NO RECREIO: Cinco anos é tempo demais
Você sabe a diferença entre os termos Olimpíadas e Jogos Olímpicos?
Descobri recentemente, graças a um manual de redação, que não se trata da mesma coisa - ao menos para quem se importa com minúcias conceituais. Lá na Grécia Antiga, olimpíada era o substantivo que dizia respeito ao intervalo de tempo entre as competições esportivas. Podemos também chamar de olimpíada qualquer competição que ocorre em intervalos preestabelecidos, repetidos continuamente. Essas competições que estamos assistindo agora podem ser consideradas uma olimpíada, mas o nome oficial é Jogos Olímpicos, assim com letra maiúscula.
A diferença que isso faz? Na prática, nenhuma. Para o coitado do jornalista que não pode usar as palavras como sinônimos para economizar caracteres, definitivamente um aborrecimento. Para mim, um detalhe que inspirou alguns pensamentos.
1980 foi há vinte anos. 1990 foi há dez anos. 2000 foi há dez anos. 2016 foi há dois anos. 2018 também foi há dois anos. 2019 foi ano passado. 2014 foi há quatro anos.
“1980 foi há vinte anos. 1990 foi há dez anos. 2000 foi há dez anos. 2016 foi há dois anos. 2018 também foi há dois anos. 2019 foi ano passado. 2014 foi há quatro anos.”: é exatamente assim que minha cabeça funciona. E, desde que os Jogos Olímpicos de Tóquio começaram, lembro dessa enunciação e tento organizá-la lado a lado da revelação que 2016 foi na verdade há cinco longo anos.
Parece um suspiro, mas lembrar dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro me fez ver que cinco anos também pode ser tempo demais.
Eu e minha amiga Flahana Pfeifer em frente a uma medonha pintura de parede que une os arcos da Lapa e o padrão gráfico da orla de Copacabana - fachada do finado Carioca Bar, boteco em Uberlândia (MG) que transmitia os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro
A confusão descrita pelo tuíte me remete ao fato de que, desde que me formei na faculdade, no fim de 2015, os anos parecem ter passado como se emendados um no outro, sem distinção definida. 2016 foi o primeiro ano desde o maternal em que minha vida não girou em torno da estrutura de uma rotina de estudante cujo ritmo era determinado por bimestres, semestres e um progresso contínuo rumo a uma linha de chegada.
Perder esse referencial fez com que de alguma forma eu perdesse também a ideia de tempo, que se aglutinou de maneira indistinta até encontrar um enorme paredão em março de 2020, o início da pandemia. Ainda tenho dificuldade de ver 2020 e 2021 como anos diferentes, mas esse é outro texto. E o significado, ou até mesmo a existência (ou não), dessa linha de chegada meio que se tornou o meu único tema de reflexão.
2016 foi o ano em que comecei a escrever essa newsletter, e também o primeiro ano em que me vi como adulta. O sentimento não vinha de um lugar de segurança ou autoconfiança, pelo contrário: eu estava aprendendo da pior maneira que ser adulto é ter o direito, o dever, o FARDO de seguir um caminho e ser responsável pelas consequências que ele pode trazer. É uma condição muito solitária. De maneira muito dramática e bastante autocentrada, em 2016 eu sentia que havia chegado ao final de uma história que começara a tecer para mim vinte anos antes, mas em vez de encontrar uma portal para aquele final feliz tão prometido, o primeiro dia do resto da minha vida, eu só havia encontrado um enorme vazio assombrado por expectativas.
Rory Gilmore no revival de Gilmore Girls dizendo que não tem trabalho, não tem crédito e não tem calcinhas
A parte boa dessa minha obsessão em manter registros na minha vida na internet é que vou deixando trilhas pelo caminho que me levam de volta exatamente para o que eu estava fazendo, pensando e sentindo em diversos momentos, o que é um baita presente quando a gente precisa de um pouco de perspectiva. 2016 parecia ter sido há dois anos só até o momento em que mergulho nesses arquivos¹ e vejo que eles parecem mais um documento histórico do que uma memória recente. Cinco anos é tempo demais.
A coisa mais legal que achei foi a playlist que fiz no final do ano, Discoteca 2016. Não lembro se cheguei a divulgar na época; conhecendo meu jeito obsessivo de construir playlists, ela me parece mais um trabalho inacabado, o que só deixa tudo mais interessante depois de tanto tempo. Ouvi enquanto cozinhava o almoço de domingo e de repente fui lembrando de detalhes específicos daquela fase, memórias bestas que há anos não revisitava. Uma delas: a segunda música da playlist é a versão de “Daddy Lessons” que a Beyoncé gravou com as Dixie Chicks The Chicks. É a única música do Lemonade que aparece na playlist, o que me pareceu estranho até eu lembrar que por muito tempo o álbum não esteva sequer no Spotify, e por conta disso eu até cheguei a ser assinante do Tidal por alguns meses.
Can you believe?
Daddy Lessons
Eu peguei dengue nos primeiros dias de 2016 e passei a primeira semana do ano de cama. Apesar de não ter sido um caso grave da doença, foi a coisa mais debilitante que já senti (lembro que só conseguia tomar banho sentada em um banquinho) e essa lembrança sempre me assombra diante da possibilidade de ter COVID-19, mesmo uma infecção branda. E aí no meu primeiro dia bom depois da dengue o David Bowie morreu.
Lembro desse dia com detalhes porque também foi o dia que minha mãe acordou com o pescoço travado e eu precisei levá-la de carro até o hospital, apesar de não ter carteira de motorista e do meu pânico de direção (por que não chamamos um táxi? como assim a Uber ainda não tinha chegado em Uberlândia em 2016? são muitas questões). Ouvi a notícia pelo rádio ainda de manhã, mas minha ficha caiu apenas horas mais tarde, enquanto andava do banco até em casa embaixo de uma garoa fina. Ah é, nesse dia eu também perdi meu cartão de crédito e estava a dois dias de viajar. Dei play em “Life on Mars?” e comecei a chorar.
Só agora me dei conta que “Lazarus” - que abre a edição de hoje - foi a única música do Blackstar que tive coragem de ouvir, e lá se vão cinco longos anos. Now, ain’t that just like me?
Na foto acima temos uma relíquia que achei no backup de fotos do celular, direto de uma época em que eu conseguia manter uma rotina consistente de backups no celular. É uma tentativa de lettering (rindo) que fiz usando uma letra de música do Wilco, que era a minha favorita da época. Acho que cinco anos parece distância muito curta para o abismo que existe entre quem sou hoje e a pessoa que fazia… isso. É uma das primeiras páginas de um “journal” que comecei a preencher naquele ano - o objetivo era começar um registro daquela nova fase da minha vida - e mal sabia eu que alguns meses depois o Wilco lançaria um novo disco e anunciaria sua primeira turnê no Brasil em mais de 10 anos.
Quando o show foi anunciado eu estava no meio de um processo seletivo de trainee Folha de São Paulo. Meu celular quase travou ao ser tirado do modo avião no final do dia, todas as pessoas da minha vida haviam enviado links daquela notícia para mim. Tudo aconteceu bem no dia que eu estava prestes a realizar um sonho, uma espécie de linha de chegada que tracei para minha vida anos e anos antes.
Eu sempre quis trabalhar na Folha e era surreal estar tão próxima daquilo. O surrealismo de tudo era amplificado pelo fato de estar hospedada em um hotel cinco estrelas às custas do jornal, as mãos tremendo para comprar ingresso pro show da banda da minha vida, um ingresso de pista VIP que passei num cartão de crédito que nem era meu, ignorando completamente o fato de que eu estava prestes a embarcar num treinamento não remunerado com duração de dois meses em uma das cidades mais caras do país. Era um alinhamento cósmico desses que só o capitalismo e a juventude fazem parecer poético.
O shows aconteceram em outubro, e lembro que gritamos “Fora Temer” quando o vocalista, Jeff Tweedy, falou sobre sua angústia em relação à situação política dos Estados Unidos. Era dia de debate para os candidatos à presidência e a vitória do Trump parecia algo surreal o bastante para que gritássemos nossa revolta em parte por solidariedade, mas também por acreditar no fundo que já estávamos vivendo algo muito pior, a pior coisa que poderia nos acontecer, a distopia, o fundo do poço. Rindo.
Sempre que lembro que existiu uma dimensão temporal em que não estávamos completamente esbagaçados por todo o estrago e pelo trauma coletivo causado por esses filhos da puta, a distância de cinco anos me parece do tamanho de um buraco negro.
Wilco performing "Someone to Lose" Live on KCRW
Lembro dessa época e sinto que vivi muitas vidas diferentes em um ano só, um ano muito estranho. Comecei ainda como estagiária, vivendo uma vida parecida com a dos anos de faculdade, mesmo campus e quase a mesma rotina. Depois, dois meses frenéticos em São Paulo vivendo um sonho. Vejo “Higher” na minha playlist e sou levada de volta para aquela temporada maluca e suas noites muito geladas. Era a música que eu mais gostava de ouvir enquanto dissolvia na banheira e não conseguia enxergar mais nada graças ao vapor e à fumaça. Torcia para que as paredes do banheiro fossem bem grossas para que ninguém mais me ouvisse tentando alcançar aquelas notas. Demorou um pouco, mas agora já perdi a conta das vezes em que o verso “this whiskey got me feelin’ pretty” me ajudou a tomar decisões impulsivas.
“Direct Address”, da Lucy Dacus, me lembra que em 2016 eu estava apaixonada. Fissurada talvez seja a palavra mais correta, uma história perfeitamente encapsulada pela letra da música que diz: “I don’t believe in love at first sight, maybe I would if you looked at me right”. A playlist também tem “Vinheta”, da Clarice Falcão, que ouvi obsessivamente depois de levar o primeiro ghosting da minha vida, parte de uma grande aventura pelos apps de paquera para tentar esquecer a fissura de uma paixão que nunca vou saber se foi correspondida. Eu devia ter aprendido a beber uísque bem antes.
Saí com um médico muito simpático - fez faculdade em Ouro Preto, andava de moto, odiava a classe médica e, assim como eu, tinha opiniões fortes sobre mobilidade urbana - e até hoje não sei por que paramos de nos falar. Nos reencontramos em 2018, quando ele foi responsável pelo exame admissional que fiz ao conseguir um novo emprego. Fizemos piada da situação, soube que ele estava cursando Letras no tempo livre, e agora eu tenho essa história engraçada pra contar, do dia que entrei num consultório médico e dei de cara com um antigo match do Tinder.
E pensar que eu já estava apaixonada por outra pessoa, para vocês verem como o mundo gira. Cinco anos é tempo demais.
E de repente eu estava desempregada. O trainee no jornal foi o início de um sonho em que deu tudo certo e tudo errado ao mesmo tempo. Tive a chance de estar onde sempre quis só para descobrir que ali não era o meu lugar. Ainda assim, doeu quando as coisas não aconteceram de acordo com a minha expectativa, que era a de ser contratada. Eu torci secretamente para isso, porque me pouparia do esforço de tomar uma decisão, mas odiei a sensação de ter falhado, um não-te-quero-mas-também-não-te-largo profissional. Também não fiquei em São Paulo como imaginei que ficaria e percebi que eu era menos corajosa do que imaginava. Voltei pra casa carregando como troféu uma prova antecipada do livro Exames de Empatia que estava jogada na redação, e se não me engano a primeira coisa que li nos meus estudos informais sobre vulnerabilidade e que foram tema de uma série de textos por aqui.
“Diamond Heart”, do álbum country da Lady Gaga², é a música que me remete a todo esse processo e marca aquilo que eu e a Clara chamamos de Ano das Emoções, uma ideia que só foi tomar sua forma definitiva em 2017, mas que para mim começou bem antes. 2016 me quebrou e eu precisava elaborar isso de alguma forma, só que ainda não conseguia colocar a mão onde doía, não exatamente.
Então escrevia, lia e pensava obsessivamente sobre como era importante aprender a ser frágil, a expor nossas fissuras, a colocar os sentimentos sobre a razão. Eu precisava dessas ideias porque estava quebrando contra a minha vontade e precisava de me inserir em uma narrativa maior, mais interessante, mais poética - porque na realidade eu só era mais um prodígio que não cumprira sua promessa e em 2016 eu era jovem, arrogante e ingênua o suficiente para acreditar que, de alguma forma, o mundo ia acabar só porque eu não era perfeita. Me vi como adulta em 2016 porque foi quando eu entendi que ser adulta era ter que dar um jeito de continuar mesmo quando dava tudo errado.
E o mais doido é que a gente continua, porque é o único jeito.
“Cranes In The Sky” era o que eu ouvia para sentir pena de mim.
Solange - Cranes in the Sky (Video)
Em 2016, meu mundo oscilava entre ser pequeno e grande demais, enquanto eu me sentia ora minúscula e ameaçada por esse mundo, ora enorme - às vezes presa, esmagada, e às vezes pronta para transbordar para fora dele. É um sentimento que nunca vai embora, e cinco anos foi o tempo que levei para aprender que é assim que o mundo gira. Pensar nisso me acalma um pouco.
Aprendi também que posso me mover junto com o mundo, e que essa é a única coisa que posso fazer. É um privilégio, um consolo, uma esperança, um desespero. Tudo que é bom acaba, a gente erra e perde o rumo, mas tudo que é ruim também acaba, e a gente se encontra de novo. E de novo e de novo e de novo. This way or no way, I’ll be free - é o que disse o David Bowie antes de morrer.
2016 foi há cinco anos e acho que o que me assusta nessa informação é pensar na quantidade de coisas que achei que fossem pra sempre, que achei que seriam exatamente a minha vida, e de repente, no intervalo de míseros cinco anos, já não são mais.
Olimpíada é um bom nome para esse intervalo de tempo, porque carrega consigo um imaginário de desafio, maluquice, intensidade e imprevisibilidade que combina muito com o significado da palavra vida.
Onde será que vamos estar daqui cinco anos?
¹ Como eu estive sem tempo nos últimos dias, meu plano para essa edição era resgatar um texto antigo, publicado em 2016, quando conto minha trajetória fracassada enquanto atleta. A ideia era incluir apenas uma pequena introdução, mas quando eu vi tinha um texto novo inteirinho. Se você preferir o plano A, “Uma medalha pelos meus fracassos” pode ser lido aqui.
² Cinco anos depois, sigo defendendo o álbum Joanne. Espero que no pós-pandemia eu consiga realizar meu sonho de cantar “Hey Girl” no karaokê.
³ Uma reflexão que não coube no texto: cinco anos é tanto tempo que 2016 foi o ano que O Terno lançou o Melhor Do Que Parece e nós falávamos muito sobre o Pensamento Millennial. Em 2021 não tem nada MAIS ANTIGO do que isso. Feel old yet?
Dever de casa
Coisas para ler, ouvir e assistir nos próximos dias
No Café Existencialista: texto da Isadora Sinay sobre o livro No Café Existencialista (duh), mas também sobre sua trajetória enquanto existencialista e o que significa sobreviver.
Conselho aos vivos: um texto que mostra um jeito muito bonito e muito íntimo de falar sobre morte. Do blog da Juliana Cunha.
Ultrasuperfície 2003 - 2005: minha amiga Glênis, do méxi-up, me recomendou esse trabalho da artista Amanda Devulsky, que fez uma espécie de arqueologia dos seus arquivos no Fotolog para falar um pouco sobre imagens online e o que é ser mulher na internet. Quem curtiu a edição passada vai pirar nisso aqui.
É hora de dar tchau
Obrigada pela companhia em mais um recreio. Me conta o que você estava fazendo em 2016?
Para falar comigo, compartilhar alguma reflexão ou angústia existencial, é só responder esse e-mail como uma mensagem normal. Você também me encontra no me dar um alô no Twitter, no Instagram ou no Curious Cat.
Se cuidem, cuidem dos seus, e é claro, stay beautiful!
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Por anna vitória
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na pior cidade da américa do sul, brazil