para ler ouvindo modern girl - sleater kinney
Hello stranger, como vai você?
Minha defesa do mestrado finalmente foi agendada, o que significa que estou sendo obrigada a revisitar minha dissertação. Agora, um pouco menos traumatizada pelo processo de escrita e todo o percurso caótico que foram esses três anos de pesquisa, acho que estou começando a entender, de fato, o que foi que eu fiz.
Em agosto do ano passado, faltando seis meses para a entrega do trabalho, decidi mudar de maneira considerável o foco da minha pesquisa. Todo esse processo é caso para um outro texto, o que interessa aqui é que não tive muito tempo pra sedimentar internamente essa ideia nova, apenas fechei o olho, tampei o nariz e fui. Tive uma única reunião com meu orientador, na qual falei por umas duas horas naquele naipe Ciro Gomes gesticulando, e ele resumiu em uma frase com palavras inteligentes o que eu tava querendo dizer. Aceitei o resumo e me baseei nele para fazer o que tinha que fazer, mas a verdade é que eu ainda ficava meio Ciro Gomes das ideias quando precisava responder de supetão sobre o que era meu trabalho.
Relendo tudo agora, finalmente acho que consigo fazer essa articulação com as minhas próprias palavras e percebi que posso condensar essa resposta em dois livros1: O contrato sexual, da Carole Pateman, e De quem é esta história?, da Rebecca Solnit. Decidi dividir um pouco deles com vocês para futuras referências.
Em O contrato sexual, Carole Pateman vai revisitar as principais teorias do contrato social para identificar nelas um aspecto que foi omitido, mas está sempre presente: o caráter generificado (que também racializado) desse pacto - ou seja, como ele é, em essência, masculino, dando origem a uma organização que é feita por homens e para homens. Essa organização, no caso, é a Sociedade mais ou menos como a conhecemos hoje e todos os valores e instituições que derivam dela. Para quem não lembra muito bem das aulas de história ou daquela disciplina de ciência política dos primeiros semestres da faculdade, a teoria do contrato é aquela que explica como os homens saíram do estado da natureza (dedo no cu e gritaria) para viver de maneira ~civilizada.
Usei “homens” de maneira deliberada no parágrafo acima (e ao longo do texto vou usar “homens” e “mulheres” como categorias de análise, sem entrar no mérito de identidades e expressões de gênero) para marcar aquilo que a História omite, mas Carole Pateman destaca: não importa quem seja seu contratualista de estimação, todos falam de um movimento que foi protagonizado por homens, homens esses que foram promovidos a indivíduos a partir desse acordo. O que cabia às mulheres é o que a autora chama de contrato sexual, a sujeição do corpo e do trabalho doméstico em troca de casa e proteção através do contrato do matrimônio. Normal.
Quando Bolsy diz que as mulheres estão praticamente integradas à sociedade, temos aí uma observação de incrível perspicácia, ainda que por todos os motivos errados. A gente está mesmo praticamente integradas à sociedade e sempre vai ser assim, pelo menos nessa organização, porque a exclusão das mulheres estava posta desde o começo, não existe o indivíduo do sexo feminino. Como escreve a Simone de Beauvoir na introdução de O segundo sexo, “a humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo”. Ou, como disse Angelica Schuyler na canção “The Schuyler Sisters” (vídeo abaixo), se todos os homens são iguais, é preciso lembrar Thomas Jefferson de incluir as mulheres na próxima edição da Declaração da Independência dos Estados Unidos.
Do outro lado do campo, temos o trabalho da Rebecca Solnit, em especial a coletânea de ensaios De quem é esta história? Feminismos para os novos tempos. Para ela, vivemos hoje uma grande disputa de cunho narrativo a respeito de quem seriam os ou as protagonistas das histórias do nosso tempo, uma posição que determina, por consequência, onde estão os eixos de poder que informam a favor de quem a história se constrói e quem é capaz de determinar os seus rumos. Hamilton é um exemplo que ilustra perfeitamente essa disputa: quem controla quem vive, quem morre e quem conta sua história? Esse é um jeito sofisticado de condensar um dos significados possíveis para esse panorama atual em que vozes e perspectivas que antes eram marginalizadas e silenciadas aparecem no espaço público com um alcance extraordinário, principalmente graças às redes sociais2
Para mim, o que a Solnit faz é trazer toda a discussão da Carole Pateman para o nosso dia a dia, usando as narrativas culturais pra materializar esse papo meio etéreo de sociedade generificada. Se o mundo é dos homens brancos de classe alta, as histórias são deles também. O que acontece quando outros narradores entram em jogo? Podem me chamar de brega, mas não resisti e usei um trecho de Hamilton como epígrafe do capítulo em que introduzo essas ideias.
Foi unindo essas duas pontas de um grande argumento que acabei estudando as narrativas da Era #MeToo na televisão, uma grande disputa narrativa sobre o que é a violência sexual, quem pode ser vítima e quem pode ser agressor, sempre a partir de uma perspectiva de gênero. Mas não é isso que gostaria de compartilhar hoje. Atualmente, o que mais tem me fascinado nessas discussões tem a ver com a maneira como a Carole Pateman explica a origem da exclusão das mulheres. Por muito tempo, essa exclusão foi justificada pela crença de que a fertilidade e as demais particularidades do corpo feminino nos fariam mais frágeis em termos de força física e também de capacidade intelectual.
No entanto, ela fala que não tem nada mais ANTIGO do que acreditar nisso. O buraco é mais embaixo. Para Pateman, o principal efeito político da diferença entre os sexos é de estabelecer o corpo feminino como uma força desgovernada próxima daquele estado natural de dedo no cu e gritaria, uma potência sem freios que deve ser submetida pela força e pela razão, da mesma forma como a própria natureza foi dominada na criação do paradigma moderno (lembra dessa aula?). A criação do direito político, portanto, estaria no movimento – masculino – de sobrepor-se à natureza para estabelecer a ordem da humanidade – dos homens – sobre a Terra. Em outras palavras, o nascimento dessa nova ordem política é definido como o movimento de transmutação da capacidade natural das mulheres de gerar a vida na capacidade masculina de criar a política por meio da razão. Insira sua metáfora sexual e psicanalítica aqui.
Mulheres fazem bebês, homens fazem a humanidade. Eu nunca mais consegui ter uma conversa normal depois de entender, realmente entender, tudo isso - vide esse texto que estou escrevendo agora.
O corpo de um homem é muito diferente do das mulheres. O corpo dele está rigidamente encerrado dentro dos limites, mas o das mulheres é permeável, seus contornos mudam de forma, estando sujeitos a processos cíclicos. Todas essas diferenças estão sintetizadas no fenômeno corporal natural do nascimento. O nascimento biológico representa tudo que torna a mulher incapaz de entrar no contrato original e de se transformar em indivíduo civil, capaz de legitimar os termos dele. As mulheres estão privadas tanto de força quanto de capacidade num sentido geral, mas, de acordo com os teóricos do contrato, elas são por natureza deficientes quanto à capacidade especificamente política de criar e manter o direito político. As mulheres têm de ser submetidas aos homens porque elas são naturalmente subversivas à ordem política masculina. (PATEMAN, 2021, p. 147).
Não sei quanto a vocês (sempre bom fazer uma ressalva nesse momento em que vivemos em que todo mundo sabe tudo e já leu de tudo), mas eu ainda não tinha lido nada que expunha essa perspectiva da origem da desigualdade de gênero com tanta clareza. Não passo um dia sem pensar sobre isso, talvez porque seja responsável pelo conteúdo de uma clínica especializada em saúde feminina (com foco especial em fertilidade) e esteja em contato direto com as implicações práticas desse pensamento no meu dia a dia. No fundo, todos os problemas, questões, angústias e queixas que tratamos ali nasce desse pensamento que entende as mulheres como parte de uma natureza que deve ser domada. Consigo até entender por que um livro como Mulheres que correm com os lobos conquistou tanta gente. Dá vontade de tatuar um útero só de birra - mas passa.
A gente precisa ir além disso, mas isso também é caso pra outro texto.
Em “Travessia”, um dos ensaios do livro da Rebecca Solnit, ela também pensa na relação entre os corpos femininos e masculinos e como eles estão conectados com as fronteiras geográficas, as disputas de território, a vida nas cidades, e, em última instância, a hostilidade em relação às mulheres - e podemos expandir esse olhar também aos corpos masculinos que fogem do padrão cisheterossexual - que caminham sobre eles.
Sob o patriarcado, o corpo ideal foi imaginado como um país isolacionista, uma ilha toda voltada para si mesma, com controle total sobre si mesma, o que torna problemático o corpo feminino — ou qualquer corpo em que sejam reconhecidos os orifícios e a possibilidade de intercâmbios, a penetrabilidade e vulnerabilidade. (SOLNIT, 2020, 154).
Essa porosidade que ela fala se traduz como a irracionalidade atribuída às mulheres, uma característica que se refletiria também nos seus atributos morais - “I’ve been reading Common Sense by Thomas Paine”, canta novamente Angelica Schuyler, “so men say that I’m intense or I’m insane.”, uma forma de resumir em alguns versos toda uma teoria política e séculos de desigualdade. Ao analisar os trabalhos de Rousseau, Carole Pateman mostra como o autor entende as mulheres como seres governados por suas próprias paixões, seres movidos por desejos egocêntricos, insaciáveis, incompatíveis com a ordem civil.
Nesse sentido, acho curioso também como as duas autoras associam o surgimento de uma série de normas disciplinadoras pra controlar esse desgoverno. O mais óbvio é o controle da sexualidade pelo casamento, mas também temos o pudor, a limpeza e uma educação que visa a cordialidade, roupas, leis, costumes, punições, arquitetura e regras variadas. Falar sobre isso sempre me lembra do poema da mulher limpa, da Angélica Freitas, um texto que também quis usar como abertura de capítulo mas acabou sendo grande demais para a formatação da página.
Por incrível que pareça, fiquei pensando em tudo isso quando escrevia um texto para o trabalho sobre os diferentes sinais que o corpo nos envia. A ideia era compartilhar curiosidades sobre as fases do ciclo menstrual e seus significados, e acabei dando um jeito de falar sobre o eixo cérebro-intestino também, que é outro tema que ando obcecada ultimamente. O problema é que, ao escrever sobre isso, parecia impossível me descolar de toda essa discussão doida que expus acima, principalmente porque foi um trabalho que fiz enquanto escrevia minha dissertação. Esse é o dano cerebral que a vida acadêmica produz: por mais que a gente tente disfarçar, em algum momento a gente vai acabar se descuidando e deixando a intelectualidade à mostra em contextos aleatórios. No meu caso, mandei a frase “a história moderna é sintetizada pela vitória do ser humano sobre a natureza.” num texto que era pra ser leve e divertido, a ser publicado no Dia de Beauté.
Como escrever casualmente sobre o horror que sentimos diante do muco vaginal sem falar sobre a disciplina imposta ao corpo feminino? Como falar sobre cocô num site de maquiagem sem mencionar a cisão entre corpo e mente que define o ennui moderno? É esse tipo de debate que tenho comigo mesma no meu dia a dia e sorte a minha que tenho uma chefe acha tudo isso fascinante e me ajuda a editar um pouco dessa loucura antes que alguém mais veja.
Por que estou contando toda essa história? Porque recentemente reli esse texto, lembrei que em janeiro - quando ele foi publicado - eu estava tão possuída pelo Ciro Gomes gesticulando que cheguei a chorar ao escrevê-lo, porque minha cabeça simplesmente não desligava. Meses depois, ainda consigo pescar ainda algumas afetações acadêmicas que resistiram às múltiplas edições, mas agora só achei mesmo muita graça de tudo. Que bom que o tempo passa - só assim pra eu ter coragem de encarar o doutorado um dia. Por ora, fica esse segredo entre eu e o texto, que agora divido com vocês também. Foi mal, tava doidona - é o que posso dizer em minha defesa.
Espero que a desculpa cole na banca também.
Seguimos.
Disco da vez: Dragon New Warm Mountain I Believe In You (Big Thief, 2022)
Das bandas em franca atividade atualmente, periga o Big Thief ser a minha favorita. Esse novo lançamento me dá vontade de incorporar o blogueiro indie e dizer que faaaaase vive o quarteto do Brooklyn, com fôlego aparentemente inesgotável - foram dois álbuns ótimos em 2019, dois solos da Adrianne Lenker em 2020 e mais um monte de projeto paralelo do resto da banda espalhados ao longo desse tempo.
Sinto que o Big Thief ocupa hoje um espaço no meu coração que antes era do Wilco, no sentido de que hoje o Wilco faz um som mais simples, singelo, delicado e direto ao ponto - o que faz todo o sentido na trajetória deles - e aquela SONZERA que antes definiu a banda, agora, pelo menos pra mim, fica a cargo de Adrianne Lenker e sua turma. Aliás, Jeffinho Tweedy gravou recentemente um cover para “Certainty”, faixa desse novo álbum. Se for pensar bem, as quase 20 faixas fazem com que o Dragon New Warm Mountain I Believe In You (ufa!) seja praticamente o Being There dela e vai falar diretamente com quem é fã de country alternativo, mas também quem é jovem, sente, ama e sofre. Pegue seu berrante, nós vamos pro shopping.
Músicas favoritas: Spud Infinity, Certainty, Little Things, Wake Me Up To Drive, Promise is a Pendulum
Ufa, agora acabou!
A coisa mais legal que assisti nesses últimos 15 dias foi o vídeo em que a Karen Bachini fala sobre como ela descobriu uma menopausa precoce depois de vários episódios de negligência médica e exames traumáticos. Como disse, saúde feminina é um dos meus temas atualmente e fiquei especialmente tocada pela maneira como ela articulou a relação entre sua condição e todos os conflitos de gênero que surgiram a partir daí. Depois de um texto falando tanto de corpo, acho importante lembrar que ter ovários, úteros ou filhos não faz ninguém ser mais ou menos mulher.
Se não espantei você com toda essa conversa, deixo também o convite pra me acompanhar na newsletter da firma. Lá escrevo sobre saúde feminina, corpo, nóias, reflexões e o que mais eu conseguir convencer minhas superiores de que faz sentido fora da minha cabeça. É um trabalho que tenho adorado fazer e meu atual projeto do coração. Segue lá!
Para finalizar, uma newsletter que tenho gostado muito de ler ultimamente é a Espirais, da Lalai Persson. Nas duas últimas edições (aqui e aqui) a Lalai compartilhou algumas histórias sobre o trabalho voluntário que tem feito com os refugiados da guerra que estão chegando em Berlim. Para ser bem sincera é a única “cobertura de guerra” que tenho conseguido acompanhar e a perspectiva dela me deixou muito tocada.
Agora sim: obrigada pela companhia e por chegar até aqui.
Stay beautiful e boa semana!
Yours truly,
Anna Vitória
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Claro que não é tão simples assim e hoje já é possível contestar se o aumento de vozes consegue de fato romper com desigualdades estruturais (não), mas é inegável que o espaço hoje é mais plural do que antes, pelo menos na fachada.
Maravilhosa toda essa reflexão, muita coisa pra pensar. Por favor, faça o texto sobre ir além da tatuagem de útero e mulheres que correm com os lobos :)
Por coincidência ontem vi esse vídeo do oraporra que faz já conversa ótima com esse texto https://youtu.be/nBlP0rTvt54 (e talvez Yellowjackets converse com tudo, o que explica porque a série ocupou um pedaço do meu cérebro sem pagar aluguel as the kids say).
Ps: indignada que desconhecia esse livro da Solnit que pela sua descrição parece 100% my shit
Continue escrevendo doidona! E boa sorte na banca <3