para ler ouvindo miley cyrus - used to be young
Foi no carnaval de 2020, domingo, no bloco Saia de Chita em São Paulo (SP). Eu estava vestida de Harry Styles/esquerdomacho, uma fantasia pra lá de preguiçosa.
Meu problema com o carnaval é que ele sempre cai no meu inferno astral, o que me tira qualquer disposição de me preparar como se deve. Passo semanas repetindo que não quero saber de carnaval até que chega a sexta-feira por volta de duas horas da tarde, o momento em que costumo decidir que preciso de três fantasias diferentes. Deve ser muito bom ser minha amiga.
Naquele ano, parte do improviso desesperado veio na forma da minha camisa de botão mais extravagante, um pote de glitter laranja — cortesia de um press-kit recebido no ano anterior, bons tempos — e algumas borrifadas de Zara Floral, meu “perfume de adulta” da época.
No dia seguinte, enquanto estava no balcão da padaria vestida de Padre Gato, recebo a mensagem de um tal de Bruno Capelas dizendo que havia me visto de Harry Styles/esquerdomacho no dia anterior, no mesmo Saia de Chita. Ele estava vestido de Stop — o jogo, não a placa. Fiquei puta. Já fazia uns bons anos que nossas vidas virtuais se cruzavam: ele tinha demonstrado algum interesse em curtidas estratégicas e replies no Tuíter, eu considerava a ideia de chamá-lo para uma cerveja a cada investida frustrada em apps de paquera, um grande “talvez” que guardávamos na manga, à espera do momento certo. O carnaval me parecia certo, uma oportunidade totalmente à prova de riscos para dois mocorongos feito nós dois, mas ele não só me viu e não fez nada, como também não se deu ao trabalho de perguntar onde eu estaria no dia seguinte.
O beijo só viria a acontecer em setembro de 2021, em Uberlândia (MG), com álcool gel ainda fresco nas mãos e máscaras arrancadas do rosto num misto de pressa e cautela. “Você tá proibido de romantizar as máscaras”, lembro de dizer, entre um beijo e outro. Hoje, mais de dois anos depois, ainda falamos muito sobre esse fatídico carnaval, o último suspiro antes do fim do mundo, o começo do fim e o começo de tudo, uma parte indelével da nossa mitologia pessoal.
Será que a gente estaria junto agora se tivesse se encontrado naquele bloco? Nós dois concordamos que não.
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A verdade é que lembro de pouca coisa desse carnaval, embora esteja sempre voltando pra ele. Lembro de subir a Pompeia cantando che-gou-a-tur-ma-do-fu-nil, ostentando meu condicionamento físico de moradora de Perdizes para as pessoas que perdiam o fôlego entre o esforço combinado de subir a ladeira e cantar. Lembro que beijei um agrônomo que queria me convencer a ir com ele pra um bloco em Pinheiros no turno da tarde.
Se eu soubesse que depois dele eu passaria mais de um ano sem beijar ninguém, provavelmente teria escolhido coisa melhor.
Para mim, essa memória de carnaval é tão presente porque também é a cena que — ao menos na narrativa que se estabeleceu na minha cabeça — antecede um corte seco da vida como era antes para a vida como é agora.
Meu aniversário de 26 anos caiu na quarta-feira de cinzas, data que também marca o primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil. Eu começaria um curso livre de análise de redes sociais na semana seguinte, segunda-feira, iria para meu primeiro dia de aula do segundo ano do mestrado na quarta, pegaria dois livros na biblioteca e depois passaria dois anos sem pisar na USP, lugar onde só voltei para defender minha dissertação sem nunca ter lido ou devolvido aqueles livros. Saí de São Paulo (SP) no sábado, carregando apenas uma mala de mão, crente que estaria de volta dali no máximo duas semanas.
Foi só agora, pouco antes do carnaval de 2024, quase quatro anos depois, que retirei as últimas malas e caixas que ainda estavam na casa dos meus tios, onde morei de 2019 a março de 2020, o intervalo entre dois carnavais. Já havia buscado a maior parte das minhas tralhas entre o fim de 2021 e o início de 2022, mas sabia que tinha deixado uma coisa ou outra para trás. Na minha cabeça era só uma sacola com uns sapatos esquecidos no fundo do armário, alguns casacos, dois ou três livros. Na prática, enchi uma mala de mais de um metro de altura, além de uma outra menor.
Essa absoluta falta senso, junto à minha demora injustificável para dar cabo dos meus pertences, é prova material da minha dificuldade, consciente e inconsciente, em me desfazer desse laço, a necessidade de manter vivo o pouco que restou daquela vida cuja continuidade fora interrompida em 14 de março de 2020. Dentro dessas malas eu tenho 25 anos para sempre.
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Quando viu que eu não voltaria mais, com todo o cuidado e carinho minha tia reuniu todas as minhas miudezas, coisas que faziam aquela casa ser minha também, e só as mudou de lugar até que eu pudesse pegá-las de volta. Estava tudo exatamente como eu havia deixado quase quatro anos antes, o tempo parado ali como se eu nunca tivesse ido embora.
Muitos cadernos de anotações e bloquinhos, meus incontáveis papeizinhos, o primeiro esboço da minha dissertação de mestrado, os resumos que fiz enquanto estudava para a prova de seleção, além anotações perdidas da época de jornalista. Como eu não tinha criado-mudo, costumava deixar duas caixinhas ao lado da cama com aquilo que precisava ter sempre à mão e lá estavam eles: brincos, anéis, colares que eu tirava antes de dormir, o esmalte brilhante que eu havia comprado para o carnaval, remédios que tomo até hoje (sempre cólica, alergia e dor de cabeça) e uma cartela vazia de fitoterápico calmante.
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Todo mundo muda, mas é raro ter a chance de se encontrar com um resquício tão material, tão íntimo, da pessoa que você foi. Todo mundo muda, mas nem sempre a mudança acontece a partir de uma ruptura tão violenta, tão radical, sem deixar rastros que te mostrem que aquela que você era antes existiu de verdade.
Um dia eu era a estudante fazendo o mestrado dos sonhos, morando na cidade que sempre quis, tinha muitas amigas com quem fechava bares pela madrugada, fazia frilas sem sentido para poder sair de quarta a domingo e ir ao cinema no meio da tarde. Aí eu pisquei e de repente tinha quase 30 anos, de repente aquela pesquisa não tem nada a ver comigo, não me traz orgulho nenhum além do alívio por ter chegado ao fim. De repente, eu, que me considerava solteira crônica, me vi numa relação muito séria, eu, que queria ser professora, larguei a carreira acadêmica e me vi num emprego novo, diferente, cheio de responsabilidades.
Nenhuma dessas coisas é ruim, pelo contrário: são lugares que por muito tempo eu acreditei que não poderia ocupar, são riscos que eu me permiti correr e que provavelmente não teria bancado se não fosse tudo que aconteceu desde os meus 25 anos. Mas tudo isso não muda o fato de ser uma narrativa desconhecida, para a qual ainda me falta repertório. Não muda o fato de eu sentir muita saudade de quem eu era. Eu, que sempre tive muita certeza de quem eu sou, que no fundo julgava quem dizia não se conhecer muito bem, me vi perdida na minha própria personagem, e por isso me agarrei o quanto pude àquela versão anterior.
Fiz isso não de um jeito bonito, poético, mas como alguém que tenta sair andando por aí com a carcaça de um zumbi pesando sobre as costas, minha velha roupa colorida. Sem perceber, alienei muitas pessoas simplesmente por não saber expressar essa confusão interna, esse desencontro, talvez por não ter coragem de olhá-lo de frente, por só conseguir pensar em tudo que perdi. Como resultado, me transformei em uma pessoa que estava sempre indo embora, que não sabia mais como ficar.
No início do meu relacionamento, me perguntava com frequência se meu namorado gostava era de mim ou de quem eu era no Saia de Chita e ele viu de longe usando uma camisa florida. Será que ele me ainda me amaria quando descobrisse que não somos a mesma pessoa? (sim, ufa) Será que as pessoas ainda me acham interessante hoje em dia? (não sei) Será que minhas amigas me perdoam por ter ido embora? (gatilho).
Por muito tempo eu não me perdoei também.
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Por conta de tudo isso, achei que o reencontro com essas memórias dessa época seria difícil, carregado de ressentimentos, seria como aquele choro catártico de Nora Moon ao final de Vidas Passadas. Tenho pensado muito nesse filme, mas fiquei pensando não em amores antigos, e sim numa forma de in-yun — conceito coreano que significa uma espécie de fio continuo que liga as pessoas ao longo de várias vidas, que podem se conectar por um simples roçar de roupas numa rua movimentada — reflexivo, se é que isso faz sentido, o fio que me conecta a todas as versões de mim, as que existiram e as que poderiam existir.
Diante do meu passado materializado, percebi que, visto de perto em sua profunda banalidade, ele não eram mais tão ameaçadores assim, não depois do meu último ano. Diante daquele monumento decadente de mim mesma, senti uma onda de carinho profunda por aquela Anna Vitória e, finalmente, tive certeza absoluta que ela não me dizia respeito mais. Que bom.
Fui correndo chamar o tal de
, que agora é meu namorado e que naquele momento preparava o nosso jantar: “vem ver o cheiro que eu tinha quando você não me chamou pra sair”, disse, resgatando aquela troça antiga das nossas vidas passadas, e entreguei pra ele a tampa do perfume que eu usava na época, agora um vidro vazio e seco. Segundo o site Fragrantica, Zara Floral é “um perfume Floral Verde Feminino. As notas de topo são: Limão, Mandarina e Pêssego. As notas de coração são: Jasmim e Rosa. As notas de fundo são: Baunilha, Patchouli, Âmbar, Almíscar e Vetiver.”A vida não faz sentido narrativo, eu sei, mas não é doido pensar que agora nem esse perfume existe mais?
Por um bom tempo eu coloquei na conta dos meus lutos específicos essa névoa que embaçou a minha vida nos últimos anos, mas a verdade é que todos eles estavam afogados num luto maior, dessa vida perdida que eu nunca me permiti sentir e sofrer. Eu demorei a enxergá-lo porque ele era tudo que eu via, como naquele texto do David Foster Wallace: “as realidades mais óbvias, onipresentes e fundamentais são com frequência as mais difíceis de ver e conversar a respeitos.”
Tudo isso é água e acho que estou tão monotemática nos últimos meses, recontando incansavelmente episódios dessa mesma história, porque finalmente consegui colocar a cabeça pra fora.
Declarada como uma frase, é claro, isso é só um lugar-comum banal — mas o fato é que, nas trincheiras diárias da existência adulta, lugares-comuns banais podem ter importância de vida ou morte.
David Foster Wallace - Isto é água
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Segunda-feira passada foi meu aniversário de 30 anos e por mais que eu tenha passado os últimos dias tomada por inseguranças quase infantis de quem tateia uma nova vida como uma criança que descobre que pode andar sobre duas pernas, em vez de me entregar ao clichê de assistir De Repente 30 idealizando tempos mais simples, só para chorar ao som de “Vienna” me sentindo uma pobre coitada, na véspera do meu aniversário dei play em Vidas Passadas.
O que ele me mostrou foi muito mais valioso: olhar para trás é tentador, às vezes irresistível, mas voltar atrás é trair nosso caminho.
Parabéns pra mim. ✨
A quem interessar possa, meu perfume do momento é o Époque Tropical, da Granado, “um perfume Cítrico Aromático Compartilhável. As notas de topo são: Cajú e Mandarina. As notas de coração são: Rosa, Magnólia e Gerânio. As notas de fundo são: Sândalo e Madeira Guaiac.”
Hello stranger, como vai você?
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Agradeço, como sempre, às queridas
e , que linkaram meus textos recentemente e fizeram uma galera chegar por aqui nas últimas semanas. Sejam bem-vindes, eu realmente espero ter outro assunto na próxima edição.Caso não tenham visto ainda, fica aí minha dica para assistir Vidas Passadas e também Pobres Criaturas. Se o primeiro me ajudou nesse processo de empacotar e desempacotar o passado, o segundo me encheu de vontade de viver o que vem aí.
Enquanto isso, para não perder o costume, stay beautiful!
Com carinho,
Anna Vitória
Se você escrever um livro eu vou comprar com certeza! Adoro sua escrita!
Não sei se o que eu vou dizer vai melhorar ou piorar sua reflexão, mas recentemente achei minhas paginas favoritadas perdidas e algumas delas eram do seu blog. Fui reler e uma delas era sobre um dia que você foi almoçar em um restaurante vegetariano e não curtiu a experiência e no final jantou um hambúrguer kkkkkkkk