para ler ouvindo feist - forever before
Eu já estava meio acordada quando o relógio tocou às 5h45 da manhã. Foi uma dessas noites em que você sente que nunca chegou a dormir de fato, até que se surpreende com as horas que se passaram sem você perceber. Desliguei o alarme sem recorrer à soneca do aparelho, segura de que não dormiria de novo. Bruno nem se mexeu do meu lado.
O combinado é que ele cuidaria do café enquanto eu me aprontasse, mas fiquei pronta tão rápido, com protetor solar e tudo, que fiz eu mesma o café para que ele ganhasse mais 10 minutos de sono. O outro combinado é que deixaríamos para tomar café na padaria, já em Santos (SP), mas preferi acordar meia-hora mais cedo e fazer café em casa do que passar uma hora e meia acordada tão cedo, num sábado, sem um gole de café.
De repente, voltei a gostar de café. Não sei se deu pra perceber.
Também não sei como aconteceu, mas em algum momento deste ano a bebida voltou a ter a mesma graça de outrora. Não só voltei a apreciar o gosto, como o café recuperou o caráter sagrado de pausa e indulgência que lhe atribuí durante tantos anos e que desapareceu na pandemia. Voltei a tomar café no fim da tarde e adotei um café de estimação no bairro, onde vou pelo menos uma vez na semana pedir o Coado do Dia.
Quando durmo na casa do meu namorado e preciso acordar muito mais cedo que ele, o que acontece quase sempre, sinto que tenho direito de entrar em um dos três bar & lanches que ficam entre nossos prédios para pedir um café com leite no balcão. Na frente dele faço manha e finjo indignação por me deixar ir embora sem um mísero gole de café, mas a verdade é que gosto desse novo ritual quase tanto quanto gosto de dormir de conchinha no meio da semana. Mas divago.
Eu estava feliz em passar aquele café às 6h05 da manhã porque ainda cultivo um certo encantamento infantil com a ideia de existir no mundo fora dos horários convencionais. Há algo inexplicavelmente mágico em testemunhar o mundo enquanto ele desperta, como se eu fosse uma intrusa em um cenário ainda não completamente revelado, um fascínio besta que é também o que me faz gostar tanto de visitar postos Graal de madrugada e da própria ideia de tomar um café, independentemente do horário. Como era sábado, ainda era cedo o suficiente para que houvesse silêncio na rua.
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Hora nenhuma é tão bonita e tão fresca quanto uma cidade antes das sete da manhã. É por isso que faço questão de enviar esses textos logo cedo, mesmo que isso signifique que provavelmente ficarei até tarde trabalhando nele, na noite anterior.
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Era 7h10 quando subimos o elevador do prédio dos nossos amigos. Já no hall era possível sentir cheiro de comida no fogo, comida de mãe, e ouvir um samba de roda muito alto e animado para o horário, o que me causou uma espécie de dissonância cognitiva momentânea. A verdade é que na vida de um casal com bebê pequeno o dia já estava rendendo há muito às 7h da manhã, com várias sacolas espalhadas pela sala com os preparativos para a viagem, marmitas de neném ficando prontas na cozinha, e podia-se ouvir ao fundo um choro fraquinho de Sua Majestade, o Bebê, que se recuperava de uma virose e estava recebendo sua primeira lavagem nasal do dia quando chegamos.
Bina nos ofereceu um café e contou que havia decidido ouvir todos os discos de sua coleção que começavam com a letra C, por isso ouvíamos Leci Brandão naquele momento, algo que vocês também achariam engraçado se conhecessem o Bina.
Chegamos em Santos (SP) por volta das 9h e a primeira parada foi a Universo Panificadora (“Sabor e tradição desde 1966”), escolhida meio ao acaso na urgência de tirar logo o Bebê do carro. Parecia pouco promissora quando vista de fora, e de dentro também, mas, quando vencemos o amontoado de pessoas que se acotovelavam para comprar pão, chegamos em um clássico balcão de padaria em formato de U onde foi possível ver que ali seríamos felizes.
O terceiro café do dia foi um coado duplo (que no cardápio estava descrito apenas como “café puro”, coisa linda) servido em uma pesada xícara branca de cerâmica e acompanhado de um pão-na-chapa-com-requeijão-na-entrada que chegou tão quente que até queimou meu céu da boca (elogio). Bruno comeu uma coxinha e Mafê, o Bebê, fez festa com pedaços de melancia em seu cadeirão portátil.
De lá fomos andando até a praia, um momento importante para a prática quase zen que consiste em se render ao calor e à umidade. Porque existe um choque de calor e umidade quando você se aproxima da praia e nem sempre ele é bom logo de cara. Uma das minhas resoluções para 2024 era a de ser melhor nesse negócio de me render ao calor, porque, pelo visto, é isso que nos resta. Embora seja necessário falarmos sobre a crise climática sempre que possível, acredito que também é importante encontrar estratégias para coexistirmos sem tanto sofrimento.
Descer pra praia ajuda. Se permitir chegar com calma na praia, respirar fundo quando bate aquele pensamento de “meu deus o que eu vim fazer aqui” ao primeiro contato com o vapor acumulado embaixo do guarda-sol, com a gota de suor que desce solitária pelas pernas antes que o protetor tenha tempo de secar — também.
Reunir coragem para deixar a onda se desenrolar por cima do seu corpo, mesmo com a água absurdamente gelada, resolve quase tudo. O ápice da redenção.
Gosto da praia porque é um dos poucos lugares que ainda permitem que a gente simplesmente exista, sem que ninguém te ache estranho por isso. E eu gosto muito de poder simplesmente existir, num estado de contemplação — ou dissociação — satisfeita. É quase como fumar um cigarro. Ao menos é o que eu, que nunca fumei um cigarro, imagino que seja a licença da realidade que os cigarros oferecem em prol da dissociação. As ondas do mar estão sempre indo e vindo e isso é novidade e movimento o suficiente.
Dentro da minha bolsa estava um exemplar de Linha M, da Patti Smith, que eu nem acredito que demorei todo esse tempo para ler. Rainha absoluta da contemplação — ou dissociação — satisfeita, Patti Smith escreve, como ela mesma define, um livro sobre o nada que mistura relatos de sonhos, de viagens, visitas aos seus cafés de estimação, histórias de objetos perdidos, quartos de hotel, séries policiais, lembranças de amores, amigos e ídolos mortos.
Disse para o
, que foi quem me emprestou o livro, que Linha M estava validando perigosamente meu impulso já bem forte de trocar qualquer programa turístico pela chance de andar a esmo pelos lugares, parando apenas para cafés, aperitivos e sorvetinhos que aparecem pelo caminho — para o desespero dele, que é o tipo de turista inquieto que quer ver tudo, fazer tudo. Ele retrucou que a Patti Smith já é velha e passou os últimos 40 anos viajando pelo mundo, tudo bem se ela quiser ir até o Japão só para visitar túmulos e pedir serviço de quarto.Eu (ainda) não sou a Patti Smith, foi isso que ele quis dizer, mas quando estivemos em Santos (SP) em março desse ano não visitamos nenhum ponto turístico além da pista de skate do Chorão, tudo em nome da contemplação satisfeita do mar e de muitas caipirinhas. Dessa vez não foi diferente, ainda que a praia tenha me parecido bem menos bonita graças às chuvas recentes. O mar estava cheio de lixo, também por conta das chuvas, e quando vimos um peixe morto, grande até, boiando quase na beirada — do qual nos afastamos em silêncio, como se tivéssemos entrado sem querer no quarto de um estranho — quis ter meu celular comigo para tirar uma foto e enviar para a Patti Smith. Ela poderia escrever um livro inteiro sobre ele.
Bruno me prometeu que da próxima vez nós iríamos ao cemitério.
Estar com um bebê na praia dificulta um pouco a contemplação — ou dissociação —, é verdade, mas fiquei feliz em poder ser útil em missões como impedir o Bebê de comer areia (taxa de sucesso de aproximadamente 25%), lavar seus brinquedos com água mineral de tempos em tempos, e enfiar uma fralda impermeável em suas perninhas agitadas a fim de que ela aproveitasse a piscina improvisada que seus pais fizeram a partir de um buraco na areia e um tapete impermeável.
Era a segunda vez de Mafê na praia, “mas a primeira agora que ela é móvel e mais responsiva”, coisa que só uma mãe engenheira poderia dizer. Ela me disse também que era estranho estar levando a filha na praia pela segunda vez quando outras crianças da sua família demoraram muitos anos para ver o mar, um incômodo com o qual me identifiquei de forma visceral. Eu venho do cerrado, de uma cidade que fica a pelo menos 8 horas de distância de qualquer litoral, e às vezes me parece meio indecoroso poder simplesmente decidir fazer um bate e volta na praia, como se fosse tão simples. Como de repente se tornou simples.
Às vezes parece que eu me divirto demais e que existe algo de errado nisso.
Em meio a toda nossa culpa burguesa e cristã, Mafê dormia tranquila. Ela não vai se lembrar de nada daquilo — da boca cheia de areia, dos seus pais escolhendo a cor do seu primeiro baldinho de praia, da tia, eu, que a cada 30 segundos interrompia seu estado dissociativo para ter certeza de que ela estava protegida do sol — mas talvez eu me lembre por ela.
Tão estranho quanto poder simplesmente decidir ir à praia era a ideia de termos um bebê conosco. Quem autorizou isso? “As avós vão ficar malucas quando virem as fotos, ela teve febre essa semana”, disse a Helô, segundos depois de executar à perfeição uma troca de fralda com o neném apoiado nas pernas, como se olhasse a si mesma com distanciamento ao mesmo tempo que se mostrava perfeitamente integrada ao seu novo papel de mãe.
A coisa mais bonita que aconteceu esse ano foi ver meus amigos se tornarem pais através de Mafê, Alice e Clara, filhas dos melhores amigos do meu namorado e de duas das minhas melhores amigas. Não sei quem autorizou isso, mas que bom que aconteceu. Eu passei os últimos anos pensando tanto sobre morte que fui pega de surpresa pela vida acontecendo e se expandindo de forma radical ao meu redor. É preciso aprender a se render a isso também.
*
Decidimos ir embora quando o vento começou a dar indícios de que choveria em breve. No carro, fui saindo daquele meu estado zen que aceita de bom grado o contato direto com os elementos, aos poucos me dando conta da minha situação deplorável naquele momento: areia dentro dos sapatos, pele grudando por conta da maresia, minha camisa completamente molhada e agora gelada devido ao ar condicionado do carro. Peguei no sono mesmo assim, sem me dar conta, e quando acordei já estávamos na garagem.
Por alguns segundos parecia que eu tinha 3 anos de novo e alguém me levaria até em casa no colo, como meus pais fizeram tantas e tantas vezes. Não quis tomar banho na casa alheia, mas coloquei uma roupa limpa e seca, passei hidratante no rosto, óleo nos cabelos, e voltei para a sala, onde começava um jogo de futebol.
Um café cairia bem naquele momento, pena que só tinha cerveja.
Mais uma noite agitada. Levantei de madrugada e fiquei trabalhando, meus olhos ardendo de tanto decifrar garatujas em envelopes, folhas de guarda de livros e guardanapos manchados, depois passei tudo para o computador fora de ordem, tentando encontrar o sentido de uma narrativa subjetiva com uma linha do tempo assimétrica. Larguei tudo em cima da cama e fui ao Caffè Dante. Deixei meu café esfriar enquanto pensava em detetives. Um deles pede: diga o que você está vendo. O parceiro deve certamente falar, sem deixar nada de fora. Mas um escritor não tem um parceiro. Ele tem que dar um passo para trás e perguntar a si mesmo: diga o que você está vendo. Mas como está falando consigo mesmo, ele não precisa ser perfeitamente claro, pois alguma coisa dentro dele sabe de todas as partes faltantes — aquilo que é confuso ou apenas parcialmente articulado. Fiquei imaginando se eu seria uma boa detetive. É doloroso dizer, mas acho que não. Não sou do tipo observador. Meus olhos parecem se virar para dentro. Paguei a conta, admirada com o fato dos mesmos murais de Dante e Beatriz revestirem as paredes do café desde a minha primeira vez ali, em 1963. Depois saí e fui fazer compras. Comprei uma nova tradução de A divina comédia e cadarços para as minhas botas. Notei que me sentia otimista.
(pag. 175 do livro Linha M, de Patti Smith, com tradução de Claudio Carina)
Em outras notícias
A música que abre a newsletter é uma das coisas mais bonitas que ouvi recentemente sobre ter filhos. Sempre que ela chega no último verso — “She’s sleeping right there” — eu tenho vontade de chorar.
Tinha passado batido pelo Multitudes, disco que a Feist lançou timidamente em 2023, mas graças a esse texto da Lidy decidi dar uma nova chance para ele e valeu muito a pena.
Vi a Patti Smith duas vezes em 2019 e estava em paz com a ideia de perder seu próximo show no Brasil, que acontece em janeiro de 2025. O ano nem acabou e eu já estou endividada com shows que vão acontecer ano que vem, sabe. Mas aí esse Linha M aconteceu na minha vida e agora sinto que preciso vê-la de novo. Que raiva!!! Marcas, estou disponível para ganhar convites para o show.
Minha amiga
me recomendou a leitura de Linha M depois que publiquei aquele texto sobre objetos perdidos. Eu costumo levar décadas para seguir indicações de livros, mas essa leitura era realmente o que eu precisava agora. Nunca respondi a mensagem da Tary, então fica essa menção honrosa aqui para compensar pela minha indelicadeza.Está em Santos (SP) a maior necrópole vertical do mundo, com reconhecimento pelo Guinnes Book e tudo. Vocês tem noção disso? Em março ficamos hospedados em uma região em que era possível avistá-lo da janela, uma das coisas mais feias do mundo vistas de longe, um prédio de 14 andares com capacidade para mais de 14 mil túmulos erguido em meio à Mata Atlântica. É revoltante pensar que estive na cidade duas vezes esse ano e não conheci esse lugar, mas da próxima ele não escapa.
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui.
Esse texto nasceu sem querer, a partir de um exercício proposto no livro Escrever sem medo, da Jana Viscardi. A ideia era emular o estilo de algum autor, autora ou autore que gostamos e descrever algum objeto ou ação sob essa influência.
Disse que o texto nasceu sem querer porque foi só depois que comecei a escrever sobre essa viagem, ainda no meu diário, que me dei conta de que estava mais ou menos copiando a escrita da Patti Smith. Me lembrei do exercício (que eu tinha decidido ignorar) e achei que seria interessante me render a esse impulso e observar meu dia a partir do olhar e do estilo dela de maneira intencional. Foi uma experiência divertida para mim, espero que para você também.
De toda forma, leia o livro, se não tiver feito isso ainda.
E não se esqueça: don’t be a stranger!
Com carinho,
Anna Vitória
muito bom ler minha newsletter favorita num dia bom de contemplação e cafécinho. obrigada, anna!
Foi uma experiência divertida para mim também <3