para ler ouvindo vampire weekend - hannah hunt
Terminei de ler A Idiota, da Elif Batuman, na madrugada de sexta para sábado. Na verdade acho que ainda não tinha passado da meia-noite quando fechei o livro, apaguei a luz e fiquei encarando o teto do meu quarto, mas a história parece mais interessante se digo que fiquei lendo madrugada adentro.
Nessa mesma noite, sonhei que visitava a biblioteca de uma universidade junto do meu namorado. Era a biblioteca da USP mas não era exatamente a biblioteca da USP, assim como meu namorado estava ali representando não a pessoa com quem eu tenho um relacionamento hoje, mas alguém com quem eu tinha uma relação mais cinzenta, incerta, a relação que talvez teríamos se a gente tivesse se conhecido em 2015, não em 2021.
No sonho, saíamos da biblioteca e ele me deixava no seu dormitório universitário. Eu dormiria ali, na sua cama, enquanto ele saía para resolver alguma coisa em outro lugar. Logo que entramos no alojamento eu me dava conta de que tinha esquecido o livro que estava lendo em algum lugar.
A Idiota é um livro em que nada acontece. É um livro sobre o qual eu penso obsessivamente desde que comecei a leitura, há uns dois meses, mas dificilmente recomendo por aí porque o meu maior pavor é recomendá-lo a alguém e ouvir em seguida que esse é um livro em que nada acontece, que se pergunta por que a protagonista não faz nada. Eu sei que todos esses questionamentos vão me atingir como se fossem uma ofensa pessoal, e também que vou querer defender o livro e a protagonista como se defendesse a minha história e a minha identidade. Então, para evitar a fadiga, tenho guardado o livro comigo como uma espécie de segredo que agora compartilho com mais de 2 mil estranhos na internet.
Selin, a protagonista, é uma jovem estadunidense de origem turca que acaba de entrar em Harvard. Ela está num programa de linguística, quer ser escritora, e nesse primeiro ano decide estudar coisas como filosofia da linguagem, o romance no século XIX e conversação em russo. É nessa última aula que ela conhece Ivan, um matemático insensatamente alto com quem ela inicia uma correspondência via e-mail, pela intranet universitária. A história se passa em 1995 e a primeira frase do livro é: “Eu não sabia o que era e-mail até entrar na faculdade.”
Nada acontece entre Selin e Ivan. Não é spoiler dizer isso porque quem Entende sabe que isso não é exatamente verdade. Tudo acontece entre Selin e Ivan, mas quem Não Entende, independentemente do conteúdo do livro, vai chegar à última página dizendo que nada acontece.
Os principais romances que vivi na minha (caham) juventude também foram histórias em que quase nada aconteceu, mas em que tudo aconteceu. Sinto que também foi nessa época que eu escrevi mais e melhor, porque precisava muito de um esforço de linguagem e narrativa para garantir que havia uma história, algo acontecendo, em tudo que vivia. Nada me destruía mais do que dividir esses causos com alguém e essa pessoa chegar ao final da conversa querendo saber: e aí, mas o que aconteceu? , como se não tivesse ouvido nada que eu dissera antes.
Isso me deixava completamente sem defesa, derrotada, como se tivessem passado com um trator sobre um jardim que eu passara anos construindo, um trator tão alto que sequer deixava alguém enxergar as flores lá embaixo. “Essa é a história”, eu respondia, sem graça, eu mesma já questionando o que poderia haver numa série de e-mails e mensagens — que eram ora sobra nada e ora inundadas de confissões cifradas — se ao final ninguém se beijava, se eventualmente ele parou de responder minhas mensagens sem nenhuma vez dizer com todas as letras que gostava de mim, se eu sequer era capaz de dizer quando veria aquela pessoa novamente, se não sabia dizer se em algum momento ela cogitara me ver novamente ou se falava sobre mim para as outras pessoas como eu falava tanto sobre ela como alguém que é parte da minha história.
Em determinado momento, a melhor amiga da Selin, Svetlana, diz que as tensões que existem na amizade das duas vem do fato de ambas serem escritoras, e é no mínimo estranho saber que você é um personagem na vida de alguém que está constantemente examinando a própria vida em busca da literatura escondida ali. Tanto Selin quanto Svetlana tem consciência do poder que deriva desse exercício, mas tenho a impressão que Svetlana enxerga as coisas de uma forma um pouco mais madura, pragmática, enquanto Selin, que leu tantos livros, que em suas aulas examina a linguagem por diferentes ângulos e com tanta profundidade, parece estar ainda à procura, ou melhor, à espera, da vida que acontecerá com ela, para que então possa haver algo a se dizer.
Isso me lembra de um dos diálogos mais cruéis de Succession, aquele em que a Shiv diz para o Tom que ele não é O cara das histórias dela, enquanto ela sabe que é a história toda dele, a principal coisa que aconteceu na sua vida.
Essa noção de poder aparece novamente quando Selin e Ivan finalmente conversam sobre aquele relacionamento tão estranho que compartilham. Eles confessam como estiveram esse tempo inteiro puxando cordas e apertando botões como forma de chamar a atenção do outro, brincando com esse estranho e irresistível poder que tinham nas mãos de instigar alguém ao mesmo tempo que eram nocauteados pela forma como o outro os intigava, como num número de tango em que os dois dançarinos estão de olhos vendados.
Várias resenhas A Idiota definem Ivan como um cara babaca, que brinca com os sentimentos de Selin e a manipula durante toda a história. Consigo entender de onde vem essa percepção, mas acho muito limitante analisar a relação deles dessa forma, porque ignora a participação ativa de Selin nesse jogo. Sim, ela é uma garota mais nova, com muito menos poder objetivo sobre a relação, mas que vivia ali um aprendizado significativo, se não de vida, de escrita, sua chance de encostar naquele intangível da vida que, não por acaso, é tão vivo na literatura russa que é referenciada em A Idiota desde o seu título.
Ela não sabe disso, claro, e se pergunta por que não fez igual outra colega que simplesmente se inscreveu para um estágio em uma revista, enquanto ela decidira passa o verão dando aulas de inglês em vilarejos húngaros, na esperança de encontrar com Ivan aos fins de semana. Essa é a beleza de se ter 19 anos e o direito inalienável de ser muito, muito idiota.
“Juli, a luz estroboscópica”, Bernadett disse, sentando-se.
Havia mesmo uma luz estroboscópica no canto, num tripé. Juli a acionou. Bernadett deitou de costas na mesa de bilhar e retomou seus giros. Blanka trotava em círculos ao redor da luz, cintilando na discoteca escura e vazia, como um filme mudo vivo. Era uma cena impressionante. E, ainda assim, eu não sabia onde colocá-la. Parecia simplesmente estar ali, como um chapéu de pele cujo apparatchik tivesse sido levado pelo vento.
Entrei em pânico: queria prestar atenção em tudo, descobrir que história era aquela e ganhar retroativamente o direito de estar na Hungria (…). Eu sabia que ainda devia haver alguma coisa importante para fazer ou aprender. Só precisava descobrir um jeito de não desperdiçar meu tempo e minhas oportunidades.
Lembro de um garoto por quem tive uma enorme paixonite no início da faculdade. Ele havia estudado na mesma escola que eu, anos atrás, e tínhamos nos reencontrado numa simulação de relações internacionais. Ele disse que lembrava um pouco de mim, eu escolhi acreditar, e nos meses seguintes inventei inúmeras desculpas para falar com ele sob pretextos profissionais (Taylor Swift - Mastermind toca ao fundo) até que eventualmente fomos parar no Whatsapp um do outro. Assim como Ivan, ele iria embora para um intercâmbio em breve, e eu sabia que minha janela de ação era curta. Um dia nos encontramos em um bar, os dois ocupando diferentes mesas gigantes para comemorar o aniversário de amigos diferentes.
Em determinado momento ele, que conhecia casualmente várias pessoas que estavam comigo, puxou uma cadeira do meu lado e começamos a conversar. Eu bebericava uma caipirinha tentando fingir que estar num bar bebericando uma caipirinha, conversando com um garoto mais velho, que me olhava no fundo dos olhos o tempo inteiro e parecia interessado no que eu tinha a dizer, esse garoto que se lembrava de mim depois de tantos anos, que vira e mexe roçava no meu braço enquanto ria, que tudo isso era algo corriqueiro na minha vida.
O grupo dele se levantou para ir embora e fui com eles até a calçada. Ficamos ali por uns poucos minutos que duraram uma eternidade, inventando coisas pra dizer um para o outro e prolongar aquele momento. Ele perguntou se eu queria ir para a festa que ele e os amigos iriam, pediu desculpas por sair tão cedo, mas era aniversário de não sei quem, eles tinham planos. Disse que estava de carro e poderia me deixar em casa depois. Para mim aquilo soou como um movimento tão aquém das minhas possibilidades que era como se ele tivesse perguntado se eu topava pegar o primeiro avião e ir embora para o Egito. Eu não sabia como estar numa festa, não sabia como estar num carro com um garoto, me sentia completamente incapaz de protagonizar aquilo, mas mesmo que tudo acabasse ali, como de fato acabou, os acontecimentos daquela noite já tinham me dado material suficiente para narrar uns três tomos de romance dentro da minha cabeça.
Entre todos os dramas adolescentes, os meus problemas não eram os mais interessantes. Só que não ter problemas interessantes significava não ser muito interessante. E mesmo que eu soubesse que era interessante, o meu apelo era muito mais intelectual. Comparado às minhas amigas, eu não vivia muitas coisas. E, se eu não vivia muitas coisas, minha vida começava a ser menos válida do que as delas. (…) Não passar por situações que interessavam as outras significava perder a relevância ao falar, você começa a deixar de ser ouvida – e isso era uma coisa que eu não aceitava bem.
From The Vault, ou Ecos Emocionais (Clara Browne, 2023
Esse caso foi só um entre vários e por muito tempo eu tentei escrever algo que desse vida a essas experiências, algo que pudesse colocá-las do tamanho que elas tiveram pra mim. Na primeira versão desse texto eu disse que nunca consegui chegar lá, não exatamente, mas a verdade é que eu conseguiria, só não tive coragem na época. O medo de parecer maluca por lembrar de tanta coisa me impedia, ou talvez o meu medo era do poder que vem não exatamente de lembrar de tanta coisa, mas de conseguir manipular essas lembranças ao ponto de conjurá-las em uma história que não está exatamente nos fatos que todo mundo vê. Mesmo agora, anos depois, sinto que seria revelar demais, e uma parte de mim se recusa a ceder sem a certeza de que aquelas pessoas também guardaram com elas uma alguma história sobre mim.
A Idiota me quebrou porque é um romance que faz exatamente isso1. Para mim, a genialiadade de Elif Batuman está em narrar a história de Selin de modo que seja simultaneamente um amontado de não-coisas não-acontecendo e também uma narrativa pulsante de descoberta, desejo e formação que fez as minhas mãos suarem num misto de excitação, vergonha e reconhecimento. Não é o primeiro livro a fazer isso, o romance de formação é um subgênero2 literário em si, mas ele o faz a partir da perspectiva de uma personagem que aborda o mundo a partir de uma perspectiva muito mais intelectual, o que não é tão comum por aí.
Em determinado momento, Svetlana diz que sua experiência romântica se resumia a trocas intelectualmente eróticas e acho um bom termo para também descrever a dinâmica entre Selin e Ivan e, convenhamos, todas as minhas histórias de amor. Não à toa, meu relacionamento atual também começou com uma longa correspondência, e mesmo agora, mais de dois anos depois, sei que eu e ele às vezes sentimos falta daquelas palavras todas. Parafraseando a Clara: na vida real as coisas são mais soltas e esparsas, mas olha como é mais bonito e divertido contado desse jeito.
As conversas são intelectualmente eróticas não do ponto de vista superficial do termo, mas erótico como derivado de eros, aquilo que falta, que é diferente e impenetrável e, justamente por isso, nos move ao ponto da loucura.
Como Selin poderia não se apaixonar por Ivan?
Hoje, já numa fase da vida em que considero que Coisas aconteceram comigo, coisas que não preciso gastar muito tempo explicando porque bastam poucas palavras para que as pessoas me validem (que pena! que desperdício!), olho com carinho para essa época em que tudo parecia muito importante, mas nada era importante de verdade. Justamente por isso, examinamos tudo com lente de aumento para enxergar a vida acontecendo naquelas migalhas de existência, tão carregadas de possibilidade que chega a ser inebriante, por mais que na hora seja tudo um grande tédio, tardes e páginas inteiras em que nada acontece, como uma estrela que nasce e esconde sua luz, que só será vista por alguém dali séculos, milênios depois.
A Idiota termina com Selin convencida de que é incapaz de viver algo interessante, convencida de que ela não passa de uma participação especial na história de Ivan, essa sim, digna de um filme de verdade. Acho bonito como o livro age pelas suas costas e faz o trabalho de dar à história de Selin o tratamento literário que ela tanto procura enquanto só faz andar pelos corredores e avenidas de Harvard, dizendo todas as coisas erradas.
É como se as páginas nos sussurrassem ao final: ei, estávamos ouvindo o tempo inteiro e, honestamente, não existe nada mais erótico do que isso.
Meu sonho termina quando percebo a presença de uma senhora me observando ali naquele dormitório universitário. De alojamento individual, o espaço se transformara numa acomodação coletiva, parecida com aqueles quartos de Harry Potter. Eu tentei fingir que estava dormindo para ver se ela ia embora, mas depois sentei na cama para saber o que ela queria.
Ela tinha um sorriso de dentes pontudos, cheio de obturações metálicas visíveis em todos os dentes, e era uma espécie de caricatura xenofóbica que construímos quando imaginamos bibliotecárias da Europa Oriental. Ela me chamou pelo nome e queria saber o que eu estava fazendo naquele dormitório masculino. Meio sem saber o tamanho da contravenção que aquilo representava, fui sincera: disse que estava com o Bruno, que ele tinha ido resolver coisas na rua e me deixara dormindo ali.
Depois de um tempo ela me entregou um livro. Disse que estava esquecido numa das baias da biblioteca e ela só estava em busca do dono. Era o meu exemplar de A Idiota.
Disco da edição
Modern Vampires of The City (Vampire Weekend, 2013)
Uma coisa besta e bem aleatória sobre o meu processo de escrita é que as músicas que escolho para colocar aqui, assim como as imagens que acompanham cada texto, são parte fundamental do meu processo criativo. Se não tenho isso bem definido, muito provavelmente ainda não sei direito o que quero escrever. Às vezes gasto muito tempo tentando encontrar a música certa porque sei que ela vai me ajudar na construção do quero dizer.
Para esta edição, fui atrás das coisas que ouvia quando tinha a idade de Selin, há exatos 10 anos, e fui engolida pelo Modern Vampires como se fosse mesmo 2013 de novo. Credo que delícia. Tive uma crush tão violenta pelo Ezra Koenig nessa época que chego a ficar meio constrangida, ainda hoje. Muitas das reações que a Selin tem diante do Ivan, principalmente as mais físicas, me lembram muito de como eu sentia em relação ao Ezra (risos) em situações extremamente específicas, tipo nos versos em que ele muda seu tom de voz para um registro mais grave (como é o caso de “Don’t Lie” e “Hudson”), ou quando lança uma música como “Hannah Hunt”, uma música de amor sobre uma relação que se desmancha na estrada, uma canção que cresce aos poucos e se revela num clímax perfeito, como uma pessoa que finalmente abre o jogo sobre o que está sentindo depois de um monte de papo doido sobre mortalidade e o sentido da vida.
É a mesma carga intelectualmente erótica que A Idiota traz, isso sem mencionar o detalhe mais do que perfeito de que a tal Hannah Hunt que deu nome à música foi uma antiga colega de faculdade do Ezra Koenig, o Ivy League token do indie rock. Mais do que isso, ela foi uma garota que sentava com ele na disciplina de Budismo Indo-Tibetano nos seus tempos de Columbia.
Para ser mais Elif Batuman culture que isso, só se o verso “I don’t wanna live like this, but I don’t wanna die” tivesse aparecido no epílogo - uma pena que esse disco só seria lançado quase 20 anos depois da história que ele conta. Acho que Selin iria gostar.
Músicas favoritas: “Hannah Hunt”, “Don’t Lie”, “Step”, “Finger Back”, “Diane Young”
Hello stranger, como vai você?
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Espero encontrar aí do outro lado pessoas que Entendam o que quis dizer. Se é o seu caso, me conta sua história ou outro livro, música, filme que fez você se sentir dessa forma, vou adorar saber.
Em outras notícias, lá no Boudoir da AV, minha newsletter de belezinhas, escrevi sobre a solidão da mulher de pele seca e falei sobre meus hidratantes favoritos para o inverno. Estou preparando uma edição especial sobre o filme da Barbie, então assine se quiser receber direto na sua caixa de entrada e me poupar o constrangimento da autopromoção.
Don’t be a stranger.
Com carinho,
Anna Vitória
Outro exemplo que consigo lembrar de alguém que executou a proposta com maestria: nossa amiga Lorde, na canção “The Louvre”, mas especificamente no verso “I overthink your p-punctuation use”. Só quem viveu sabe.
Peço perdão às amigas beletristas caso essa informação esteja incorreta!
eu to apaixonada pelo jeito que você escreve!! é isso, "olho com carinho para essa época em que tudo parecia muito importante, mas nada era importante de verdade.", fui lendo seu texto e me vendo tanto em Selin, em você, é tão bom se sentir normal, deu vontade de ler esse livro também!
Li o texto gritando "disse tudo!!!!". Embora nada acontecesse, não consegui largar A Idiota até chegar no final. A cada página me sentia atacada e rebobinava o VHS da transição aos 20 e poucos sentindo um pouco de vergonha alheia. Porque fui um pouco Selin. Também vivia demais dentro da minha cabeça e me sustentava pela escrita, e absolutamente tudo parecia mais grandioso do que realmente era. Por essa perspectiva, Elif Batuman foi genial pois construiu um retrato preciso do que é sair da escola, descobrir o universo acadêmico e desbravar o bicho de sete cabeças que as pessoas mais velhas parecem ser para nós. Me achava muito esquisita por não estar pegando geral e "vivendo" as coisas, e ler a Idiota curiosamente normalizou essa esquisitice pois talvez nem fosse tão anormal assim. Só estava em outra vibração, ocupada demais em investir nas narrativas e escrever bonito e assustada diante de qualquer oportunidade de ser agente do mundo real. Você traduziu meus sentimentos com relação ao livro com maestria, amiga. Essa edição tá puro ouro (como tudo que você escreve!!!) <3