para ler ouvindo no recreio sounds #2
Hello stranger, como vai você?
“Sinto falta da construção de novas memórias – boas memórias”, escreveu o jornalista Larry Fitzmaurice em uma das últimas edições da sua newsletter. No texto ele faz uma ligação interessante entre música e a criação de boas lembranças: escrevendo sobre música ele era obrigado a descobrir coisas novas o tempo inteiro, mas sendo um fã de música ele estava também conectado a um universo que tinha uma conexão íntima com o mundo lá fora – shows, bares, festas, novos amigos e amores. Quem gosta de música sabe que todas essas experiências costumam vir entrelaçadas de música e é estranho viver em um mundo onde até temos músicas novas, mas poucas possibilidades de construir novas memórias, boas memórias, com elas. “Sinto mais falta disso do que de cinemas, de bares e de shows – juntos”, ele continua, “e espero que esperar que essa sensação volte de maneira mais ou menos regular não seja esperar muito desse futuro que estamos encarando.”
O texto bateu forte para mim por articular algo que também venho sentindo desde que o ano começou, mas ainda não tinha conseguido colocar em palavras. Semana passada*, por exemplo, foi uma ótima semana. Eu nem lembrava mais o que era isso. Na minha última sessão de terapia disse que estava feliz sem motivo e comecei a citar os eventos recentes para tentar identificar as origens de toda aquela serotonina intrusiva. Descobri que minha felicidade vinha pura e simplesmente do fato de ter saído de casa – só que eu não saí para ir ao mercado, ao médico ou para correr no parque em um horário esdrúxulo que me permite evitar as pessoas, mas sim para fazer uma prova de vestido de festa para uma festa que já nem sei mais quando vai acontecer.
Sempre odiei experimentar roupas, com ou sem pandemia, mas a loja atendia com horário marcado, só tinha eu e uma vendedora lá com uma hora e meia para gastar, os provadores eram amplos e frescos, com uma luz extremamente favorável, e do lado de fora havia uma plataforma toda iluminada em frente a um espelho enorme para você poder subir, se olhar e girar usando lindos vestidos. Quando dei por mim já estava andando só de calcinha e sutiã pelo lugar, topando provar todos os vestidos que me davam na mão só pela graça, inventando desculpas para não ir embora, jogando conversa fora. Cheguei em casa flutuando, inebriada, bêbada de uma euforia de possibilidade, só porque durante uma hora e meia consegui enxergar um Depois, uma vida mais leve e sem medo em que novas memórias, boas memórias, me esperam. Fiquei feliz não só por sair de casa e vestir roupas bonitas, mas pela chance de dedicar meu tempo para um evento do futuro que não é essencial, que existe em uma dimensão que não é a nossa, que lembra que a vida já foi mais que isso e que um dia pode voltar a ser.
Roupas novas podem fazer isso, música também. Sinto falta de construir boas memórias e de existir no mundo sem medo de ocupar espaço, e aí esse medo não tem nada a ver com minhas neuroses, mas com esse mundo empobrecido que a vida pandêmica coloca diante de nós, um mundo em que a gente precisa literalmente se encolher, desviar e ter medo uns dos outros. Os vestidos brilhantes que experimentei naquela tarde de segunda me ajudaram a matar a saudade de fazer planos, planos bons, mesmo sem data definida, de jogar conversa fora com uma pessoa desconhecida, de andar sem rumo pela cidade ouvindo música e só pegar o carro quando cansar, de ficar inebriada pelo encontro com aquela pessoa leve e bonita que ainda existe aqui.
Foi um sentimento parecido com o de um primeiro encontro, o de um primeiro beijo – você sabe que não vai ser sempre assim, você sabe que a forma como vê aquela pessoa vai mudar várias e várias vezes, mas naquele momento em que nada é tão bom e tão perfeito quanto aquela proximidade, quanto aqueles olhos que te olham de perto, é bom acreditar. Is this esperança?
Agora já tá tudo uma merda de novo, com toque de recolher na cidade e lei seca até segunda ordem (o que é mais do que necessário no momento), mas foi bom descobrir que ainda existe essa vibração dentro de mim. Sem querer querendo, a seleção de álbuns da semana remete um pouco a esse estado de espírito – ou melhor, todo o espectro de emoções que existe dentro da experiência de acreditar, de se permitir, de querer mais. Espero que quem estiver ouvindo possa sentir um pouquinho de tudo isso também. Espero que esperar que essa sensação volte de maneira mais ou menos regular não seja esperar demais.
Ouvir música é o que tem mantido minha cabeça para fora da água nos últimos dias e por isso decidi dar continuidade ao meu projeto de ouvir discos novos todos os dias, mesmo tendo perdido o fio da meada ao longo de fevereiro. O texto acima, por exemplo, começou a ser escrito no dia 18, mas só consegui finalizá-lo ontem. Subestimei a quantidade de compromissos que tenho em um mês e o tempo que levo para de fato absorver um álbum novo. Decidi mudar a periodicidade para 15 dias e levar o tempo que for para ver clipes e apresentações ao vivo, coisa que me fez muito bem. Convido vocês a fazerem o mesmo nos dias mais difíceis, e nos dias bons também.
Para ler o post completo é só acessar o blog (onde confesso minha crush na Jorja Smith e compartilho minha obsessão recém adquirida por The Weeknd e Carole King) e na playlist tem uma seleção bem legal das músicas que mais gostei de ouvir no período.
LEIA NO RECREIO Para todos os garotos que já beijei
Disco da Semana
Women In Music Pt. III (Haim): Women In Music saiu no ponto mais baixo do meu 2020 e acabou ficando marcado pelo período, já que foi uma fase em que eu saía todo dia pra correr pelo bairro e ele sempre ia comigo. Nunca tinha corrido antes e saí correndo de maluca, como uma tentativa de expurgar tudo de ruim que vinha fermentando dentro de mim, porque correr na rua era o mais próximo que eu poderia ter de correr pra fora da minha cabeça. “I’ve Been Down” logo se tornou minha favorita no álbum porque começa com uma confissão parecida com a minha experiência naqueles dias estranhos e horríveis: running around town, feeling up and down, taped up the windows in the house, but I ain’t dead yet.
Precisei me afastar um pouco dele quando as coisas começaram melhorar, porque a memória sensorial era forte demais, mas foi excelente reencontrá-lo agora. Apesar de ter sido gravado antes da pandemia, Women In Music conseguiu capturar muito bem os vários humores da vida em quarentena. Faz sentido, já que ele reflete muito a experiência de Dani Haim com a depressão, seus altos e baixos, o impacto da doença do seu namorado (o produtor Ariel Rechstaid) e os anos em que o trio passou cozinhando o aguardado retorno depois de Something To Tell You, lançado em 2017. As músicas misturam sentimentos de ressaca emocional, redescoberta da vida, sol na sacada, delicadezas que salvam o dia, solidão, acolhimento, novamente a urgência de sentir a mão de alguém na sua bunda (enquanto estado de espírito) que bate às 3 da manhã de uma madrugada insone. Essa mistura de sentimentos vira uma salada de sonoridades que elas conseguem harmonizar muito bem, fazendo com que a mistura de referências – Joni Mitchell, Sheryl Crow, Prince, TLC, Fleetwood Mac – faça todo sentido e soe única e autêntica através de suas vozes e guitarras.
É um disco pra se ouvir correndo de maluca pela cidade, pra tocar domingo de manhã depois de lavar o rosto e abrir as janelas, música praquele dia de trocar os lençóis depois que você cansa de ficar triste, trilha sonora de praia deserta e o disco que quero ouvir andando na rua sem máscara quando tudo isso passar.
Músicas favoritas: "I've Been Down", "Gasoline", "Los Angeles", "All That Ever Mattered" e "The Steps".
Links, Links, Links
- Furries are hacking VR Sex! Esse texto chegou até mim através de uma das minhas newsletters favoritas do momento, Garbage Day. O título da reportagem consegue ser sensacionalista e bem preciso ao mesmo tempo, mas vale a pena ler tudo e entender a história sobre o cruzamento entre as indústrias de sex toys e realidade virtual, que encontrou na comunidade furry uma bela cobaia para testar sua nova invenção. É exatamente isso aí que vocês estão pensando e fico aqui imaginando os desdobramentos possíveis em uma era de distanciamento social. Much to think about..
- "Depressão é um sofrimento compatível com o neoliberalismo" - entrevista bem boa do Christian Dunker sobre as explicações contemporâneas e sistêmicas para o aumento de casos de depressão pelo mundo nos últimos anos.
- Dunker de novo, agora falando sobre a ligação entre o imperativo de sermos especiais, extraordinários, e a lógica de produção neoliberal que leva à precarização das nossas vidas e ao afastamento de nós mesmos.
Entre o desabrigo de um e a precarização do outro é necessária uma nova política para o sofrimento. Ela começa pelo reconhecimento do comum e da intimidade. Diante do imperativo de felicidade e do conformismo de uma vida em estado de risco, exceção e sobrevivência é preciso levar mais a sério o potencial transformativo dos que sofrem. Reconhecer o fragmento de verdade que existe nas contradições de nossos desejos.
- O link acima chegou até mim através da newsletter da Carla Soares, do Outra Cozinha. Ela lançou recentemente uma campanha de financiamento recorrente para continuar o trabalho feito no site e na newsletter, e taí um bom investimento para o seu dinheiro, se essa for uma possibilidade para você. É um projeto que acredito bastante, que me inspira e ensina muito, e acho que todo mundo que torce por uma internet mais legal e humana deveria conhecer.
- "Against loving your job", um texto que me fez pensar bastante sobre a importância de desvincularmos nossos afetos e identidades do mundo do trabalho e voltá-los para nós mesmos e o mundo ao redor.
People have tried to blame the internet for our collective loneliness, but in fact it comes alongside the change in our working lives and the decline of unions and other institutions that gave people a sense of shared purpose and direction beyond just the job. When I asked the union activists at the Rexnord manufacturing plant in Indianapolis what they’d miss when it closed down in 2017, they all mentioned their friends and the union. Not the work itself.
Work will never love us back. But other people will.
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Sei que tá foda, tá pesado, tá pior do que jamais esteve e espero que esse texto e essas músicas possam trazer um pouco de alento e companhia para vocês. Foi algo que escrevi com carinho pensando muito nos meus amigos, em tudo que sinto falta, em todos os motivos que me fazem resistir e por isso quis tanto compartilhar logo por aqui.
Me conta o que tá te ajudando a manter a cabeça pra fora da água nos últimos tempos?
Se cuidem e se protejam, e, como sempre, stay beautiful!
Yours truly,
Anna Vitória
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