NO RECREIO: Exausta da pós-modernidade
Sempre que preciso escrever o termo “sujeito feminista pós-pós-estruturalista” na minha dissertação de mestrado, eu lembro por que estou tão cansada. Pior do que escrever, só mesmo ter um espaço reservado no meu cérebro exclusivamente para memorizar e processar o que ele significa, coisa que infelizmente também faz parte da minha realidade. Não há paz.
Pesquisar e escrever sobre um universo que inclui conceitos como “sujeito feminista pós-pós-estruturalista” é, na maior parte do tempo, um enorme prazer, mas também cansa. Viver esse universo da pós-modernidade e ter meu cérebro adestrado para operar nessa mesma frequência frenética (com o toque extra de fragmentação e velocidade adquirido por todo o tempo que passo nas redes sociais), ainda mais sem sair de casa, tendo toda a minha existência mediada por telas, criou em mim uma fadiga que simplesmente não passa. Nothing’s real. Everything is far away. Everything is a copy of a copy of a copy.
Eram pra ser só 15 dias, mas de repente virei uma pessoa que sente vontade de citar frases d‘O Clube da Luta por aí. Alguns dias são piores que outros e esse fim de semana foi um deles (estou extremamente menstruada). Diante da impossibilidade de jogar tudo pro alto e morar no meio do mato (eu jamais faria isso, não suportaria os insetos), recorri ao que gosto de chamar de Limpador de Paladar Para a Mente, algo que talvez você conheça por aí como o subgênero cinematográfico Filmes de Hominho: numa tarde de sábado modorrenta, decidi assistir Top Gun - Ases Indomáveis pela primeira vez.
DJ, sobe o som.
Berlin - Take My Breath Away (Official Video)
Ao longo da semana passada, peguei pelo menos uns três anúncios do filme nos comerciais da Globo. Não sei por que eles toparam gastar tanto tempo de propaganda com um filme de 1986 que seria exibido num sábado à tarde, mas a verdade é que a música tema é tão poderosa que me lembrou que um dos pontos altos da minha infância eram os anúncios da programação da Sessão da Tarde especial de férias ou de Dia das Crianças. Achei que resgatar esse sentimento seria uma boa forma de apaziguar meu cansaço pós-moderno - porém preferi prestigiar Top Gun - Ases Indomáveis com legendas na Netflix. Nem sempre viver no futuro é tão ruim assim.
Nunca tinha visto Top Gun - Ases Indomáveis e não fazia ideia de qual seria a história. Sabia, vagamente, que tinha algo a ver com aviões. Sabia que tinha o Tom Cruise e um romance avassalador embalado pela canção “Take My Breath Away”, e que tudo isso junto era importante para a construção da mitologia do Tom Cruise enquanto galã daquela época. Para o regozijo da minha mente cansada, foi exatamente isso que o filme me entregou, mas ele também reservava algumas surpresas que prenderam a minha atenção ao longo das longas cenas de batalhas aéreas ou sei lá o que estava acontecendo quando eles decidiam subir num avião.
Tenho uma pequena coleção de clássicos populares que passaram completamente batidos por mim, sobre os quais eu sequer sei a história. Tenho achado divertido resgatá-los de tempos em tempos (como fiz, no início do ano, com Duro de Matar), principalmente porque descubro coisas que jamais poderia imaginar. No caso de Top Gun - Ases Indomáveis, a surpresa ficou por conta da origem do romance avassalador - a mocinha é professora da Escola de Armas de Caças da Marinha! - e com o fato dele ter pouquíssima conexão com o resto da história, e também com o personagem do Tom Cruise.
Apesar de, como frisei anteriormente, Top Gun - Ases Indomáveis ser fundamental para a construção de sua mitologia enquanto galã de cinema, seu personagem, Maverick, é o vilão do filme.
Cursed Tom Cruise
Nessa hora, infelizmente, Top Gun - Ases Indomáveis se aproxima perigosamente de um produto cultural contemporâneo, afinal temos aqui nada mais nada menos do que um protagonista anti-herói com o qual supostamente devemos simpatizar. Só que nada presta no que diz respeito a Maverick, e seu rival no filme, interpretado por Val Kilmer, parece ser um mocinho bem mais adequado. Aliás, descobri que o filme ganhará uma sequência em 2022, o que me faz pensar que Top Gun - Ases Indomáveis (1986) é quase avant garde ao propor a desconstrução do vilão: para um blockbuster dos anos 80, mais coerente seria uma história focada no mocinho mais óbvio (Val Kilmer) e uma sequência trinta e seis anos depois (RT se você chorou) feita com o intuito de humanizar o vilão (Tom Cruise). De toda forma, já sabemos que não existe a possibilidade desse filme novo ser bom, já que remakes desse tipo só servem para tirar tudo que tem de bom no original (farofada) e incluir outras coisas que ninguém pediu - no caso de Top Gun - Maverick, a novidade são os DRONES kkkkk
Caralho eu tô muito cansada.
Quando comecei a escrever essa edição, há umas três semanas, o objetivo era só mesmo compartilhar uma bobeirinha casual - algo que sempre prometo que vou fazer, mas nunca consigo. Hoje não é exceção. Porque no meio do caminho me deparei com dois textos que explicam uma camada do cansaço pós-moderno que tenho sentido, especialmente quando o assunto é cultura pop.
“Por que tudo está igual?”, pergunta Moya Lothian McLean em um texto para a gal-dem a respeito do excesso de homenagens, reboots e remakes que o mundo do entretenimento tem nos oferecido. Ela falava especificamente sobre a edição mais recente do VMA, mas poderia ser sobre quase tudo ao nosso redor. Segundo sua tese, estamos vivendo uma overdose de nostalgia e não é difícil entender os motivos quando damos uma olhada para o que está acontecendo ao redor. Queremos voltar para tempos mais simples, com menos estímulos, quando sabíamos um pouco menos do que sabemos hoje.
Essa nostalgia também surge como um impulso revisionista, de corrigir erros do passado - por exemplo, a falta de diversidade na indústria do entretenimento. No entanto, o que ela sugere (e eu concordo), é que nem sempre a representatividade por si só consegue ser subversiva o bastante, já que estamos repetindo e revivendo antigas estruturas só que com novas roupagens, sem a chance de explorar o que uma mudança radical de ponto de vista teria a oferecer. Nem estou dizendo que essas revisitações não sejam válidas, mas me pego pensando em como seria se abríssemos mais espaço para produções originais, se deixássemos novas vozes e novos olhares de fato viverem seu potencial criativo em vez de só recriar uma fórmula batida. Mas esse nem era o meu ponto.
Reclamando do remake do Rei Leão
No artigo, Moya Lothian McLean cita um outro texto, que sugere dessa vez que o que sentimos falta é de um cenário um pouco menos fragmentado, onde ainda era possível falar de monocultura: ou seja, um território simbólico comum compartilhado por um grande número de pessoas, algo que hoje só é possível acessar na época da Copa do Mundo, numa final das Olimpíadas ou naquele domingo em que o Prior se salvou na prova bate-volta do BBB e eu ouvi meus vizinhos gritarem como se fosse gol do Brasil. Tempos mais simples. Não necessariamente melhores, mas definitivamente mais simples.
Quando me pego com vontade de assistir um filme de hominho pra relaxar, acho que é essa simplicidade que estou buscando. Arrisco dizer que é um conforto de ordem narrativa, aquele aconchego que a mente só encontra diante de uma história com começo, meio e fim bem definidos, que segue uma estrutura familiar, que possui heróis e vilões, que obedece a uma progressão linear de acontecimentos que leva sempre a algum lugar. As coisas explodem no final mas só morre quem tinha que morrer, a polícia chega e essa é uma boa notícia. Exatamente como acontece no mundo real.
Também não quero propor aqui um debate entre o que seria superior ou inferior, melhor ou pior, de um ponto de vista intelectual, filosófico, estético, sei lá. É apenas um comentário, um desabafo de uma pessoa muito cansada. Para todos os efeitos, eu adorei Top Gun - Ases Indomáveis: é divertido e meio ridículo do jeito certo, tem romance, tem drama, tem a Meg Ryan em um papel secundário e o Tom Cruise com sobrancelhas amaldiçoadas. Assistiria novamente em qualquer outra tarde de sábado.
Só que nesse momento específico, minha inclinação por esses blockbusters do século passado vem simplesmente de uma estafa causada por quase dois anos de uma existência 100% mediada, formada por muitas camadas de abas, memes, prints, fotos de fotos, piadas internas formadas por tantas referências que é impossível traçar uma arqueologia que isole a piada original. Quando aquilo que assisto no meu tempo livre repete essa mesma estrutura - não importa se de forma bem feita ou mal feita, para o bem ou para o mal - é como se todo esse acumulado de conteúdo não tivesse nenhuma via por onde escoar.
"Could I interest you in everything all of the time, a bit of everything all of the time?", sugere Bo Burnham em sua canção sobre internet
Por ser um clássico dos anos 80, Top Gun - Ases Indomáveis é ainda mais satisfatório nessa minha busca por experiências planas e bidimensionais. Trata-se de um período muito referenciado na cultura pop e um filme igualmente referenciado e reproduzido à exaustão por aí. Assim, assisti-lo é quase como zerar algum tipo de jogo, encontrar as origens de uma civilização estranha, um gesto equivalente a sair um pouco de casa e pisar na grama como recomendam por aí. Uma grama da casa da sua infância que não existe mais, mas ainda assim.
(Eu vou bloquear quem aparecer querendo me educar a respeito do contexto histórico de Top Gun - Ases Indomáveis)
É puro, é perfeito - pena que não dura muito, assim como qualquer outra ilusão de conforto que a nostalgia, o pensamento linear ou a crença em um sentido narrativo da vida pode oferecer. Não há paz. Basta ver que mesmo eu, que só queria comentar as roupas do filme, não resisti ao adestramento mental de descascar as diferentes camadas dessa experiência que deveria ser mundana, mas parece que essa possibilidade não existe mais, ao menos não para mim.
Para que todas essas palavras não sejam em vão, que conste nos autos que, em se tratando de jaquetaças e cabelos com permanente hollyudiano, eu abro uma exceção e aceito mais referências a Top Gun - Ases Indomáveis no meu cotidiano.
Maverick e Charlie se olhando apaixonadamente com suas jaquetaças
Naquela tarde do bug do milênio, minha amiga Ana Clara levantou a questão do quão DE MENTIRINHA são as coisas que ocupam um espaço cada vez mais fundamental na nossa vida. E se o Spotify desaparecesse, por exemplo? Eu quase não tenho cds em casa, mas me senti mais ou menos segura por lembrar que aqui no computador tenho pelo menos a discografia dos Beatles, do Wilco, da Taylor Swift e do Rilo Kiley (além de dois greatest hits do ABBA), o que diz muito sobre mim. Dava para passar uns dias, ou até meses, bem feliz, e talvez eu finalmente tenha a resposta para os álbuns que levaria para uma ilha deserta. Só que esse papo me lembrou de outra coisa.
O primeiro computador que foi meu de verdade foi comprado de segunda mão, de um primo da minha mãe. Ele mandou formatar antes de nos entregar, mas por algum motivo algumas músicas permaneceram no HD. Era pouca coisa, umas cinco ou seis faixas, a maioria instrumentais que devem ter vindo junto com o sistema. Com exceção de uma delas: o cover da Jessica Simpson para a canção “Take My Breath Away”, grande tema de Top Gun - Ases Indomáveis.
Jessica Simpson - Take My Breath Away
Eu adorava essa música, e por conta desse incidente completamente aleatório passei anos achando que era ela que cantava a versão original do filme. As ideia. Não tenho nenhuma grande reflexão para fazer sobre isso, só achei a coincidência engraçada. Don’t you think the early 2000s seem so far away?
Usuário Jonathan Hebert diz nos comentários do Youtube: "this song brings me back to where I would wanna be again"
Estive ausente, mas meu CPNJ não
Apesar de ter estado ausente desta newsletter nos últimos meses, andei publicando bastante coisa em outros canais.
A novidade mais legal é que a empresa onde eu trabalho está com uma parceria de conteúdo com o Dia de Beauté, the one and only. Todo mês vai sair um texto - assinado por essa princesa que vos escreve - lá no site, sobre temas relacionados a saúde e autocuidado. É um pouco diferente do que costuma rolar no mundinho Anna Vitória, mas eu tenho me esforçado bastante pra colocar um pouco da minha carinha e dos meus temas por lá também. Em outubro, saiu uma das coisas que eu mais curti escrever e pesquisar desde que essa doideira começou e acho que vocês vão gostar também (espero!): “A medicina não foi pensada para o corpo feminino”, sobre os diferentes vieses que existem na ciência.
A medicina não foi feita para o corpo feminino - Dia de Beauté
Estamos acostumadas a pensar sobre a ciência e, mais especificamente, sobre a medicina como algo neutro e objetivo. No entanto, essas ideias mascaram um fato extremamente importante: a ciência não existe no vácuo.
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Em setembro também rolou uma oportunidade bem legal de falar sobre o disco novo da Lorde, Solar Power, lá para o Monkeybuzz. Fazia muuuuito tempo que eu não atacava de jornalistona, ainda mais para falar de música, e fiquei feliz de ter a chance de botar esses músculos para trabalhar de novo e também ver como mudei desde a época que eu só queria ser repórter na Rolling Stone. Assim que ouvi “The Path” pela primeira vez comecei a escrever mentalmente um negócio que imaginei que seria uma newsletter sobre o álbum (como já virou tradição por aqui quando o assunto é a cantora Lourdes), e o melhor presente que o Mau, editor do site, poderia ter me dado foi uma carta branca na forma de “escreve como se fosse uma newsletter”. Eu nem gostei tanto assim do disco, mas gostei muito do que ele me fez pensar.
Lorde – Solar Power – Monkeybuzz
No aguardado terceiro disco, estrela neozelandesa muda a marcha, mira na simplicidade, mas decepciona
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Dever de Casa
Faz dois dias que tô rindo desse tuíte sem parar;
Esse é o meu Instagram favorito;
Fiz um post lá no blog com os looks que mais gostei em Top Gun - Ases Indomáveis (o blog, cês lembram? eu lembrei quando chegou o boleto pra renovar o domínio, e agora que paguei e me comprometi mais um ano com isso achei de bom tom colocar alguma coisa lá);
Graças a esse texto do Rodrigo Ghedin, aproveitei para deletar os plug-ins de SEO do blog;
É hora de dar tchau
Obrigada pela companhia em mais um recreio. Me conta qual o seu filme de hominho favorito?
Para falar comigo, compartilhar alguma reflexão ou angústia existencial, é só responder esse e-mail como uma mensagem normal. Você também me encontra no me dar um alô no Twitter, no Instagram ou no Curious Cat.
Se cuidem, cuidem dos seus, e é claro, stay beautiful!
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Por anna vitória
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Curadoria cuidadosa de anna vitória via Revue.
na pior cidade da américa do sul, brazil