para ler ouvindo haim - i know alone
Você sabia que nossos dentes podem ser considerados uma espécie de fratura exposta?
Uma amiga me disse isso há uns anos e nunca consegui esquecer.
Bastaram alguns toques no Google para descobrir que a informação não é verdadeira, mas ainda é a única máxima que me parece forte o suficiente para explicar o estranhamento que sinto quando penso um pouco demais sobre os meus dentes. No fundo, acho que o que minha amiga quis dizer é que dentes são tão estranhos porque eles são como ossos que conseguimos ver e tocar, embora isso também não seja verdade.
Dentes são órgãos, assim como o coração e os pulmões, que se diferenciam dos ossos principalmente por sua composição. Segundo consta no site Amo Odontologia, mantido por uma clínica odontológica localizada em Atibaia (SP),
Os dentes são feitos de cálcio, fósforo e outros minerais. Já os ossos contêm cálcio, fósforo, sódio e outros minerais, mas também têm muito colágeno. Colágeno é uma proteína, um tecido vivo que confere a flexibilidade dos ossos que os faz aguentar pressão. O cálcio preenche os espaços desta moldura e os faz fortes o suficiente para sustentar o peso do corpo.
Mas os ossos não são tão fortes quanto os dentes, que são a parte mais dura do corpo humano. Os dentes são basicamente tecidos calcificados, chamados dentina, cobertos de esmalte (enamel) que é duro e brilhante. (…) Outra diferença é que o tutano do osso produz células vermelhas e brancas do sangue e o dente não. Apesar do centro dos dentes parecer tutano, na verdade, é a polpa do dente, a parte “viva” de cada dente, que contém os nervos, artérias e veias. São estes nervos que nos fazem sentir dor de dente.
A última diferença é que nossos dentes estão expostos, enquanto os ossos estão guardados embaixo de nossa pele. Os dois, no entanto, exigem muitos cuidados.
(Excerto retirado do site Amo Odontologia, de autoria desconhecida, que indica como fonte o site Life’s Little Misteries. Os grifos são meus.)
Ainda fico com a versão de que os dentes são uma espécie de fratura exposta.
É a única frase forte o suficiente para prender a atenção de alguém quando você quer escrever sobre seus dentes.
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Quase não me lembro disso hoje em dia, mas passei boa parte da minha infância e adolescência em consultórios de dentista. O problema começou com os meus primeiros dentes permanentes, grandes demais para uma arcada dentária pequena, uma antítese curiosa da minha anatomia, já que minha boca parece imensa quando vista do lado de fora. Além de tudo meus dentes vieram manchados, consequência de um excesso de flúor na gravidez que minha mãe nunca conseguiu identificar de onde veio e apenas aceitou como verdade, já que não havia nada que pudesse fazer para mudar o fato de que meus dentes eram horríveis.
A situação era tão dramática que, apesar de ter sofrido minha cota de bullying na escola, os dentes nunca foram alvo de zoação. Era uma espécie de acordo tácito entre os colegas, um asterisco no código de ética dos bullies de nove anos de idade, um limite que não se deveria ultrapassar porque seria sacanagem demais torturar uma colega de classe por algo tão escancarado, tão obviamente ruim. Aconteceu uma ou duas vezes de me chamarem de dentuça e lembro de me sentir absolutamente violada, os olhos cheios de lágrimas e a sensação de ter sido jogada pra fora de qualquer pacto civilizatório que existia entre os estudantes de ensino fundamental.
Não era segredo pra ninguém que eu tinha os piores dentes da turma, mas dizê-lo em voz alta automaticamente os transformava em uma fratura exposta impossível de ignorar.
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Usar aparelho fixo foi a melhor coisa que me aconteceu naquela época. Era aquele aparelho clássico, cheio de estruturas metálicas que tomavam quase todos os dentes. Um trauma para a maioria das pré-adolescentes que pra mim veio como uma libertação, já que ele chamava mais atenção que as manchas, os dentes enormes e minha gengiva sempre muito vermelha e inchada. Usei esse aparelho dos doze aos dezessete anos, muito mais do que qualquer uma das minhas amigas, e durante boa parte desse tempo eu tive que ir ao dentista a cada quinze dias para sessões de manutenção.
Quando tento me lembrar de quem eu era nessa época, me vejo sentada numa sala de espera com aquela displicência típica dos adolescentes. A camiseta de uniforme da escola, uma calça jeans que não me servia direito, a testa oleosa, os cílios empelotados de rímel velho, as unhas das mãos pintadas de alguma cor extravagante que provavelmente combinaria com a borrachinha do aparelho que eu escolheria para aquela semana. Minha avó estaria sentada do meu lado fazendo palavras cruzadas enquanto eu folheava revistas Caras antigas esperando me chamarem pelo nome.
Como forma de consolo, os dentistas falavam que pelo menos eu tinha nascido sem os sisos e logo estaria livre daquela rotina.
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A promessa se cumpriu por quase dez anos.
Fiquei até um pouco negligente com os meus dentes, naquela fase em que de repente, silenciosamente, as mães se aposentam do papel de gestoras das nossas vidas e você descobre que ninguém vai te lembrar de ir ao dentista, nem mesmo a secretária da Tia Sueli, que foi sua dentista desde a época dos dentes de leite (será que existe alguém com mais nome de dentista do que as Suelis do mundo?).
Mas eu não tinha sisos e era muito disciplinada com toda a coisa da higiene graças aos anos de aparelho, de modo que os dentes simplesmente deixaram de ser uma questão na minha vida. Até que em março de 2020, aquele março de 2020, fui surpreendida por uma das piores dores que já senti na vida.
Ao que tudo indicava, o siso que me juraram que não existia estava nascendo.
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Não tenho nada para dizer em minha defesa. Não sei explicar por que ou como me disseram que eu não tinha sisos quando eles muito claramente estavam ali. Nesse momento, já nem saberia dizer se disseram isso mesmo ou se foi algo que repeti por tanto tempo que até eu acreditei. Fiz inúmeras radiografias ao longo da vida, é impossível que tenha passado batido. Mas passou.
Minha teoria é que todo mundo só entregou os pontos quando viu a linha de chegada daquele longo tratamento e ficou por isso mesmo. Depois de tantos anos de radiografias, tomografias, moldes, avaliações, guias, autorizações, alicates, apertos, borrachinhas coloridas, panorâmicas, aftas, lasers, géis de lidocaína e tratamentos mil, aos 18 anos fui libertada do fardo de ter dentes, como uma fugitiva que escapou na primeira saída que apareceu.
Meus pais, por sua vez, viram nessa brecha a chance de se libertarem do dever de cuidar dos meus dentes — pelo menos é isso que eu imagino que tenha acontecido quando penso no assunto hoje, na condição de adulta que leva em conta os custos de um possível tratamento dentário complexo quando pesa a decisão de ter filhos. Eles haviam cumprido sua missão como pais e entregaram ao mundo uma jovem alfabetizada, vacinada, fluente em inglês, matriculada em uma universidade pública e com os dentes no lugar, todos brancos e perfeitamente alinhados. Eu já tinha juízo o suficiente e não precisava de dentes que falassem por mim.
Aí vieram os sisos.
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Foi bem no início da pandemia, naquela fase em que não sabíamos de nada e sobrava pânico e álcool em gel até para os cachorros e pacotes de batata palha. Comecei a sentir uma dor insuportável na gengiva e o lado esquerdo do meu rosto inchou como se eu tivesse levado um soco. Fiz minha primeira consulta online, o que incluiu enfiar a câmera do celular quase inteira dentro da boca, e saí com um combo de anti-inflamatórios e analgésicos fortes e a recomendação de estar sempre com uma bolsa de gelo colada no rosto. Se tivesse febre, teria que ir para o pronto-socorro, o que parecia inimaginável naquele momento.
As madrugadas eram horríveis e eu chorei de dor pela segunda vez na minha vida adulta. Alguns dias depois, acordei e havia um dente na minha boca, que surgiu ali como um inseto monstruoso.
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Eu saí da pandemia com dois dentes novos na boca, dentes que explodiram como um relevo que nasce da movimentação de placas tectônicas, a coisa mais próxima de uma cicatriz visível, de uma fratura exposta, que eu poderia carregar desse período. Pensar sobre isso agora, alguns dias depois da cirurgia de extração, faz com que eu me ressinta um pouco dessa perda que me deixou sem provas materiais dessa ruptura tão profunda chamada Março de 2020, um evento que às vezes ainda me parece incomunicável.
Agora, quando abro a boca, é possível ver lá no fundo dois buracos na minha gengiva.
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Eu saí da pandemia com dois dentes novos na boca. Como demorei tanto tempo para enxergar essa conexão? Apareceram dois dentes sisos — os dentes do juízo, símbolos de maturidade cuja ausência indica uma certa evolução da espécie — na minha boca na mesma semana em que o mundo colapsou, eu voltei pra casa da minha mãe e a vida nunca mais foi a mesma. Sabe??? E eu achava que era mais evoluída que isso.
Poderia traçar outro paralelo e dizer que demorei cinco anos para me livrar dos sisos, assim como demorei quatro anos e alguns meses para voltar para São Paulo (SP). Poderia narrativizar esse processo tão profundo e simbólico a partir da minha dificuldade de fazer algo tão simples quanto marcar uma série de exames de imagem e encontrar uma cirurgiã que atendesse o meu plano odontológico. Poderia amarrar tudo isso com umas palavras doidas sobre sermos agentes dos nossos destinos, sobre a beleza e o absurdo dessa liberdade. Não seria a primeira vez que escrevo sobre isso e nem vai ser a última.
Mas a verdade é que eu demorei cinco anos para me livrar dos meus sisos porque sou mesmo enrolada pra caralho.
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Eu não tinha medo da dor, mas tinha medo da memória celular que guardava da sensação extremamente específica de ter meus dentes arrancados.
Aos doze anos, antes de colocar o tal aparelho fixo, precisei tirar quatro dentes permanentes, já que minha boca não tinha espaço para eles. O procedimento foi feito em duas sessões, dois dentes por vez, e lembro que foi na mesma época da Copa do Mundo de 2006. Minha lembrança desse período é de ter a luz da cadeira de dentista diretamente nos olhos e de depois tomar um milkshake do McDonald’s vendo algum jogo da seleção.
Como disse, não lembro da dor, mas lembro da sensação (e do som) do alicate mexendo o dente de um lado para o outro até ele sair. Deve vir daí aquela história de que sonhar com dentes caindo é um prenúncio de morte1. Na minha cabeça, esse foi um processo que durou horas, mas agora já desconfio que os anos exageraram e distorceram a recordação. O procedimento para a retirada dos sisos não durou mais do que quarenta minutos ao todo e não teve alicate envolvido. Sobrevivi.
O cirurgião, um especialista bastante convencido que foi chamado para auxiliar uma extração que prometia ser complexa, se gabou de sua habilidade de arrancá-lo de primeira, em um único movimento de alavanca. Ele destacou que isso faria com que eu inchasse muito menos, já que o inchaço vem do estresse nos tecidos moles, o que ele conseguiu evitar. Ainda assim, quando saí do consultório fui visitada de novo pela sensação extremamente específica de ter tido meus dois dentes arrancados.
Poucas experiências produzem um impacto sensorial tão específico e literal. A coisa mais próxima disso que já vivi foi acordar de manhã depois de ter feito sexo pela primeira vez na noite anterior.
“Como você se sente?”, minhas amigas queriam saber. Exatamente como se tivessem enfiado um corpo estranho dentro de mim em seguidos movimentos de vai e volta, era o que eu queria dizer, mas só respondi que achei divertido e que minhas coxas doíam um pouco, o que também era verdade. Minha mãe disse que minha objetividade sobre isso beirava o preocupante, enquanto eu já acho que ter tido esse exato pensamento contribuiu muito para que essa seja uma das experiências mais bem resolvidas de toda a minha vida.
Mas divago.
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É normal acordar e descobrir dentes novos na boca quando se é criança, mas depois de uma certa idade isso vira uma espécie de falha na matrix, um bug que nos lembra que apesar de todos os esforços civilizatórios ainda somos mamíferos que precisam dos dentes — a parte mais dura do corpo humano! — para sobreviver a partir da trituração de folhas, frutas, legumes e outros animais. Dentes, cara. Que coisa absurda.
Aprendi cedo demais a ser obcecada por controle e ultimamente tenho gostado do exercício de rejeitar a lógica humanista para admirar nossa proximidade com a natureza de uma forma mais radical. Trabalhando com saúde feminina é comum que eu veja essa associação por aí, que além de tudo é um recurso que permite uma série de metáforas e imagens bonitas, é um jeito simpático de pacificar a relação com uma parte da vida que traz uma série de inconvenientes. Mas o que tem me interessado mesmo é pensar na natureza como algo alheio à humanidade, mais próximo do caos do que essa sinfonia perfeita dos ciclos, estações e orquestras hormonais. As duas coisas podem ser verdade ao mesmo tempo.
O que eu não consigo parar de pensar são nos tumores que têm dentes, cabelos e unhas, muito mais próximos da natureza que vejo quando olho pela janela atualmente do que as fases da lua do sagrado feminino.
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Por conta do meu trabalho, passo muito tempo lendo e pensando sobre a sofisticação que existe num óvulo, a maior célula do corpo humano, ou nos melindrosos fluxos hormonais envolvidos num ciclo menstrual, e é curioso pensar que essa complexidade coexiste com algo tão bruto quanto os dentes e os movimentos necessários para extraí-los. Por mais delicado que seja o profissional, por mais preocupado que ele esteja com o estresse sobre seus tecidos moles, chega uma hora que a coisa é tão preto no branco quanto precisar de uma alavanca pra arrancar um dente fora, quanto enfiar corpos estranhos em orifícios nunca d’antes explorados, quanto ter um fio de cobre alojado no seu útero porque você (ainda) não quer ter filhos.
Pois é. A extração dos sisos me fez pensar muito nesse pequeno alienígena que habita em mim, também conhecido como dispositivo intrauterino. Faço questão de destacar que trata-se de um fio de cobre alocado no meu útero para não esquecer que é por isso ele dói. O cobre está ali para gerar uma reação inflamatória que vai afetar a motilidade dos espermatozoides e tornar o útero um ambiente hostil para a fixação de possíveis embriões. O DIU forma uma barreira física invisível contra a gravidez indesejada, uma solução que é sofisticada e ao mesmo tempo medieval. Duas coisas podem ser verdade ao mesmo tempo.
Para fazer a inserção, é necessário segurar o útero com uma pinça (ou melhor, “pinçar o lábio anterior do colo uterino”, segundo descreve o Portal de Boas Práticas da Fiocruz) e conduzir o dispositivo em formato de T através do canal vaginal usando uma espécie de cateter. Isso tudo, claro, acontece enquanto o colo do útero está aberto e exposto graças ao uso de um espéculo. Vamos tirar um minuto para pensar sobre essa cena.
Não tem nada de delicado sobre esse procedimento, mas a grande maioria das pessoas passa por ele sem qualquer tipo de anestesia, sendo orientadas apenas a tomar um comprimido de 400mg de ibuprofeno a cada seis horas nos três primeiros dias após a inserção. Eu demorei anos para marcar minha inserção de DIU, mas dessa vez a culpa não foi da procrastinação.
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Me deram um comprimido de codeína para tomar uma hora antes de tirar os sisos e nos sete dias após a operação. Quando cheguei no consultório, a assistente perguntou se eu gostaria de um remedinho que me deixaria mais relaxada, o que também me ajudaria a soltar a mandíbula e facilitaria o procedimento. Já ouvi médicos dizerem que a inserção do DIU só é dolorida porque as pessoas ficam nervosas e contraem a musculatura, dificultando o acesso ao colo do útero.
Foram três picadas de anestesia local e o dentista, aquele pavão, foi enfático: a partir de agora você não pode sentir dor. Se eu sentisse qualquer tipo de dor, deveria levantar o braço para ele saber que era para parar imediatamente.
Em determinado momento senti um pouco mais de desconforto e não sabia se aquilo configurava a tal dor que eu não podia sentir, então achei que valia a pena testar o mecanismo que me foi dado. Levantei o braço e imediatamente recebi mais uma dose de anestesia.
Não senti mais nada depois disso.
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Também não senti nada na inserção do DIU, mas precisei fazer muito mais do que apenas levantar o braço. Para começar, foram necessárias quatro consultas com quatro profissionais diferentes até achar uma médica que entendesse que eu não queria e não deveria sentir dor durante o procedimento. Também não queria ter que recorrer a uma sedação total, já que os planos de saúde não cobrem essa modalidade e eu teria que arcar sozinha com os honorários da equipe (que incluiria um anestesista) e pagar uma internação particular, uma conta de no mínimo quatro dígitos e de soma final imprevisível.
Foram dois anos numa saga quase quixotesca por conta de uma demanda que não me parece complexa. Dentistas entregam procedimentos muito mais invasivos sem dor nenhuma todos os dias — minha cirurgia foi a oitava extração de sisos que o bucomaxilo rockstar fez naquele dia!!! — e até competem entre si para ver quem consegue oferecer a extração menos traumática. Me deram um cobertor, um calmante e a segurança da afirmação de que qualquer tipo de dor a partir daquele momento estava fora do script.
No entanto, quando você diz que tem medo da dor na inserção do DIU é normal ouvir que depende, que dor é uma coisa subjetiva, ou que tudo acontece tão rápido que nem vale a pena pensar em formas de amenizar o desconforto. Em vários momentos me senti infantilizada, como se não tivesse direito de solicitar aquele procedimento se não estava disposta a encarar a dor que viria com ele.
Apenas uma médica me ofereceu a possibilidade de fazer a inserção guiada por um ultrassom, o que dispensaria o uso da pinça e diminuiria ainda mais o desconforto, além da anestesia local. Eu achava que tinha pesquisado tudo sobre o assunto, mas sequer sabia que aquela era uma possibilidade. Também achava que tinha lido o suficiente sobre gaslighting médico, mas fui pega de surpresa pela forma como todo esse processo me sensibilizou e me fez duvidar de mim mesma. De certa forma, foi um desamparo parecido com ser chamada de dentuça pelos meus colegas de escola.
Quando a médica disse que levava a dor das pacientes a sério, que ia fazer o possível para que eu não sentisse nada e me apresentou um plano detalhado e objetivo para cumprir essa promessa, tive vontade de chorar.
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Enquanto buscava inspiração para concluir esse texto, fui atrás de músicas que falavam sobre dentes.
A mais óbvia, e que dá título a este ensaio, é “Perdendo Dentes”, do Pato Fu. Sou obrigada a discordar da Fernanda Takai e dizer que carrego, sim, e com muito orgulho, os troféus de algumas brigas que ganhei. Essa do DIU é uma delas, que só não me deixa mais feliz porque é absurdo que ainda seja necessário brigar por isso.
Meu troféu tem formato de T, é feito de cobre e plástico, e mora dentro do meu útero. Ele às vezes dói, sangra e enche o saco, mas fico feliz que esteja ali a partir de uma escolha minha, feita nos meus próprios termos, o que permite que eu conduza todo o resto da minha vida da mesma forma, se a gente pensar bem. E eu não quero esquecer disso.
Tenho uma amiga que costuma celebrar o aniversário do seu DIU ano após ano e por causa disso eu também nunca esqueci a data em que fiz a inserção do meu.
Chupa, médico-horroroso-que-disse-que-eu-iria-desmaiar-ser-descredenciada-pelo-plano-de-saúde-e-provavelmente-ficaria-infértil-se-não-fizesse-as-coisas-do-jeito-dele.
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Ao final da cirurgia, pedi para ver meus dentes.
A dentista reagiu com uma certa surpresa, o que, por sua vez, me deixou surpresa: como assim não é óbvio que depois de tudo isso eu queira ver os meus dentes?
A assistente me entregou um copinho de plástico e lá estavam eles, ainda cheios de sangue, menores do que eu imaginava que seriam os tais sisos, ridiculamente menores do que nossos cinco anos de vida compartilhada. Fiquei segurando os dentes nos vinte minutos em que precisei ficar deitada até que a cor do meu rosto voltasse ao normal e segui com eles até a recepção do prédio.
Só percebi que ainda tinha os dentes comigo quando deixei eles caírem ao me levantar para ir embora, para o horror das duas outras pessoas que também estavam naquele hall. Recolhi os meus restos mortais, coloquei-os no bolso e saí do prédio sem fazer contato visual com ninguém, como se estivesse cometendo tráfico de órgãos ou algo assim.
“Acho que roubei os meus dentes”, mandei num grupo de amigas quando cheguei em casa, ao que uma delas respondeu: “amiga, você não pode roubar aquilo que é seu.”
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Se preferir, me pague um café ou deixe um comentário contando sua história.
Em outras notícias
Em nome da transparência, acho importante dizer que eu trabalho no time de marketing de uma clínica de saúde feminina, a Oya Care. Esse texto não foi encomendado, não representa minhas empregadoras e é de minha total responsabilidade. Ao mesmo tempo, as experiências que relatei foram profundamente influenciadas pelos meus anos na Oya e tudo que aprendo todos os dias com as minhas colegas médicas. Não fiz meu procedimento lá porque ainda não morava em São Paulo, mas uso os serviços desde 2022 e recomendo demais. Se você quiser conhecer, o cupom ANNAVITORIA10 dá 10% de desconto nas consultas online e presenciais. Repito: esse texto não é um publieditorial.
Se você mora em Uberlândia (MG) e região e quer uma indicação de ginecologista maravilhosa, me manda uma mensagem que compartilho o contato da mina.
É muito legal trabalhar com uma coisa que a gente gosta e acredita. Sendo assim, naturalmente toda a minha obsessão pelo DIU sem dor virou tema de trabalho — esse post aqui, sobre como o Tiktok ajudou a mudar o protocolo de inserção nos Estados Unidos, é um dos meus favoritos.
Por conta dos cinco anos do início da pandemia, circulou no Bluesky um post em que perguntam qual música mais remete a esse período. Não soube responder de cara porque minha pandemia teve muitas fases (e eu tentei documentá-las nessa playlist), mas hoje a trilha que mais me transporta para aqueles dias medonhos é “I Know Alone”, das HAIM, que abre a edição de hoje. Se você quer algo mais animado, “Relationships”, música nova que elas lançaram semana passada, é um deleite.
Meu pós-operatório foi ótimo do ponto de vista físico e péssimo para o emocional. Fiquei bem deprimida e angustiada e depois de vários dias caiu a ficha que meus dentes me levavam de volta para a pandemia. A Haley Nahman escreveu recentemente sobre o exercício de se render a um sentimento sem a necessidade de intelectualizá-lo ou corrigi-lo, uma sugestão que aceitei e que me ajudou demais nesses dias difíceis.
Acho que já ficou claro que eu penso muito sobre corpos e por isso também gosto muito de saber o que as pessoas pensam quando pensam demais sobre seus próprios corpos. Então claro que me diverti muito com esse episódio do Nóia sobre a manutenção que o corpo exige, que é um publi de óculos dos mais safados mas vale a pena demais porque ouvir o Lázaro Ramos estarrecido ao saber que a Camila e a Maria têm raiva de ter que fazer xixi é impagável.
Esse texto da
sobre sua mandíbula me empoderou para escrever sobre meus dentes. Briguem com ela.
Nesses dias de molho comecei a assistir The Pitt e agora estou obcecada. Procurem saber. Também li “Nós”, da Tamara Klink, que não gostei tanto quanto eu imaginava, e decidi encarar a biografia de mais de 600 páginas do Assis Chateaubriand. A anestesia realmente bateu pra mim.
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui.
Eu realmente gostei muito de escrever esse texto — não só do resultado, mas do processo de escrita. Isso quase nunca acontece e talvez por isso eu tenha criado coragem para me levar um pouco mais a sério e, enfim, começar uma caixinha para quem quiser contribuir com a newsletter. Não tenho a intenção de criar conteúdo pago, mas fica aí a opção caso você queira me pagar um café para compensar a trabalheira que isso dá.
Além de tudo, sério, olha o banner que eu fiz. Ele não merece seus cinco reais?
Não se esqueçam de passar o fio dental e nos vemos na próxima edição. Don’t be a stranger!
Com carinho,
Anna Vitória
Como disse, a extração de um dos dentes foi complicada. Existia o risco de não ser possível fazer o procedimento completo; nesse caso, apenas a coroa (a parte visível do dente) seria retirada, deixando a raiz pra trás. O nome dessa técnica é SEPULTAMENTO DE RAIZ. Juro. Claro que é muito melhor que tenham conseguido tirar o dente inteiro sem intercorrências, mas confesso que fico meio triste por todas as piadas que perdi ao não ter minha raiz sepultada. Haja psicanálise.
Seu texto me tocou profundamente porque tenho cada vez mais certeza que nossas dores em procedimentos ginecológicos não são levadas a sério justamente porque somos mulheres. Da primeira vez, um ginecologista mais velho, que consultava parte das mulheres da minha família, me disse que teria de fazer uma cauterização e, sem me avisar, colocou o ácido para fazer o procedimento. Na mesma hora, meus olhos encheram de lágrimas com a dor totalmente inesperada. Ele viu e disse: "ah, vai chorar? nem dói assim". Da segunda vez, já com outra médica, precisei fazer uma biopsia do útero. Mais uma vez uma dor alucinante (estão retirando UM PEDAÇO DO ÚTERO!) e ela não conseguiu pinçar um tamanho suficiente. Quando foi tentar de novo ela me perguntou se eu queria uma anestesia. Como assim, essa possibilidade EXISTIA?? De verdade, a nossa dor não é levada a sério. Se qualquer um desses procedimentos fossem feitos em homens, os caras teriam direito à anestesia geral e duas semanas de atestado...
Me senti especialmente contemplada nesse texto (belissimamente escrito). Eu também fui uma criança que ~não teria sisos~, até que aos 20 e poucos anos, brotou uma dor horrorosa na minha mandíbula esquerda e lá estava ele, o filho único que não tinha sido prometido. Me senti traída pela minha anatomia, principalmente por ter resistência a anestesia em geral (5 cirurgias na vida e a gente descobre rapidinho que isso é possível), o que fez do procedimento uma experiência muito mais assustadora (depois do máximo possível de anestesia aplicada, eu ainda sentia dor e não tinha o que fazer, o dentista tirou o dente no “cru” mesmo e eu que lutasse com o inchaço e dor depois).