Uma manhã (bêbada) no museu
Sobre a vez em que coloquei a mão num quadro e sobrevivi pra contar a história. Tapas gratuitas em Madrid. O museu mais legal de todos e outras opiniões sobre história da arte.
para ler ouvindo rosalía - delirio de grandeza
- Quem é esse mesmo? - eu questionei, dedo indicador em riste, apontando para a obra de arte diante de mim. Estávamos no museu Reina Sofía, em Madrid.
- Acho que é o García Lorca.
- Não é não, parece um pouco o Stalin jovem, mas também não é ele.
- Baby.
- Nossa, tá na ponta da língua, mas não consigo lembrar…
- Baby.
- Pera, eu vou lembrar. Não é possível que é o Stal-
- BAYB.
Nessa hora, Bruno segurou meu braço e puxou ele pra baixo. Eu tinha encostado o dedo no quadro sem perceber e estava ali há pelo menos um minuto, dedo no quadro, quadro no dedo. Foram mais ou menos uns cinco segundos de intervalo entre o susto do gesto brusco e o susto de perceber o que eu tinha acabado de fazer.
A fiscal no museu percebeu também e começou a vir na nossa direção.
Mais cedo, nesse mesmo dia, tínhamos feito uma parada en El Jardín de Arzábel, restaurante localizado dentro dos prédios do Reina Sofía. A ideia era almoçar mais tarde no Mercado San Miguel, mas precisávamos dar uma abastecida antes de encarar a outra metade da visita. A parada também serviria como uma espécie de limpador de paladar para o cérebro após vermos “Guernica”. Como disse na introdução desses relatos, às vezes a Europa é simplesmente demais da conta.
El Jardín de Arzábel era certamente um lugar muito mais sofisticado (ou seja, caro) do que tínhamos em mente, mas não é todo dia que você acorda em Madrid e vai ver “Guernica”, bale? Bale. Pedimos um drink - ou melhor, dois: Aviation, feito com licor maraschino e crème de violette, e Porn Star Martini, a perfeita tradução de indulgência na forma de um coquetel com suco de maracujá e vodka sabor baunilha. Esse último ainda é servido com um shot de cava, o prosecco espanhol, apresentado num copo cheio de gelo e uma rama de canela com a ponta queimada, tipo um incenso. Tudo para limpar o paladar e ajudar uma bebida tão doce a descer melhor. Mais extravagante que isso, impossível.
Para acompanhar, patatas bravas e… jujubas.
Na Espanha, existe um costume antigo que é oferecer algum tipo aperitivo (ou tapa) como cortesia para acompanhar uma bebida alcoólica. Há quem diga que os estabelecimentos começaram a fazer isso para diminuir a incidência de brigas nos bares, e existe também a versão que conta que num tempo antigo de vacas magras essa foi uma medida para garantir que as pessoas comeriam alguma coisa, já que na hora de escolher entre usar o pouco dinheiro para comer ou beber, a galera sempre escolhia a bibida.
Pesquisando um pouco, descobri que desvendar os bares que servem boas tapas gratuitas é quase uma gincana para quem visita Madrid, já que a maioria dos lugares se limita a oferecer coisas bem básicas, como amendoins ou azeitonas. Foi o que vimos em quase todos os bares, mas o ápice da chinelagem foi mesmo o El Jardín de Arzábel, o sofisticadíssimo El Jardín de Arzábel com seu pote de jujubas, as jujubas mais azedas do mundo. Acho que não teria me incomodado tanto se nossas patatas não tivessem demorado tanto para chegar, quando os drinks já estavam quase no final.
Bruno Capelas levantou da mesa dizendo que estava vendo o mundo girar. Eu ri da cara dele disse: “que isso, tô ótima”.
E saí dali direto para meter o dedo num quadro.
Foi uma comida de rabo para nunca mais esquecer.
Para ser bem sincera eu não faço ideia do que foi dito porque a fiscal do museu falava muito rápido, mas tenho certeza que foi ruim. E foi em espanhol, o que torna tudo mais dramático. Acho que só quem foi uma criança conhecida por ser boazinha, a pleasure to have in class, é capaz de entender como fiquei mortificada com a situação.
Era como se de repente eu voltasse à infância, naquelas excursões da escola, e ouvisse a professora explicar que não podemos encostar em nada, que museu é para ver e não para tocar. Eu tenho uma série de problemas psicológicos até hoje por ter levado esse tipo de lição a sério demais, então você imagina minha frustração por ter me comportado mal quando finalmente tive a oportunidade de fazer algo útil com tantos anos de rigidez e obediência. Levei pra terapia e tudo.
Descobri depois que a obra em questão não passava de um facsímile. Trata-se da reprodução da colagem feita na janela do escritório do vanguardista espanhol Ramón Gómez de la Serna - o ambiente original está em exibição do Centro de Cultura Contemporánea Condeduque de Madrid, na região central da cidade. Uma espécie de gabinete vivo de curiosidades que acompanhou o artista em suas várias casas em Madrid (uma delas, inclusive, ficava na calle Velásquez, na mesma região em que ficamos hospedados) e depois no exílio, em Buenos Aires, onde ele morreu em 1963. O escritório foi enviado para Madrid em diversas caixas, mas as colagens nas paredes ficaram para trás - daí a missão de reproduzi-las. Qualquer erro ou confusão nessa história é culpa do meu espanhol capenga, mas você encontra explicações bem completas e interessantes aqui e aqui.
Como uma pessoa igualmente obcecada por objetos, papeizinhos, velharias e lembranças variadas, confesso que já desenvolvi um carinho retroativo especial por Ramón Gómez de la Serna. Suas paredes e painéis cheios de colagem nada mais são do que um quarto de adolescente incensado pela história e eu sempre vou apoiar esse tipo de energia. Aposto que ele também apoiaria minha ousadia ao encostar na sua janela.
A propósito, a foto era do Kafka.
Bate bola, jogo rápido
por Anna Vitória Rocha e Bruno Capelas
MELHOR MUSEU
AV: Museu do Prado, em Madrid. É o que condensa melhor a dimensão absurda de tudo que temos contato numa viagem dessas, indo desde esculturas de mármore feitas em séculos antes de Cristo até uma cacetada de obras do Goya e uma versão alternativa da Monalisa. Parece algo colonizado e deslumbrado de se dizer, mas gosto de lembrar que nasci em Uberlândia (MG) e até então nunca tinha saído do país. Me deixem. Se pudesse fazer algo diferente, deixaria para visitá-lo depois de conhecer outros museus, porque ele meio que estraga a experiência de qualquer outro lugar, já que nenhum outro vai ser tão completo e tão intenso.
Bruno: Museu do Prado, em Madri. A gente gastou seis horas lá dentro, mas dá pra resumir tudo em duas coisas: Goya e “As Meninas”. Ali também nasceu um personagem importante, Bruninho Capelas Comenta História da Arte, que eu não vejo a hora de retomar.
Na lista que elaboramos para elencar os destaques da viagem, tem a categoria “melhor surpresa”. O Bruno deu uma resposta fofa sobre termos conseguido passar tanto tempo juntos sem brigar e sobre como ele voltou ainda mais apaixonado por mim. Owin. Pensando nessa experiência, 10 meses depois, acho que minha surpresa favorita é ter descoberto, do nada, que namoro um grande entusiasta de história da arte, algo que até então estava completamente escondido na personalidade de Bruno Capelas. Eu aprendi muito e me diverti muito, de um jeito que eu realmente não imaginava que pudesse aprender e me divertir em museus, e olha que eu levo esse negócio tão a sério que quase chorei depois de levar bronca da fiscalização. Owin. Mesmo se você não vê muita graça nesse tipo de rolê, recomendo que fique um pouco bêbado e vá ver obras de arte. Vale a pena.
QUADRO FAVORITO
AV: Como não falar de “Guernica”? Voltei no tempo e me vi na escola, estudando sobre a Guerra Civil espanhola. O professor mostra o quadro, conta a história, diz que ele fica num museu em Madrid, o Reina Sofía, algo que parecia impossivelmente distante. Até que ele estava lá, na minha frente. Acordei dando pulinhos de empolgação naquele dia. Quando a gente chega na ala onde fica o quadro, é como se ele atraísse nosso olhar com uma espécie de força gravitacional absurda e extraordinária. Tudo bem que é uma pintura enorme, difícil mesmo não ver, mas existe algo ali que te chama e hipnotiza, tipo estar diante de um bebê recém-nascido e, no extremo oposto, um corpo defunto num funeral. Não me peçam pra explicar.
Também fiquei muito emocionada vendo a tese de doutorado original do Lacan e a primeira edição de “Peles Negras, Máscaras Brancas”, do Fanon, também no Reina Sofía. Duas coisas que eu não esperava ver e mexeram demais comigo.
Bruno: Aquele que a Anna Vitória pôs o dedo. Brincadeira: “Hotel Room”, do Hopper, no Thyssen Bornemisza (Madri). Pela segunda vez, com nove anos de diferença, ele me fez chorar.
Hello stranger, como vai você?
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Espero que tenha gostado desse formato de texto - eu gostei! Na próxima edição, um especial Trash Advisor com notas sobre restaurantes, bares, hotéis e transportes públicos variados.
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Como estou escrevendo numa manhã de domingo, aproveito para desejar um feliz retorno de Succession para todos que celebram. Succession infelizmente só volta semana que vem, mas quem sou eu para dispensar esse tipo de energia? Façam como o bundão de Shiv Roy: stay beautiful!
Com carinho,
Anna Vitória
eu confesso que ri, mas também senti sua dor ahhahaha. por menos eu já corei: ultrapassei a linha permitida e não sei se foi minha mente ou real, mas vi olhares não mui amigos em mim, sei lá. o retorno pro que era permitido foi quase uma caminhada inversa da humilhação, e era coisa de dois passo (drama). como você disse, só sendo a típica criança boazinha pra pilhar com essas coisas.
Também já ouvi que os espanhóis costumavam colocar uma fatia de presunto ou de queijo para cobrir a bebida e proteger das moscas e, por isso, se chamam "tapas"