para ler ouvindo fin del mundo - vivimos lejos
Meu namorado disse ano passado, meio brincando mas meio sério, que tinha um certo medo de viajar comigo. Segundo ele, não dá pra saber o que vai acontecer.
Sendo bem honesta, não posso culpá-lo.
Nossa primeira viagem juntos: verão europeu de 2022, minha primeira viagem internacional. Portugal e Espanha, 20 dias, com um Primavera Sound e um resquício pandemia no meio. Uma loucura, um delírio, uma viagem que só se faz num namoro de seis meses com alguém que atravessou a pandemia com você por correspondência e não saiu correndo quando te encontrou ao vivo. Até hoje não acredito que a gente meteu essa, até hoje celebro a versão de mim que decidiu queimar dessa forma todo o dinheiro que havia juntado nos dois anos de isolamento.
Na nossa segunda parada, Lisboa, precisei tirar da mala antes da hora um dos testes de covid que compramos para contrabandear para o Brasil. Era a minha primeira experiência com um desses e a segunda linha apareceu tão rápido que parecia que a amostra nem tinha chegado a encostar no material, como se o ar saído do meu nariz tivesse sido capturado pelo reagente.
Fiquei um pouco aliviada, confesso. Na noite anterior havia passado umas duas horas na banheira com a sensação de estar ardendo em febre. Meu namorado havia saído e eu não tinha certeza se seria capaz de levantar, colocar um pijama e andar sozinha até a cama. Covid-19, àquela altura, era uma explicação relativamente simples, quase óbvia — até meio cômica se lembrarmos das duas semanas anteriores em que minha vida toda girou em torno de não ficar doente para conseguir embarcar — para um mal estar que poderia ser bem mais assustador se fosse qualquer outra coisa.
Eu gosto do efeito dramático de dizer que peguei covid, na Europa, nas primeiras férias de verdade da minha vida adulta, mas a verdade é que, na maior parte do tempo, eu mal me lembro que isso aconteceu. O primeiro dia foi difícil, mas logo passou. Chorei bastante pensando em tudo que iria perder na única cidade fora do continente em que tinha amigos que podia visitar, e também por medo de precisar de ajuda médica tão longe de casa. “Olha pelo lado bom, pelo menos você vai ter a chance de realmente descansar”, foi o que minha mãe disse quando dei a notícia, ao que eu respondi: “não tem graça dormir em euros”, frase que acabou se tornando um bordão entre nós duas.
Contudo, quando percebi que meus sintomas eram administráveis, a coisa ficou mais leve. Dormi muito (em euros), por muitas horas (pelo amor de deus, R$5,60 o câmbio e eu dormindo), até o corpo cansar, algo que até então tinha feito muito pouco no nosso ritmo insano de férias que mesclava festival de música, turismo intensivo e degustação de vinhos. Sozinha no apartamento, também passei muito tempo na banheira ouvindo música, fantasiando uma vida naquele lugar cheio de móveis da Ikea, eletrodomésticos adoráveis e um monte de livros que folheei e não li. Já disse que dormi muito?
Quando não estava dormindo, minha diversão era pedir tudo que desse vontade no delivery, já que eu não gastaria dinheiro com passeios pelos próximos dias.
Ter pego covid pela primeira (e, até onde consta oficialmente, única) vez num contexto tão diferente faz parecer que isso nunca aconteceu, que foi tudo um sonho febril. O que ficou, contudo, foi um rancor enorme de Lisboa, como se ela fosse culpada pela fadiga insuportável que senti subindo suas ladeiras no auge do verão.
Numa dessas, ainda sem saber do diagnóstico, cheguei tão esgotada no nosso apartamento que tirei a roupa, deitei no chão de calcinha e sutiã, e chorei sem parar por um tempão. Diz muito sobre mim que tenha demorado tanto pra aceitar que todo aquele mal estar era culpa de um vírus, um micróbio do caralho, e não da minha incompetência em ser Uma Pessoa que Viaja somada à falta de condicionamento físico após dois anos em casa.
*
Eu tinha todos os motivos do mundo para guardar Buenos Aires, e não Lisboa, na memória como uma lembrança ruim, uma vez que a cidade foi cenário de alguns dos piores momentos da minha vida, esses sim reais demais, impossíveis de esquecer. Ao longo do último ano, contudo, fui capaz de isolar o cenário das experiências ruins para pensar em Buenos Aires sempre com muito carinho. A tristeza, quando batia, era por tudo que não pude viver, pela vontade de não ter ido embora.
Abril de 2023: meu avô foi internado para se recuperar de complicações de uma diverticulite alguns dias antes da nossa pequena temporada na capital argentina. O plano era passar no hospital para dar um beijo nele antes de pegar o avião. Quando já estava prestes a sair de casa, veio a notícia de que ele teve que ser transferido para a UTI, e por conta disso nossa despedida nunca aconteceu.
Os boletins médicos que saíam às 18h descreviam a saúde do meu avô ao mesmo tempo em que ditavam os rumos do meu dia. Se as notícias eram boas, ou pelo menos iguais ou melhores que as anteriores, os dias eram bons; do contrário, tudo desmoronava muito rápido. Às vezes eu fingia não reparar que era hora do boletim sair, como se essa ignorância significasse que nada de ruim estava acontecendo. Em outros momentos, o contraste entre essas duas realidades me atingia de forma insuportável, como a experiência de num momento estar em êxtase ao ver O Abaporu pela primeira vez e, ainda dentro do museu, ser catapultada para a realidade em mais um revés vindo do hospital. Guardo esse solavanco comigo como uma memória sensorial, palpável, uma espécie de galo na cabeça que nunca deixa de pulsar.
Existe toda uma lista de restaurantes que deixei de conhecer, coisas que deixei de comer, porque estava ansiosa demais para engolir qualquer coisa, mas isso não importa porque o laço com a cidade se construiu de outras formas. Acho que já chorei em mais lugares públicos de Buenos Aires do que em Uberlândia, onde nasci e vivi por 30 anos. Sinto que chorar no transporte público de um país estranho faz com que você ganhe uns 10 anos de familiaridade com o local de forma instantânea.
Eu estava num café quando me ligaram para dizer que meu avô havia sido entubado e as perspectivas não eram boas. Parecia que estava vivendo 2020 de novo, quando ele ficou internado com covid por quase dois meses e as perspectivas nunca eram boas. De um jeito inexplicável, tivemos um final feliz. Eu sabia que o raio não cairia duas vezes no mesmo lugar. Saí de lá na hora, o estômago embrulhado, o coração pulsando na garganta, e mesmo em meio a tudo isso ainda lembro de olhar para a banca de frutas e verduras que havia no caminho e pensar: “vou sentir saudade de passar por aqui todos os dias”.
Quis nunca mais ir embora e também antecipei minha volta em alguns dias.
*
Coisas acontecem quando eu saio de casa, independentemente de se tratar ou não de um destino internacional. Meu namorado está certo, dá um pouco de medo de planejar uma viagem do meu lado.
Foi assim ao longo de 2022 e boa parte de 2023. Moléstias ridículas, nada graves mas muito incômodas, como crises alérgicas, meu primeiro episódio de herpes, tombos que se transformaram em tornozelos torcidos e vários hematomas, terçol, refluxo, dor de barriga, intestino preso, infecção urinária, reações inéditas e totalmente fora do esperado a determinadas medicações, e, claro, Covid-19. Tudo isso longe de casa.
Ter passado por esse período de fraquíssima imunidade combinada a muitos quilômetros rodados fez com que minha frasqueira de remédios crescesse de forma significativa. A cada novo problema, uma nova categoria de medicação ganha espaço cativo na minha curadoria. Se antes, ao viajar, eu levava um ou outro comprimido preventivo, agora eu simplesmente levo minha farmácia inteira sempre comigo.
Nunca viajei pra um lugar onde não houvesse farmácia, mas a ideia (ou ilusão) de que tenho tudo que posso precisar me acalma. Além disso, compenso o fato de às vezes ser uma péssima companhia com fornecimento ilimitado de medicações de prescrição livre. Por falta de dipirona ninguém morre perto de mim.
*
Nesses últimos meses, acompanhei as eleições argentinas como se fossem as nossas, senti ódio e desamparo como se fosse 2018. Me tornei o que sempre critiquei: uma brasileira emocionada com a Argentina. Depois de muitos meses pesquisando destinos de férias que nunca pareciam atrativos o suficiente, decidi de parar de lutar contra o destino e bati o martelo: vamos para Buenos Aires.
Setembro de 2024. A primeira viagem internacional da minha mãe e da minha avó. Inflação galopante, crise sem precedentes, uma idosa de 80 anos com fascite plantar. Uma loucura, um delírio. Todas as burocracias centralizadas em mim, que cuidei de passagens, seguros, câmbios e roteiro totalmente sozinha, pela primeira vez na vida. Também seria a primeira visita familiar que receberia na minha casa em São Paulo, de onde saía o avião, o que adicionou doses extras de alegria e ansiedade para a experiência.
Consegui organizar minhas férias para que eu tivesse um fim de semana para me preparar e descansar antes de viajar, o que eu sinceramente achei a coisa mais chique do mundo. Chamei uma faxineira para limpar a casa. Eu, minha mãe e minha avó compramos meias-calças e blusas de cashmere para encarar o frio e eu investi em uma ofensiva de mais de 200 dias no Duolingo para melhorar meu espanhol.
Podem ter certeza: o que tinha para ser feito para que tudo desse certo, eu fiz. E talvez esteja justamente aí o meu erro, na confiança ingênua e pretensiosa de que seria capaz de controlar tudo, como se o que aconteceu de ruim em viagens anteriores só tivesse ocorrido porque eu não estava prestando atenção o suficiente, porque eu não tinha os comprimidos certos na minha bolsinha. Como se a preparação correta fosse capaz de nos manter a salvo, o que é um resumo da minha vida inteira.
Mas aí minha mãe caiu numa febre inexplicável um dia antes de viajar e acabamos perdendo nossos dias em São Paulo. A faxineira teve um imprevisto e desmarcou a diária. Chegando em Buenos Aires, esqueci meu celular no banco de trás do carro e passei a primeira noite na cidade gastando meu parco espanhol de Duolingo para combinar a devolução com o motorista. Em vez do meu sonhado tão sonhado vermute, tomei um remédio para dormir e colei duas Salonpas no ombro (é claro que eu tinha levado Salonpas), porque o susto e o nervosismo da perda do celular me fizeram travar o pescoço.
Alguns dias depois tive uma intoxicação alimentar das bravas depois de jantar no restaurante mais caro do nosso roteiro. Foram 24h passando mal com uma intensidade inédita, um show perdido e o resto da viagem sem conseguir comer algo além de pão, saladas simples e maçã verde. Numa das últimas noites tentei a sorte no balcão de um dos meus bares favoritos, sem nenhum sucesso: mal tinha beliscado e senti a vertigem e a náusea tomarem conta, me obrigando a ir embora pedindo desculpas ao garçom e dizendo que não era pessoal. Fui embora chorando no banco de trás do Cabify, agarrada no celular, me sentindo a pobre coitada das pobre coitadas, achando tudo um ataque para lá de pessoal. Do banheiro consegui ouvir minha avó cochichar para minha mãe: “Será que essa menina tá grávida?”.
Querem saber da maior? O único remédio que eu não levei comigo foi o Vonau.
*
Comecei a escrever esse texto no avião, ainda na viagem de ida. Escrevia um pouco a cada noite, antes de dormir, com o objetivo de fazer um diário dessa experiência. Com a cara enfiada no vaso sanitário no meio da noite, cheguei a pensar que tinha de certa forma invocado aquela intoxicação ao decidir escrever sobre minhas tragédias particulares contando com um final feliz que desse sentido narrativo à coisa toda, sentido esse que eu já tinha escolhido de antemão e redigido muito antes de sair de casa.
Passei muitos dias tentando chegar a alguma conclusão para além do clichê já desgastado que é a constatação de que não controlamos nada - algo que já foi minha especialidade - mas estava frustrada demais até para isso. Até escrevi: “A vida é essa coisa para a qual você se prepara com dois tipos de colírio e três anti alérgicos diferentes quando tudo que você precisa é de um Vonau” e depois apaguei, com raiva e vergonha de mim.
Lembrei daqueles versos da Adélia Prado: “De vez em quando Deus me tira a poesia. / Olho pedra, vejo pedra mesmo. / O mundo, cheio de departamentos, / não é a bola bonita caminhando solta no espaço.”
Então caiu no meu colo uma entrevista com a escritora e jornalista Sarah Jaffe, que acabou de lançar um livro sobre as políticas do luto, misturando sua experiência pessoal com a perda do pai num contexto de grandes lutos coletivos elaborados em movimentos sociais. Ler sobre seu trabalho me deixou com vontade de terminar esse texto. Para Jaffe, o luto e a revolução são similares por se tratarem de rupturas fundamentais no curso das coisas, um ponto de inflexão na história, seja ela pessoal ou política, a partir do qual não é mais possível voltar ao que era antes. No caso da História, essas rupturas abrem espaço para novas construções - e às vezes elas são boas.
Na minha história, os episódios que contei aqui estão interligados por lutos diversos, visíveis e invisíveis, e, de teimosa que sou, olho para eles e me forço a ver só pedra mesmo. Mas graças a essa recusa quase infantil em admitir que essa é mais uma história em que me dou mal depois de tentar controlar tudo, percebi que o que também as amarra é a forma como me mantenho em movimento apesar de saber que certas batalhas já estão perdidas.
Fico pensando no que Walter Benjamin disse sobre revoluções serem a humanidade puxando o freio de emergência. É o que você quer fazer quando o luto aparece: o que quer que você esteja fazendo naquele momento, você precisa puxar o freio. Os levantes após o assassinato de George Floyd pareciam uma grande massa de pessoas tentando puxar o freio. (…) Como a gente pega esses momentos de perdas inimagináveis para construir alguma coisa?
(Sarah Jaffe em entrevista à revista The Baffler, tradução minha)
Escrevo muito sobre minha obsessão por controle e muitas vezes me falta generosidade comigo mesma para enxergar tudo que insisto em fazer, tudo que existe na minha vida que foge do que entendo como seguro. Meu corpo me alerta de formas literais demais que estou em território desconhecido, mas sigo em frente. Descubro todos os dias que não tenho controle de nada e reajo como um ouriço cacheiro ameaçado, mas tenho vivido ainda assim. É uma resistência bonita para quem tem tanto medo da morte (dos outros) e da vida (a minha). Repito: o luto nos força a novas construções e às vezes, milagrosamente, elas são boas.
Talvez o que eu precise aceitar é que, no fim das contas, não há conclusão e sim a compreensão de que essas duas forças, o controle e a liberdade, sempre vão coexistir aqui dentro. A vida não se resolve mesmo em metáforas ou lições fáceis e hoje, ao menos hoje, eu escolho contar essa história olhando para a parte mais bonita dela. Porque eu posso carregar uma frasqueira criminosamente cheia de remédios para todo canto, mas eu não paro.
Como uma florzinha estúpida que cresce nas frestas do asfalto, implorando por um Vonau Flash.
E assim seguimos, à espera do próximo destino.
Em outras notícias
Vocês sabiam que o Vonau Flash é responsável por 90% do que a USP fatura com patentes?;
Vários países proíbem a comercialização de dipirona porque não sabem ler artigos científicos;
Vale a pena ler a entrevista completa com a Sarah Jaffe, que também fala bastante sobre as mortes de Gaza e como o luto é anticapitalista;
A música que abre a newsletter é da banda argentina Fin Del Mundo, que tocou em São Paulo na semana passada e me recebeu de volta na cidade. Aqui tem vídeos incríveis da apresentação delas em Belém, um dia depois.
Estou no Bluesky, me sigam por lá: https://bsky.app/profile/loveology.bsky.social
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui.
Don’t be a stranger!
Com carinho,
Anna Vitória
como uma pessoa que não consegue entrar num carro que vai rodar por mais de uma hora sem tomar um dramin, senti a questão da bolsinha de remédios na alma! e é sempre assim mesmo: o que a gente não traz é o que a gente acaba mais precisando. fazendo o diabo dar uma gargalhada. pelo menos alguém ta rindo!
"Porque eu posso carregar uma frasqueira criminosamente cheia de remédios para todo canto, mas eu não paro." Me emocionei 🥹
Também sou exatamente assim (e também passei mal na volta tragicômica da minha primeira viagem pra congresso científico, que envolveu um ano de preparação e expectativas... E fui salva pela minha nécessaire cheia de remédios hehe)