para ler ouvindo vanguart - enquanto isso na lanchonete
Hello stranger, como vai você?
Esse é um texto sobre luto. Siga em frente por sua conta em risco.
Não sei bem como dizer isso, mas acho que não gosto mais de café.
Pelo menos não tanto quanto já gostei um dia.
Por muito tempo, gostar de café foi parte da minha personalidade. No meu blog de adolescência, dediquei inúmeras crônicas ao café e sua dimensão afetiva e ritualística. Jamais admitiria isso, mas fechava, sim, com a ideia meio tonta de que gostar de café é uma espécie de distinção sofisticada que confere aos adeptos um certo élan que mistura complexidade de caráter (é uma bebida amarga, no fim das contas) com a simplicidade charmosa dessa-coisa-linda-que-é-o-brasil.
Os contos que eu escrevia na adolescência, historinhas românticas meio copiadas de letras de música, sempre envolviam café de alguma forma. Tinha a história — inspirada na letra de “Enquanto Isso na Lanchonete”, do Vanguart — da mocinha que achou que levaria bolo de um mocinho e tava tão nervosa enquanto esperava por ele que tirou uma garrafinha de vodka da bolsa e misturou (com as mãos trêmulas, de unhas roídas pintadas de preto) a bebida na xícara de café — diga que você é uma pessoa de 15 anos que nunca bebeu na vida sem dizer que você é uma pessoa de 15 anos que nunca bebeu na vida.
Tinha também o meu favorito, que considerava tipo obra-prima, que era a história da mocinha que se apaixona platonicamente por um mocinho (um fotógrafo com certa predileção por gatos de rua) que ela via passar todos os dias da sacada do seu apartamento, do alto do sétimo andar, sem saber que ele também a observava quando ela não estava olhando e, assim como ela, se apaixonara. O fato de ser quase impossível enxergar alguém dessa altura era um mero detalhe (na época, eu era uma moradora do segundo andar), porque o mais importante era ser fiel à referência que me serviu de inspiração, a música “Do Sétimo Andar”, dos Los Hermanos.
Aí um dia descobri que a música na verdade foi inspirada pela história de uma mãe que procurava por seu filho viciado em drogas que foi morar na rua. Tranquilo. Normal.
Meu problema com café começou na pandemia, quando comecei a tratar minha ansiedade, desenvolvi um refluxo e precisei reduzir drasticamente meu consumo da bebida. Até escrevi sobre isso na época, quando passei a romantizar de propósito o hábito de tomar chá com leite de amêndoas para ver se a vida ficava um pouco menos triste. Primeiro tirei o cafezinho da tarde e, aos poucos, fui reduzindo a quantidade de xícaras na parte da manhã. O desconforto intenso daqueles primeiros meses de medicação passou, mas fui achando café um negócio cada vez pior.
Primeiro culpei o refluxo, depois a pandemia e então o governo, o empobrecimento da nossa indústria e o avanço do neoliberalismo que piorou drasticamente a qualidade dos alimentos, tudo isso unindo forças para levar embora o meu cafezinho de todos os dias. Tentei trocar de marca, de método de preparo, e até pensei em comprar uma prensa francesa e virar a pessoa do café arrombado, mas já tenho gosto arrombado pra muita coisa, meu orçamento é limitado e o gosto por chás pegou a última cota disponível. Você já viu o preço do leite de amêndoas no mercado?
Sei apreciar um Bom Café, mas essa é uma apreciação que pra mim já faz parte de outra ordem, uma ordem que até tem o seu lugar, mas não é exatamente a que me faz acordar todo dia de manhã.
O café que meu namorado me oferece sempre que vai até a cozinha encher a própria xícara, o café que tomo com a minha avó no copo americano e aquele café que anos atrás minha amiga Renata achava graça por eu fazer questão de parar a vida para beber todos os dias — nenhum desses cafés é um Bom Café. Não são cafés ruins, veja bem, apenas cafés simples, fáceis, um café bom e só, e isso tem sido cada vez mais difícil de conseguir. Ainda faço café todos os dias, mas já não sei se é por vontade ou hábito afetivo — ou pior, a dificuldade de deixar ir um hábito profundamente afetivo.
Por outro lado, ando cada vez mais apaixonada pelo outro lado da moeda: o café ruim. O café ruim é aquele café que você toma em coffee breaks de congresso e eventos de trabalho, o café da sala de espera do médico, a cortesia na saída do self-service, o glorioso café da copa da firma, aquele café que já vem adoçado e fica armazenado numa garrafa térmica de 2,5 litros por cerca de oito a dez horas e você não consegue deixar de tomar todos os dias. “Oooo cafezinho ruim”, alguém diz entre os dentes, você escuta e solta uma risada cúmplice e de repente tem uma nova amizade no trabalho.
O café ruim é a opção mais barata do cardápio de um bar & lanches, dos postos de beira de estrada e também das cantinas da universidade em que você fez graduação. O café ruim é o grande equalizador da humanidade.
Há pouco mais de um mês precisei comprar uma passagem área de emergência de Buenos Aires (AR) para Uberlândia (MG) porque meu avô estava morrendo e ninguém sabia o que ia acontecer. Eu estava trabalhando de um café na Villa Crespo quando recebi a notícia e levantei da mesa sem pensar muito, deixando para trás um amontoado de pesos argentinos e um bule ainda quente com leite de amêndoas que eu havia pedido para tomar junto com meu English Breakfast. Mais tarde, ainda naquele dia, vomitei todo o chá que tentei tomar antes de dormir e não consegui comer mais nada até mais ou menos às 17h do dia seguinte, quando já estava no segundo aeroporto da minha longa jornada e decidi tomar um milkshake de morango do McDonalds. O fatídico episódio de Succession1 tinha ido ao ar duas semanas antes.
Foram umas doze horas de viagem ao todo e talvez uma das experiências mais solitárias de toda a minha vida. No terceiro voo, decidi aceitar o café que estavam servindo. Lembrei que em 2018, quando pegava dois voos toda quarta-feira e não fazia a menor ideia do que estava fazendo da minha vida, desenvolvi uma espécie de afeição pelo café ruim servido no avião, que funcionava como uma espécie de âncora naquele período maluco, uma referência de rotina no meu dia a dia fora de ordem de então. Era um café terrivelmente ruim, mas às 5h50 da manhã de uma quarta-feira, com Tranquility Base Hotel And Casino2 tocando nos fones, ele era também a melhor coisa do mundo.
Agora, por conta da pandemia, as companhias aéreas pararam de servir o café filtrado direto da garrafa térmica, que foi substituído por um sachê de café solúvel que você mesmo prepara. Fui cética no começo — costumava traçar a linha do meu limite diante de cafés ruins justamente no café solúvel — mas aos poucos fui tomando gosto por ele também. Naquele voo do Rio de Janeiro para Brasília, enquanto me perguntava se meu avô já tinha morrido e só estavam esperando eu chegar em casa para dar a notícia, aquele Café Solúvel Liofilizado 3 Corações 100% Arábica me salvou um pouco. Cheguei em Brasília e decidi jantar batata frita.
O café ruim é um chamado poderoso do presente, à prova de grandes expectativas e delírios de futuro, o que às vezes traz um alívio muito grande porque tira um pouco do medo também.
O café ruim é tediosamente previsível, igual em todos os lugares, e isso acalma meu coração. Ele é constante na sua mediocridade e por isso cai tão bem em consultórios médicos, funerárias, rodoviárias e aeroportos: ninguém sabe o que vai acontecer amanhã, tudo muda o tempo todo no mundo e nada é garantido — exceto pelo café ruim. A Starbucks sacou isso há décadas e construiu um império, veja bem.
Na mesa do café de uma funerária, quando alguém para do seu lado e pergunta se a bebida já vem adoçada, é como se aquela circunstância terrível deixasse de existir por alguns segundos e a profunda banalidade do momento te lembrasse que, de alguma forma, a vida dá seu jeito de continuar. Não há nada de romântico nesse seguir dos dias, assim como não há nada de glamoroso em um café ruim, mas o amanhã parece um pouco menos terrível do que olhar o abismo de frente e sentir que ele vai te engolir inteira.
Isso me lembra de algo que uma monitora de um acampamento de férias que frequentei costumava dizer quando alguém estava com medo da tirolesa, da escalada, do “ciclismo radical”: se cair, do chão você não passa. Ooo cafezinho ruim.
Sentada do lado da minha tia diante do caixão do meu avô, em determinado momento senti ela se aproximar e cochichar no meu ouvido: queria que uma nave espacial aparecesse para me tirar daqui. Rimos um pouco. Toda vez que ia até o buffet improvisado tomar mais um café, ou me servia do chá mate que deixaram ali — igualmente péssimo, graças a Deus — era como se encontrasse aquela nave espacial. Não era uma fuga e sim a lembrança de que eu continuava ali. De alguma forma, em algum momento, aquele amontoado de caquinhos espalhados pelo chão em que eu tinha me transformado seria uma pessoa de novo, alguém que levanta todos os dias e faz seu café.
Quando não sabia o que fazer comigo mesma, quando não aguentava mais ouvir palavras bonitas de completos desconhecidos, eu ia até o buffet e pegava um café ou chá ruim e oferecia para alguém que parecia pior que eu. Umas três pessoas pararam depois para me agradecer pelo gesto, elas não sabiam que precisavam tanto daquele café. O café ruim tem gosto de humanidade compartilhada, o que quase sempre é uma merda quando a gente para pra pensar, mas não consigo pensar em nada melhor para colocar no lugar. Vamos todos morrer mesmo, mas, até lá, do chão ninguém passa.
Aos poucos, vou tentar me acostumar com a ideia de dizer em voz alta que agora prefiro chá. Mas se você tiver aí alguma indicação de café gostoso que custe menos de R$30 a embalagem de 500g, aceito também. A vida tá precisando ser só simples e boa de novo.
Disco da Edição
Multishow Registro (Vanguart, 2009): nem sei quanto tempo fazia que não escutava esse disco, mas foi gostoso tê-lo como companhia nos dias em que gastei matutando esse texto. Ainda tenho o DVD com o registro do show e foi uma das apresentações que eu mais assisti na minha vida, e acho que nada tem o gosto do cafezinho bom que eu bebia na adolescência e sonhava tanto em dividir com alguém.
Músicas favoritas: “Hemisfério”, “Enquanto Isso na Lanchonete”, “O Mar”, “The Last Time I Saw You” e, claro, “Para Abrir os Olhos”.
Links, Links, Links
- “Ode aos cafés ruins” é um título que está na minha lista de rascunhos desde 2018. A primeira versão foi inspirada justamente pelo café ruim que eu tomava toda quarta-feira nos voos de Uberlândia para São Paulo, vendo o sol nascer. É uma ideia que roda na minha cabeça, portanto, há cinco anos e ganhou força novamente quando a Helena Fitzgerald, que tem a newsletter que talvez seja a minha favorita de todas, escreveu uma taxonomia dos cafés ruins.
Fiquei com raiva, fiquei com inveja, decidi retomar o texto e, bem, digamos que a vida tratou de dar um empurrão.
- Querem ouvir uma coisa engraçada? Eu tô na internet há mais de 15 anos e nunca tinha sido notada por marca nenhuma. Aí em março a Holistix, que eu já sou cliente e AMO, entrou em contato, querendo fazer parceria com a newsletter. Recebi produtos para testar e tinha planejado altas blogueiragens e eu retorno triunfal para o Trash Advisor. Aí, bem, a vida aconteceu.
O mais irônico é que usei pra caramba tudo que elas me mandaram tentando sair desse café-ruim-way-of-life que o luto nos coloca — especialmente o Golden Mix, que é a melhor combinação do mundo pro leite de amêndoas que eu citei 15x na esperança de uma Almond Breeze da vida me notar também. Se eu fosse mais cara de pau dava pra encaixar um product placement nesse texto, mas eu, vocês, a Holistix e até meu finado avô merecem mais que isso, né? (é uma piada, podem rir)
Ainda vai ser esse Trash Advisor de luxo, mas até lá vocês podem usufruir do meu cupom de blogueira AVLOVE pra ganhar desconto e eu não passar vergonha.
- Nesse tempo que estive ausente iniciei um novo projeto, que tenho chamado de “minha newsletter de belezinhas”, que criei para falar de creminhos e outras frescuras. São temas que sempre fizeram parte da minha vida, mas nunca foram exatamente meus temas de escrita.
Na última edição, falei sobre o desafio que é montar um Look de Festival.
- Outro elemento importante para a existência desse texto foi o mergulho no álbum Ventura, dos Los Hermanos, proporcionado pelo episódio temático do Programa de Indie em homenagem aos 20 anos do disco. Se tem um CD que eu ouvi mais na adolescência do que o ao vivo do Vanguart, esse CD foi o Ventura, e juro que não é nepotismo quando digo que o Programa dá conta lindamente desse grande credo que delícia que só quem viveu sabe que o Ventura representa.
Ufa, agora acabou
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Um monte de gente chegou por aqui recentemente, então fica aqui o meu oi, seja bem-vinde, não repara a bagunça. A editoria “vamos todos morrer mesmo” é um clássico da casa, mas reconheço que é um jeito no mínimo inusitado de se conhecer alguém. Adoro receber respostas e saber o que vocês pensam aí do outro lado, por mais que seja péssima em escrever de volta. Quebrar a quarta parede é muito esquisito, mas aceite aí meu café ruim como agradecimento. Foi feito com amor.
Stay beautiful!
Com carinho,
Anna Vitória
Não falamos o suficiente sobre como esse é um excelente disco para se ouvir em viagens de avião.
Obrigado por "Succession é o que acontece com quem nunca tomou um café ruim". Por esta ode ao café. E por me lembrar que Ventura é uma obra-prima.
Um brinde de café açucarado (nunca coloco açúcar no café) a Kendall Roy.
ansiosa pro retorno do trash advisor! e que a vida volte a ser simples e boa em breve