para ler ouvindo mariah carey - emotions
Já faz alguns meses desde a sexta-feira que usei meu horário de almoço para ir a um lojão de beleza do bairro com dois objetivos: comprar uma sombra branca e um batom marrom. Os dois itens seriam essenciais para o meu programa daquela noite, que era o show da Mariah Carey. Porque se eu ia num show da Mariah Carey, é claro que iria fazê-lo vestida a caráter.
Então, mais tarde, lá estava eu com minha sombra branca, meu batom marrom, meus dois coquinhos na cabeça e o sonho de ter meus tímpanos perfurados pelo registro de apito afiadíssimo de nossa diva Mimi. Peguei um ônibus na frente de casa que me levou até o estádio, encarei alguns minutos de fila para entrar, outros tantos para conseguir comprar uma ficha, até que finalmente consegui pegar uma cerveja e pude me dirigir até a pista. Ainda faltava mais de uma hora para o show começar, o que me deu um bocado de tempo para fazer algo que gosto bastante, que é observar as pessoas ao redor.
Como alguém que vai muito a shows, tenho uma certa facilidade para identificar quem não é do meio, ou seja, pessoas que não estão acostumadas a frequentar shows. O show da Mariah Carey estava cheio delas e minhas preferidas eram as mulheres com mais de 40/50 anos que estavam lá com as amigas, claramente vivendo uma aventura. Posso estar estereotipando, claro, mas para mim esse é um perfil facilmente identificável, até porque tenho um exemplar em casa. Basta lembrar de quando minha mãe e suas amigas decidiram ir juntas em um show da Alcione.
Elas tem o olhar ora perdido, ora deslumbrado, de quem tenta absorver ao máximo o que está acontecendo, provavelmente impressionadas com a escala exagerada que as coisas ganham dentro de um estádio de futebol. Elas estão sempre ou muito arrumadas — uma coisa meio look de balada, meio Fátima Bernardes no Rock in Rio — ou então vestidas para um dia de excursão da escola, com jeans, tênis e rabo de cavalo. De novo, é muito fácil perceber a diferença entre quem costuma usar jeans, tênis e rabo de cavalo no cotidiano e quem faz isso em nome de uma Ocasião Especial. Você olha e simplesmente Sabe.
Na maior parte das vezes elas tomam vinho ou carregam apenas uma garrafa de água. Elas provavelmente vão sair dali dizendo que precisam fazer aquilo mais vezes e eu tenho um carinho imenso por elas, mesmo que a maioria não faça ideia de como comprar uma ficha no caixa.
Lembrei das mulheres no show da Mariah Carey por conta da discussão recente sobre mulheres e seus hobbies — ou a falta deles. O tema virou pauta dessa vez por conta de um corte viralizado da Ana Paula Padrão: em entrevista ao PodDelas, ela diz que mulheres não têm hobbies porque mulheres não têm tempo para ter hobbies e nem sequer fomos ensinadas a procurar a felicidade por conta própria.
A reação dos internautas, como sempre, foi bem razoável e dentro do tom, com muitas mulheres se manifestando para dizer que, ao contrário de certas fracassadas, elas são, sim, cheias de hobbies, que elas não são como as outras, e que aquela conversa não tinha cabimento algum, pelo amor de deus, com quem vocês estão andando???
Por um lado, acho importante que mulheres falem — inclusive com uma certa altivez — sobre o que fazem no próprio tempo livre, reivindicando esse espaço como legítimo para nós também, sem pedir desculpas ou com licença. Mas, por outro, a disputa narrativa que se estabeleceu sobre o tema, ao menos nas vizinhanças virtuais que frequento, acabou deixando de fora a parte mais relevante da fala da Ana Paula Padrão, quando ela aponta para as questões estruturais — ligadas à socialização feminina e ao trabalho de cuidado — que nos afasta dos hobbies.
É sobre isso que gostaria de falar hoje.
“Porque mulher não tem tempo para ter hobby”
Ano passado, a Anne Helen Petersen dedicou uma edição da sua newsletter à diferença abismal que existe entre a qualidade do lazer desfrutada por homens e mulheres. Essa qualidade é medida, sobretudo, pelo tempo que cada um pode dedicar às suas coisinhas, como escreve a
.Para ilustrar a discrepância, ela usa a cultura do golfe entre os abastados estadunidenses: uma atividade que é predominantemente masculina primeiro porque há uns anos as mulheres sequer podiam entrar nos country clubs onde as partidas aconteciam; tirando esse detalhe, existe o fato do golfe ser um esporte leeento, que demanda muito tempo livre fora de casa. Quantas mulheres podem se dar esse tipo de luxo?
Nunca esqueci esse texto.
Em seguida, ela elenca alguns hobbies tipicamente masculinos (golfe, caça, pesca, acompanhar esportes [na televisão e ao vivo], ciclismo, marcenaria, automobilismo) e depois femininos (jardinagem, confeitaria, decoração, organização, leitura, bordado, tricô, crochet e afins). Segundo Anne Helen Petersen, o que os diferencia basicamente é o espaço em que acontecem: com excessão de acompanhar esportes na televisão, os hobbies masculinos acontecem fora de casa, enquanto os femininos acontecem dentro de casa — e isso, claro, não é uma coincidência.
Observo também que as atividades masculinas tomam espaço, enquanto as femininas são mais discretas, compactas. Nem preciso dizer que não existe nada de errado ou inferior em hobbies “de mulher”. O que eu estou apontando aqui é que essa generificação existe por um motivo.
Vários [hobbies femininos] contribuem ou fazem intersecção com outras atividades domésticas. Eles podem ser facilmente interrompidos e são adaptáveis a um tipo de envolvimento “episódico” (como uma novela — que você pode largar e depois retomar; pode até demorar um pouco para que você se situe novamente, mas não é grave). Crucialmente, são atividades que podem ser conciliadas com outras — seja cuidar de uma criança, estar disponível para tirar as batatas do forno, dar uma pausa para colocar roupas na máquina de lavar. Elas se misturam ao ritmo da vida doméstica.
Who Gets “Quality” Leisure? (Anne Helen Petersen, 2023, tradução nossa)
Quando li esse texto pela primeira vez, lembrei na hora da pesca, uma atividade bem popular onde eu cresci, no interior de Minas Gerais. Se usar o golfe como exemplo deixa a análise enviesada por ser um esporte de rico por definição, com uma série de barreiras de entrada, eu, como alguém que nasceu e cresceu no Triângulo Mineiro, posso atestar que pelo menos ali no nariz do estado a pesca transcende as divisões de classe.
É algo tão arraigado ao ethos local que existe até uma música de Bruno & Marrone dedicada a essa prática ancestral.
Trívia: O cantor Bruno de Bruno & Marrone mora em Uberlândia (MG), cidade onde nasci e cresci, e o cantor Leonardo, que faz participação especial nesse show, foi denunciado por manter trabalhadores em condições análogas à escravidão.
Passei a vida ouvindo de tios, primos e pais de amigos que sei lá que dia eles iam pescar, o que era considerado por todos uma coisa muito normal. Para fins retóricos vamos assumir que “ir pescar” não significa nada além de literalmente ir pescar, no sentido mais puro e simples da locução verbal, contrariando a premissa da canção “Que Pescar Que Nada”, de Bruno & Marrone. Nesse sentido, “ir pescar” é um compromisso que implica em pelo menos um fim de semana longe de casa, num ritual que se repete algumas vezes por ano.
Tirando a parte da pesca em si — que eu, enquanto militante da causa animal, pessoalmente, sou contra — não haveria problema nenhum com um bando de homem indo pescar não fosse pelo fato de que não existe — ou, pelo menos, eu não consigo pensar — em um equivalente feminino para esse tipo de hobby. Ou seja, algo que demande tempo fora de casa, algum dinheiro, que seja realizado com uma certa frequência, e que seja visto como tipicamente feminino.
Ouso dizer que a existência de um é o que sustenta a inexistência de outro.
(Poderia citar academia e atividades físicas de modo geral, mas o fato de serem práticas tão profundamente conectadas com o ideal de otimização constante que rege nossos tempos me faz pensar que a aceitação que existe disso hoje em dia, com todo o investimento de tempo, dinheiro e energia que eles demandam, tem mais a ver com esse fenômeno — e com a ideia de produtividade — do que com a liberdade das mulheres de fazerem algo apenas pelo próprio prazer.)
Quando as mulheres são incluídas nessas viagens de pesca, provavelmente vai caber a elas cozinhar e cuidar de toda a logística do evento, principalmente se temos crianças na equação. Mesmo quando existe dinheiro para que esse tipo de responsabilidade seja terceirizada (para outras mulheres, claro), as mulheres estão lá como acompanhantes, meros acessórios. Elas até podem tirar algum prazer genuíno desse tipo de evento, mas ainda assim não é um movimento que acontece a partir de uma demanda de lazer que parte delas.
Uma situação inversa, em que uma família se desloca em nome do hobby de uma mulher, e que isso aconteça de forma tão corriqueira como lá em Uberlândia (MG) e arredores eu vejo acontecer com a pescaria, para mim é inimaginável.
Se existir, por favor, me contem. Talvez minha mãe se interesse.
*
Voltemos ao show da Mariah Carey. Como disse no início, eu frequento muitos shows, pode-se dizer que música ao vivo, ou até música no geral, é um hobby que tenho. Naturalmente, tenho um namorado que gosta muito de shows, assim como vários amigos e amigas, mas não é raro acontecer de eu sair de casa pra ver um show sozinha, por uma série de motivos. E por outra série de motivos, isso não parece natural para muitas pessoas.
Aqui não vou entrar na discussão fazer coisas sozinha, que é todo um outro tema, e focar na parte do hobby, embora as coisas estejam conectadas. Meus pais, que considero pessoas moderadamente progressistas, viram nessa coisa de eu sair de casa sozinha para ver um show da Mariah Carey uma espécie de aventura. Porque a Mariah Carey é um certo ponto fora da curva entre minhas referências musicais, ok, mas também porque eu, sozinha, peguei um ônibus até o estádio, comprei uma cerveja, fiquei sentada no chão esperando o show começar, tomei chuva, cantei, dei risada, e depois saí de lá, peguei outro ônibus até o metrô e andei sozinha até em casa.
Eu queria muito que tudo isso só significasse que eu tinha tempo, dinheiro e que sou fã da Mariah Carey, mas como eu sou uma mulher, isso é visto como aventura. Porque eu sou mulher e estava fora de casa gastando tempo e dinheiro comigo mesma, o que ainda é raro de se ver. Na minha vida, felizmente, é algo que acontece bastante, mas fico pensando se seria assim se eu não morasse sozinha no centro de uma grande metrópole, se eu tivesse filhos, se mais alguém dependesse do meu tempo e do meu dinheiro além de mim.
Existe um óbvio recorte de classe nesses exemplos, claro, mas também cresci vendo homens com menos dinheiro e até menos tempo disponível indo pescar rotineiramente.
O que me lembra de um outro texto que nunca esqueci, um que a
escreve: existe um lugar em que você só chega quando é libertado de parte da sua vida. Da forma como o mundo existe hoje, ao menos para a maioria das pessoas, as mulheres só podem ter hobbies “de homem”, ou melhor, só podem ter hobbies como um homem, quando são libertadas de parte das suas vidas e/ou quando podem se desviar da rota que o patriarcado desenha para as nossas vidas.“Nós não fomos criadas para isso”
Como contei no tópico acima, fui criada por pais que considero moderadamente progressistas. Nem sei se era a intenção deles, mas o fato de hoje eu ser uma mulher que é cheia das próprias coisinhas veio de uma criação que encorajava ou pelo menos me levava a esse caminho. Foi isso, inclusive, que me fez querer mais da vida, que me trouxe para São Paulo (SP) e para minha vida de shows e aventuras, para a certeza que eu sempre tive de que queria morar sozinha, mesmo sabendo que seria infinitamente mais prático simplesmente morar com meu namorado quando chegasse em São Paulo (SP), que era o que quase toda a minha família esperava que eu fizesse.
Eu sou uma mulher heterossexual cisgênero que namora um homem heterossexual cisgênero numa relação monogâmica em que ambos somos independentes financeiramente. O que me afasta da norma, e olhe lá, é que tenho 30 anos, não sou casada e não tenho filhos. Estou plenamente ciente de que vivo a vida no modo easy e ainda assim isso chama atenção e causa incômodo e estranhamento em pessoas ao meu redor, o que é insano mas também importante para que eu não esqueça que certas coisas não são tão triviais quanto parecem e deveriam ser.
Como passei muitos anos solteira, tive a chance de estabelecer uma vida muito minha e sabia que só entraria num relacionamento que não me levasse a abrir mão dessa vida, mas que viesse para expandi-la. Eu passei 27 anos sendo uma pessoa com amigos, interesses e uma série de coisinhas, e eu não queria deixar nada disso de lado por agora ter também um namorado. Por ter passado muito tempo solteira, também consegui enxergar com muita clareza como o patriarcado trabalha de formas sofisticadas para sufocar essa individualidade a partir do momento que você entra num relacionamento, como se tudo te empurrasse a fazer daquele arranjo o centro da sua vida.
Tudo que não contribui para ele de repente encontra muito mais resistência e fricção para acontecer. Sustentar esses limites e esse desejo por liberdade nem sempre é uma questão de escolha.
Em alguma medida, ter hobbies como um homem significa isso também. Não à toa, muita gente repetiu a mesma frase da Valeska Zanello nesse burburinho recente dos hobbies: os homens aprendem a amar várias coisas, as mulheres aprendem a amar os homens.
*
Em 2023, fui para o Rio de Janeiro (RJ) com várias amigas para ver o show da Taylor Swift, uma viagem inteiramente dedicada a ser insuportavelmente garota. Nós fizemos um milhão de pulseiras, trançamos os cabelos umas das outras, vestimos camisetas iguais com nossos shorts de paetê combinando e cantamos no metrô de batom vermelho. Passei quatro dias me alimentando exclusivamente de pizza, batata Pringles e balas Fini. Foi um surto, um surto que aconteceu no Rio de Janeiro (RJ) e que se repetiu em diversas capitais do mundo, talvez o maior surto coletivo motivado por algo tão profundamente feminino na história, com toda a complexidade que existe nessa ideia.
Existe um monte de problemas com a Eras Tour e com a Taylor Swift, assim como existem problemas com o show business e bi/milionários no geral, mas é inegável que as pessoas estão muito mais propensas a se indignarem com os podres e excessos da Eras Tour porque se tratava de um ESTARDALHAÇO, assim em caixa alta, provocado por mulheres; porque a Taylor Swift é, em essência, um hobby feminino.
Coisas parecidas acontecem toda semana no futebol, e com isso eu não quero dizer que são coisas razoáveis, mas elas não causam a mesma revolta, comoção, ódio e indignação que esses shows causaram.
Minha amiga Analu, que foi comigo em um dos shows, estava grávida de três meses na época. Não se tratava de uma gravidez de risco, ela não tinha complicações e estava lá com o aval de sua médica, mas as pessoas tiveram muitas questões com o fato de uma mulher grávida estar num show, e num show da Taylor Swift, dentre todos eles. Esse estranhamento vem muito do fato da gravidez ser uma condição hipermedicalizada, quase patologizada, mas também da realidade em que gestantes e mães são extremamente desumanizadas. Isso faz com que seja mesmo muito estranho ver uma mulher grávida dedicando seu tempo, seu dinheiro e suas cordas vocais a algo tão profundamente seu como é a Taylor Swift para tanta gente.
Se você apertar um pouquinho, pode ter certeza que alguém deixaria escapar que não deveria existir mais espaço pra nutrir esse tipo de interesse agora que ela é mãe. Tudo bem fazer isso quando se é adolescente, tudo bem fazer isso quando se é solteira, mas depois de uma certa idade e dentro de uma configuração de vida considerada normal e correta, não deveria existir espaço para cultivar hobbies assim. De forma mais ou menos parecida, muitas pessoas me perguntaram por que meu namorado não tinha ido comigo para o Rio de Janeiro (RJ), assumindo que existia algo de errado ou anormal nessa decisão.
Esse tipo de pergunta inconveniente faz parte das pequenas coisas que nos informam que viver no mundo dessa forma não é coisa de mulher, mas agora vou pesar o clima pra dizer que existem também as grandes coisas, sendo a violência a principal delas. O que aprendi em quase 10 anos estudando violência de gênero é que se trata de uma prática infringida para nos colocar no lugar. Parece algo dramático de se dizer, mas é um aspecto que informa de maneira extremamente material onde as mulheres podem ou não estar quando querem cultivar seus hobbies. Henrietta Moore, uma autora que usei bastante no meu mestrado, escreve: a inabilidade demanter uma fantasia de poder leva a uma crise na fantasia de identidade e a violência é o meio de resolvê-la”.
Eu fui no show da Mariah Carey sozinha e de transporte público, mas fui assediada duas vezes no ponto de ônibus porque estava com uma blusa justa e da cor da pele. Então eu coloquei um casaco, mesmo sem estar com frio. Na volta, fui até o metrô mesmo sabendo que estaria lotado, mesmo havendo uma linha de ônibus que me deixaria na porta de casa, mas já era 11 da noite e eu não queria ficar sozinha no ponto de ônibus. São Paulo (SP) é uma cidade violenta para todos, mas eu tenho esse tipo de receio quando estou com meu namorado, por exemplo, e sei que ele não pensa ou pesa nada disso quando sai para ver um show, tudo porque nossos corpos são vulneráveis de formas diferentes.
Ir para São José dos Campos (SP) ver aquele show da Fresno só foi possível, para mim, porque pude combinar o transporte com uma motorista de aplicativo que acionei previamente. O show aconteceu fora da cidade, num lugar isolado, em uma cidade onde eu não conhecia ninguém. O que me deu confiança para estar lá era saber exatamente como eu iria embora e a certeza de que não ficaria a mercê de um desconhecido e dos caprichos de um aplicativo num lugar tão remoto — uma preocupação que meu namorado não teria. Ano passado nós viramos a noite em uma cidade minúscula, próxima de Buenos Aires (AR), porque o festival que fomos acabava tarde, quando já não havia mais ônibus circulando. Passamos a noite perambulando pelas ruas e ouvindo cumbia numa praça, o que realmente foi uma aventura, mas depois eu só conseguia pensar que não teria vivido nada disso se não tivesse um homem lá para me acompanhar.
Não tenho dúvidas de que nesses mesmos shows havia mulheres que toparam o risco de estar lá sem toda essa cautela, e eu as celebro, mas isso não quer dizer que o risco não exista e que ele não é pior para nós. Isso não quer dizer que provavelmente outras mulheres deixaram de sair de casa por causa dele.
Por falar em exceções, é claro que existem exceções para todos os casos que estou falando aqui: mulheres que jogam golfe, que pescam, que veem muito mais shows que eu, que pintam e bordam, com ou sem filhos. Que bom que elas existem, que bom que a gente resiste, mas isso não muda o fato de que a qualidade do nosso lazer, de modo geral, é impactada pelo fato de sermos mulheres. Que o mundo é feito pra que a gente não tenha tempo para eles, que não tenha meios para desfrutá-los e que não consiga enxergar como legítima a possibilidade de nutrir algo que é só nosso, só pela graça.
Buscando a felicidade por conta própria
Eu amo São Paulo (SP) por uma série de motivos e um deles é porque aqui foi a primeira cidade em que eu vi mulheres de diferentes idades existindo no mundo de formas que eu não via na cidade onde nasci e cresci. E com isso quero dizer: em mesas de bar com outras mulheres num contexto que não parecesse extraordinário (como um aniversário ou algo assim), em mesas de bar sozinhas, em museus, cinemas, shows e afins.
Mulheres jovens sim, muitas, mas também mulheres com mais de 40, 50 e 60 anos, do tipo que no interior ainda é raro ver sem que elas estejam acompanhadas de um homem, de filhos, ou em ocasiões que nota-se de cara que são especiais, nada corriqueiras. Mulheres fazendo suas coisas e vivendo suas vidas, em resumo, que me ajudam a construir um imaginário de possibilidades muito importante.
É claro que muitas mulheres desafiaram o status quo antes da minha geração, mas tenho pra mim que é entre os millennials que isso se tornou uma possibilidade de uma forma um tanto mais abrangente e menos radical do que a geração da minha mãe, por exemplo. Isso significa que ainda temos poucas referências de como é essa vida, da mesma forma que a geração da minha mãe — que hoje é uma mulher que mora sozinha e que não tem ninguém que dependa do tempo e do dinheiro dela — também tem poucas referências do que é chegar aos 50 ou 60 num contexto em que a expectativa de vida é muito maior, em que ela tem saúde, tempo e precisa entender o que quer fazer com essa tal liberdade.
Eu acho que é sobre isso que a Ana Paula Padrão — que tem quase 60 anos, não tem filhos e é muito ativa profissionalmente, o que me faz pensar que ela sabe o que está dizendo, ainda que de um lugar privilegiado — estava falando quando disse todas aquelas coisas sobre hobbies. Eu sou cercada de mulheres cheias de hobbies fascinantes, mas isso não quer dizer que não existam mil e uma contingências para que mais pessoas vivam a vida dessa forma.
O fato dessas contingências existirem também não significa que a gente não possa, ou até mesmo deva, tentar não ceder de vez em quando para ver o que acontece.
No fundo, escrevi tudo isso porque quero que a gente faça isso mais vezes.
Em outras notícias
Eu fiquei obcecada com a ideia de ver um show da Mariah Carey depois desse vídeo aqui. Ela ainda nem tinha anunciado a apresentação em São Paulo (SP) e gosto de pensar fui eu que manifestei esse evento. A música que abre essa newsletter não poderia ser de ninguém além Dela.
Esse é um tema que tenho pensado desde que escrevi minha cronologia dos Looks de Festival e me dei conta do peso da questão de gênero na forma como visto para esse tipo de evento. Caso você tenha perdido, recomendo a leitura (RIP minha newsletter de belezinhas):
Gosto muito de acompanhar a Tamara Klink no Instagram e essa entrevista dela pro Roda Viva abriu várias abas na minha cabeça. Ela foi a primeira mulher a invernar no Ártico completamente sozinha. Gosto especialmente de quando perguntam pra ela sobre tudo que envolve estar longe da sociedade e dá pra ver que o que ela queria dizer é que estar longe nunca foi problema, e sim solução. No perfil da firma, comentei sobre o que ela disse da experiência de menstruar em alto mar.
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui.
Se você está trabalhando nesse 23 de dezembro, espero que essa edição tenha ajudado a fazer o tempo passar mais rápido. Se o seu recesso de fim de ano já começou, obrigada por dedicar seus neurônios finais para essa leitura.
Não se enganem: eu ainda estou a procura de um hobby que não envolva consumo passivo de mídia, esforço intelectual clássico e grande investimento financeiro. Dá pra falar sobre como a precarização da nossa vida de modo geral torna essa tarefa difícil, mas aí já seria outro texto. Se você encontrou seu Santo Graal, por favor, me conte!!!
Boas festas e até a próxima edição. Don’t be a stranger!
Com carinho,
Anna Vitória
Estou fervorosamente em busca do meu santo graal, era um dos meus objetivos para 2024, falhei. Espero muito encontrar em 2025. De preferência fora de casa, que me tome bastante tempo, um tempo que eu não precise interromper pra levar criança no banheiro, ou pensar no que vai ser feito para janta, um tempo que não me perguntem onde está a criança, com quem ela ficou, onde está o pai. De repente eu entro para o mundinho shows, mas não sei se me encaixo, com certeza eu seria do grupo das calças jeans e rabo de cavalo com uma garrafinha na mão, olhando tudo ao redor, sem a menor ideia de como comprar um ficha (ou o que diabos É uma ficha). Ai não sei. Sei que eu preciso de um hobby!! Um dos meus objetivos para o ano novo é testar vários, até achar um que eu pense assim: ufa, achei!
1 eu fui convencida a ler o texto apenas pelas imagens de sopranos
2 esse final de semana eu vi os episódios já lançados de cem anos de solidão e uma coisa que eu pude VER na série é o espaço dos homens Buendía para fazer suas coisinhas enquanto as mulheres ficam na sala, cozinha e quarto.
3 li isso durante o horário de almoço deste dia sem recesso. OBRIGADA