NO RECREIO: Jubileu
Seja muito bem-vinde à primeira edição da nova temporada da newsletter No Recreio!
Se eu pudesse escrever a minha versão da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão¹, reservaria um parágrafo especial ao direito de todo mundo poder instituir um ano novo pessoal de tempos em tempos.
Não estou falando daquele ano novo pessoal que vem com a gente da fábrica, também conhecido como aniversário. Falo de uma virada de chave que decidimos por conta própria, com uma motivação estritamente pessoal, uma casquinha de sorvete que servimos a nós mesmas para começar de novo, começar melhor, deixar pra trás o que não serve, ou brincar de ser um pouco personagem de TV e artista pop que vive de ciclos, temporadas e eras, tendo aí uma desculpa pra mudar o corte de cabelo, trocar as fotos de perfil, pagar uma consulta de tarot ou excluir algumas conversas do Whatsapp.
A natureza em si é cheia de pequenos réveillons: o início de um novo dia, as fases da lua, as estações do ano, os ciclos menstruais no corpo de quem sangra todo mês. Hoje, por exemplo, 21 de junho, é um desses dias³: início do inverno no hemisfério sul e início do verão no hemisfério norte - também conhecido como midsummer², aquela bagunça gostosa. Ano passado comecei a coordenar minhas práticas de yoga a esses ciclos, e graças a esse hábito comecei a construir uma relação diferente com meu entorno e comigo mesma.
Sei que agora, por exemplo, começa um período de recolhimento, de balanço interno, um momento para delinear intenções e traçar estratégias para só daqui três meses, enfim, florescer. Não parece uma boa hora para começar um novo projeto, tampouco um solo fértil para um ano novo pessoal.
Então, o que faço aqui?
com a nova era da lorde eu serei OBRIGADO a passar pra uma nova fase da minha vida de um jeito ou de outro. eh uma regra
Decidi encerrar o projeto 27caos porque no meio do caminho percebi que ele já não fazia mais sentido. Ou talvez ele tivesse cumprido seu propósito prematuramente, ao ser um espaço que me deu a chance de dar sentido ao ano que havia passado, e a partir do momento que entendi, processei e elaborei o que parecia solto dentro de mim, me senti segura o bastante pra seguir em frente.
Mas na despedida escrevi também que me sentia em uma nova fase, uma nova era, e por isso precisava de um novo espaço que refletisse esse momento. É verdade, mas não exatamente. Como escreve a cantora Saylor Twify na canção que serve de trilha para o texto de hoje, I haven’t met the new me yet.
Taylor Swift à deriva em um mar revolto apoiada em seu piano
Para mim é tão óbvio que folklore e evermore não representam uma nova era da cantora Saylor Twify que me surpreende essa não ser a interpretação canônica a respeito dos álbuns (é tão óbvio que está até na capitulação das letras). Em vez de uma nova fase, eles na verdade são um mergulho profundo em todo o seu percurso anterior, como o vídeo de “cardigan” representa tão bem. Depois do choque de reputation (as águas turbulentas do gif acima), ela agora olha para sua mitologia de maneira mais afetiva, madura, tudo para reescrevê-la de novo a partir dessa nova perspectiva - e a trilogia a qual “cardigan” pertence é o que melhor representa tudo isso, da mesma forma que a regravação de todo o catálogo materializa esse processo de forma bem literal.
Como bem definiu a Clara: evermore é reputation depois de ler Nietzsche. E Lover, claro, é a fuga que vem depois de todo surto, o que nada mais é que uma nova camada de surto.
Ela não sabe o que vem a seguir, ela ainda não sabe exatamente quem é e quem vai ser depois do trauma que desfez todas as suas certezas, mas está começando a ficar em paz com tudo isso, está disposta a criar mesmo assim. Em “cardigan”, o piano - ou seja, a música, a escrita - é o eixo de tudo, é o que salva, é o que transcende, é o que leva ela de volta pra casa.
Talvez eu esteja projetando.
Taylor Swift - cardigan (Official Music Video)
Há muito tempo venho me debatendo sobre o que fazer em relação à minha vida online, aos meus projetos de escrita na internet, e acho que no fundo sempre estive em busca de respostas prontas, definitivas, sobre algo que nunca vai ser redondo dessa forma. Falo do nosso ecossistema midiático, claro, mas sobretudo daquilo que compõe sua fauna, eu, você e nossos caos interiores, que sempre iremos transbordar para fora dessas caixas, eras, plataformas e modelos de negócio. Sinto que vou passar minha vida aprendendo que essas respostas definitivas não existem em nenhuma instância da vida, mas que é preciso viver mesmo assim.
Tentei voltar aos blogs ano passado, o que foi um bom exercício, mas agora vejo como uma espécie de era Lover, o retorno a um lugar conhecido e familiar, para onde a gente vai em busca de fôlego, para recuperar as energias e continuar a busca.
Sinto cada vez mais que meu lugar é justamente o de explorar esse limite entre o caos e o sentido que damos a ele, a fresta de ar que circula entre as duas coisas e a aventura que é se deixar bagunçar por ela. É por isso que gosto tanto desse nome, No Recreio: é uma pausa, um respiro entre atos, uma permissão para relaxar e curtir espremida entre momentos de rigidez afogados em vida real, e que precisa muito do espaço da caixa de entrada para existir.
Mas também escrevo isso e penso em “coney island”, dueto entre Taylor Swift e Matt Berninger no álbum evermore: we were like the mall before the internet, it was the one place to be. The mischief, the gift-wrapped suburban dreams. Sempre quis que minha casa na internet fosse esse lugar, um sonho suburbano no meio cacofonia de informações e certezas do lado de fora, o passeio no shopping da nossa pré-adolescência, a palavra recreio como demarcação de algo ultrapassado, um nome que a gente abandona no ensino médio e deixa para as crianças pequenas, mais ou menos o que eu sinto que se tornou a escrita pessoal na internet contemporânea. Agora vejo também como ele pode existir na forma de exercício de autoficção, que mistura cotidiano, reflexão e narrativa, uma forma de me inventar, e também de viver. Nada tão blog quanto isso.
E agora?
Todo ser humano é um romancista, e, por conseguinte, eu sou uma redundância, pois ainda por cima me dedico à escrita. Escrevo romances cujas peripécias não têm nada a ver comigo, mas que representam fielmente meus fantasmas. E agora com este livro em que tentei dizer sempre a verdade, talvez tenha feito, na verdade, muito mais ficção.
Para Rosa Montero, que cito acima, aprender a viver passa pela #palavra, e ela cita a médica e escritora Iona Heath, que diz que “encontrar sentido no relato de uma vida é um ato de criação”.
Sempre me senti uma escritora menor, menos criativa, menos habilidosa, por partir sempre de mim, mas ando cada vez mais fascinada por esse ato de criação que é forjar o sentido da minha vida - de maneira consciente - através das palavras, e de fazer isso de forma pública, compartilhada, tornando essa troca também uma parte da reflexão. Em uma newsletter recente, Haley Nahman sugere que talvez a saída para tornar as redes sociais menos horríveis seja parar de perseguir e performar uma autenticidade impossível e assumir que estamos diante de um meio bidimensional que só capta uma parte de nós construída engenhosamente, e assumir essa artificialidade pode ser mais divertido, interessante e libertador.
Por isso um ano novo pessoal no meio do caminho, com um mesmo nome, um espaço-blog-newsletter inaugurado no primeiro dia do inverno, em meio a uma crise cuja luz no fim do túnel até existe, mas ainda não sabemos quando chega. Me parece o lugar e o momento perfeitos para assumir - acima de tudo para mim mesma - esse meu lugar fronteiriço, quase um não-lugar. Ou talvez eu só esteja com ciúmes de todas as newsletter retomadas ou lançadas recentemente e queira fazer xixi para demarcar o território como meu também, vai saber. Both of these things can be true.
De toda forma, voltei. E continuo incapaz de escrever qualquer coisa sem falar de Taylor Swift.
Taylor Swift ensopada, porém quentinha, com seu cardigan
Tudo pode mudar, mas o que decidi por enquanto foi o seguinte: a newsletter vai voltar a ser o meu canal de escrita principal, com textos enviados quinzenalmente, e eu vou me esforçar para que isso aconteça sempre às segundas, esse ano novo recorrente. O blog vai funcionar como arquivo público, com tudo aquilo que precisa existir de forma mais perene, e também formatos de post que não se encaixam aqui.
Uma vez por mês teremos uma edição especial de favoritos, como um novo Trash Advisor, e mensalmente também teremos a coluna de conselhos, com o que surgir de mais interessante no Curious Cat. Esses números especiais serão enviados, respectivamente, na última sexta-feira do mês, e na primeira quarta-feira.
Se alguma coisa mudar eu aviso vocês (e aceito sugestões, como sempre).
Essas fotos foram tiradas com cinco anos de diferença: a primeira, da esquerda, em 2016, ano em que criei a primeira versão da newsletter, e a segunda, à direita, em janeiro de 2021. Jubileus se comemoram a cada 50 anos, mas já que estamos na internet acho que cinco é mais do que suficiente para justificar a comemorativa - e, assim como a Rainha, aproveito para atualizar minha foto oficial. Muita gente cai de paraquedas aqui sem saber ao certo quem eu sou, acho que faz bem eu me apresentar de novo.
Meu nome é Anna Vitória, tenho 27 anos, sou uma pessoa na internet e, com tudo por aqui, estou sempre me transformando.
Feliz ano novo!
¹ - Sim, faz mais sentido dizer Declaração dos Direitos Humanos, mas na minha cabeça soou melhor escrever dessa forma, colocando o capricho poético à frente do rigor jornalístico.
² - O solstício também não passou batido para a cantora Lorde, o que será que ela vai aprontar?
³ - Na página do dia 21 de junho na Wikipédia descobri que hoje é aniversário do Sartre, o grande existencialista (risos), e também do Ian McEwan, autor de Reparação, provavelmente o meu livro favorito de todos - um livro sobre narrativas, seus perigos e mentiras, como não poderia deixar de ser.
As seções fixas voltam a partir da próxima edição, mas hoje fico por aqui. Espero que você tenha gostado e tope encarar mais essa cilada comigo.
Se quiser falar comigo é só responder essa mensagem como um e-mail normal ou então me dar um alô no Twitter ou no Curious Cat.
Obrigada pela leitura e, como sempre, stay beautiful!
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Por anna vitória
No Recreio é uma newsletter quinzenal de crônicas, ensaios e bobagens de internet, como se fosse a gente tomando coca-cola no recreio na escola. A cada 15 dias, sempre às segundas, uma carta de amor e morte direto na sua caixa de entrada.
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Curadoria cuidadosa de anna vitória via Revue.
na pior cidade da américa do sul, brazil