atravessado e superado a partir de um contínuo aperfeiçoamento de si. Reconhecê-lo apenas como um capítulo meio cômico, meio trágico em nossas histórias não é o suficiente.
Esse impulso de fazer do Processo uma jornada tem sua razão de ser, uma vez que essa é a narrativa do capitalismo e, sobretudo, do neoliberalismo.
Anotei no caderno durante uma aula de psicanálise:
Não se trata apenas de um sistema econômico [o neoliberalismo], mas de uma racionalidade que pressupõe um sujeito, ou seja, um campo discursivo que colonializa nossas práticas e ideias. Para que se realize, é necessária uma psicologia de base, que está fundada na autorrealização individual que prescinde do Estado e da própria dominação pelo trabalho para existir. Esse ideal também vai contra a existência das contradições e conflitos inerentemente humanos, matéria-prima da psicanálise.
Relendo as anotações alguns dias depois, puxei uma seta ao lado desse parágrafo e completei: a vida não faz sentido narrativo.
Na retórica neoliberal, esses conflitos devem ser anulados e domesticados a partir da lógica da produtividade, que usa o trabalho como significante que aparece recalcado e se manifesta em um ideal de empreendedorismo. Nessa realidade, as pessoas são levadas a gerenciar suas vidas da mesma forma como se gerencia uma carreira, calculando perdas e ganhos e traçando metas de desempenho.
Essas notas foram construídas a partir de uma série de leituras, conversas e referências que não cabem aqui, mas que depois encontrei condensadas em um livreto de pouco mais de 100 páginas, Psicopolítica, de Byung-Chul Han. Ler o Han é uma aventura por si só e nada que eu disser sobre ele vai fazer jus à experiência, mas queria deixar apenas uma frase para você pensar sempre que estiver se cobrando para ser a melhor versão de si mesmo: "O indivíduo livre é rebaixado ao órgão genital* do capital".
Desde esse episódio de colapso em fevereiro, comecei a trabalhar na terapia todos os traumas, construções e crenças limitantes que fazem de mim essa perfeita cadelinha do sistema, uma condição que é muito dolorosa. Estava indo tudo bem, até que veio a pandemia e me bagunçou inteira de novo. "A vida se impõe demais, né", foi o que disse uma amiga ao anunciar o nascimento de um priminho no mês de setembro, bem no dia de chegada da primavera, uma frase que me peguei repetindo mentalmente a cada pequena ou grande experiência de alegria e beleza vivida nesse período tão escuro e difícil. No entanto, essa atmosfera de morte que nos circunda também é a vida se impondo, seja ao revelar sua (nossa) fragilidade através de um vírus que nos põe vulneráveis, seja ao expor sua precariedade por meio dos abismos de desigualdade que construímos e que nos separam.
Além do trauma social e coletivo que já dura 9 meses (e contando), esse ano vivi também minha própria coleção de mortes, lutos e perdas. A inescapabilidade da vida se impôs de tal forma que ficou impossível prosseguir normalmente com todo o resto, tampouco deixar de lado o impacto dessas experiências em nome de uma versão bem acabada de mim, que alcança seus objetivos apesar de tudo, que é quase o meu mito fundador. Mesmo consciente de todas essas questões, agora que o pior do turbilhão passou ainda me pego culpada por todas as coisas poderia ter feito e não fiz, tudo que fiz mais ou menos e queria ter feito mais, melhor, e também algumas coisas que preferia não ter feito de jeito nenhum. É difícil negociar o reconhecimento da nossa história quando sabemos que o Processo ainda não cabe em um relatório de desempenho. Eles não podem descobrir que somos apenas pessoas.
A parte irônica disso tudo é que, mesmo sem conseguir escrever minha dissertação, nunca estive tão conectada ao meu tema de pesquisa. Meu trabalho gira em torno de alternativas encontradas por mulheres para contar suas histórias cheias de complexidades e conflitos que não cabem nas premissas do jornalismo tradicional, e por isso precisam romper com ele. O mesmo vale para a ciência tradicional, que deixa de fora tantas vozes e possibilidades porque não foi pensada para contemplar tantos outros mundos. Durante a pesquisa me apaixonei por epistemologias que fogem dessas tradições para abraçar o conflito em vez de escondê-lo em uma nota de rodapé chamada de O Processo.
"O lixo vai falar, e numa boa", escreve a Lélia Gonzales na introdução de um dos seus artigos. Em This bridge called my back, Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa reúnem poemas, desenhos, ensaios, análises, entrevistas, críticas, relatos muito íntimos e localizados para dar conta de registrar, assimilar e entender a experiência de mulheres não-brancas, em um trabalho que reflete em sua forma as exclusões e desigualdades que descreve. Meu novo favorito nessa leva é Haunting the korean diaspora, livro em que Grace Cho inclui o silêncio e seus fantasmas pessoais para contar a história da guerra das Coreias. Minhas questões parecem pequenas e até ridículas diante desses exemplos, mas eles têm me ensinado que abraçar o humano, o confuso, as rupturas e conflitos é o única forma possível de reivindicar a vida em meio a esse contexto que nos força tanto à desumanização. Lembrei agora de um conselho que minha orientadora da graduação me deu em um dos meus vários colapsos no processo de escrita: você não precisa estudar mais, você precisa sair daqui e tomar um milkshake.
A vida se impõe, e é preciso se entregar a ela.
Sei que vou terminar minha dissertação de mestrado e ela vai ser exatamente aquilo que esperam, porque é isso que sei fazer, o que fui treinada e me treinei para fazer nos últimos 26 anos. Da mesma forma, vamos continuar trabalhando, vivendo, produzindo e até mesmo melhorando, porque ainda não temos outra escolha, mas podemos nos olhar - para dentro e para os outros - de um jeito diferente, para pelo menos tirar a vergonha e a culpa de cena. Teorias do reconhecimento: outro conceito que está no centro da minha pesquisa e sinto que só agora, nessa urgência de conexão em meio a uma situação limite, pude entender de verdade. Se voltasse àquela história infanto-juvenil do início do texto, acho que a saída do purgatório estaria em pistas deixadas pelas próprias crianças em suas versões mais velhas em um universo de tempo circular. Alguém diria que a resposta estava dentro deles o tempo inteiro, o filme termina (sim, já vendi os direitos para a Netflix) com todo mundo em uma lanchonete, a música dos Saltimbancos tocando no fundo.
Nas últimas semanas tenho feito o exercício de me apropriar novamente do Processo sem tentar suprimi-lo, sem usá-lo como instrumento de tortura contra mim, para deixar que a vida se imponha e que eu possa agir a partir dela, e não fugindo dela como um hamster em uma esteira. Escrevi O Processo porque precisava dizer em voz alta que não sabia direito o que estava fazendo e me libertar das ilusões de certeza, e acho que escrevo isso agora para dizer em voz alta que não tenho dado conta, porque acho que só assim posso acessar um poder que é meu de verdade. Para o Han, a saída está na liberdade que não é aquela individual (o genital do capital, nunca se esqueçam!), mas a compartilhada: "Ser livre, portanto, não significa nada mais do que se realizar conjuntamente. Liberdade é sinônimo de comunidade bem-sucedida."
Gostaria de dividir isso com vocês. Aceita um milkshake?
Histórias salvam a sua vida. Histórias são a sua vida. Nós somos as nossas histórias, que podem ser a prisão e o pé de cabra que vai arrombar a porta; criamos histórias que nos salvam ou que nos prendem, a nós ou a outros, histórias que nos elevam ou nos esmagam contra o muro de pedra dos nossos medos e limitações. A libertação sempre é, em parte, um processo de contar uma história: romper histórias, romper silêncios, criar novas histórias. Uma pessoa livre conta a sua história própria. Uma pessoa valorizada vive numa sociedade em que a sua história ocupa um lugar.
(SOLNIT, Rebecca. Uma breve história do silêncio. In: A mãe de todas as perguntas. 2017)
Disco da Semana
Italian Ice (Nicole Atkins): Estou correndo atrás dos discos que deixei passar ao longo de 2020 e o primeiro que me prendeu nesses quatro dias foi Italian Ice, da Nicole Atkins, que saiu em maio do ano passado e aparece na listinha de favoritos do Wilco. Eu já gostava demais da pegada anos 50/60 do som da Nicole Atkins e ela entrega o melhor disso nesse disco chiquérrimo que combina muito com a energia de decadência e autoindulgência que tem tudo a ver com os nossos anos 20, agora que acumulamos traumas o suficiente pra viver uma era de hedonismo, champanhe e rímel borrado. Para ouvir de roupão em casa tomando um uísque caubói.
Músicas favoritas: Forever, Captain (com o Britt Daniel, do Spoon!), St. Dymphna e These Old Roses.
Links, links links
- Para mais psicanálise anticapitalista, ouçam essa entrevista da Vera Iaconelli para o Café da Manhã, que já começou o ano com o pé na porta falando que a família burguesa é uma mentira, a vida fácil é uma fantasia neoliberal e da importância de criarmos nossos próprios rituais.
- On Online: Alice Kenney escreveu tudo que queria escrever sobre performatividade online e como as mídias sociais nos fazem bidimensionais.
No matter how many followers a person has, they are a person, and your bullshit comment might make them not sleep, be mean to their partner, distract them during dinner. Is that the intention? What is your purpose when you do that, if you do? I have my own history of subtweeting—it’s a sick compulsion. If shit isn’t personal, if shit isn’t actively evil, it isn’t your business. Instead of getting angry on social media, I’ve tried to use those feelings to inspire actual work.
- Para começar o ano feliz de graça: mais um emocionante capítulo da saga da Ariel Bissett com a cor do desafio anual de leitura do Goodreads.
- Janeiro é o mês oficial dos desafios de yoga, então aproveito para compartilhar meus canais favoritos:
Breath é o tema de 2021 da professora Adriene. Os 30 dias de yoga começaram no dia 02, mas ainda dá tempo de correr atrás e tem e-mail fofo todos os dias pra dar aquele ânimo.
Pri Leite vai fazer 21 Dias de Leveza a partir de 10 de janeiro, as séries especiais dela também são ótimas.
O desafio da professora Kassandra infelizmente é só para os assinantes do app, mas a aula de ano novo que ela liberou no canal é uma delícia e me ajudou a escrever meus desejos de ano novo (e uma cartinha pro meu eu do futuro), coisa que não fazia há anos!
Ufa, agora acabou!
Esse texto foi publicado originalmente lá no blog, mas eu sempre senti que ele pertencia de verdade ao espaço dessa newsletter, que foi onde tudo começou. Achei que o ano novo era a oportunidade perfeita para fazer esse resgate e espero que vocês possam aproveitar essa reflexão de alguma forma. Os letreiros que aparecem nas fotos são de trabalhos da Jenny Holzer, uma artista que gosto muito, e que o próprio Han cita na epígrafe de Psicopolítica. Boa parte das obras que citei estão com meu link de afiliado da Amazon, o que é uma bosta mas é o que nesse momento me ajuda a manter esses projetos no ar sem que vocês tenham que pagar algo a mais por isso.
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Espero que tenham gostado dessa retomada do formato antigo da newsletter, que eu estava com muita saudade de escrever. Um feliz ano novo a todes e obrigada especialmente por todas as respostas carinhosas da última edição. Vamos que vamos!
Stay beautiful!
Yours truly,
Anna Vitória
Sempre que quiser, responda essa newsletter como um e-mail normal e escreva para mim ou me encontre por aí
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