para ler ouvindo wilco - infinite surprise
Num apartamento, às margens do centro da cidade, eu escovava meus dentes numa manhã de novembro quando notei a presença de uma enorme borboleta marrom no espelho. Eu, que tenho medo de tudo que voa, instintivamente saí do banheiro de costas, sem tirar os olhos dela, e fechei a porta como quem acredita que basta esconder o problema para que ele se resolva.
Naquele mesmo dia, mais tarde, meu intrépido namorado tentou usar um pedaço de papel para guiá-la até a janela rumo à liberdade, mas sem muito sucesso. Ela estava desorientada, o que nos fez pensar que estivesse machucada, uma informação que ajudou a amaciar meu desconforto diante daquela nova presença. Durante toda a semana ela permaneceu ali no banheiro, praticamente imóvel, e estabelecemos uma convivência pacífica e sem sustos até o final da minha estadia.
Aqueles oito dias num flat de São Paulo foram a segunda etapa das minhas férias, uma decisão que eu explicava de maneira diferente para cada interlocutor. De forma simplificada, posso dizer que foi uma invenção de moda que serviria como uma espécie de experimento ou treino para a vida morando sozinha. Ou talvez fossem só os dois anos de namoro à distância, intercalando semanas sozinha com semanas de convivência 24h, que me fizeram pensar que passar duas semanas inteiras de férias no quarto-e-sala do meu namorado não fosse lá tão boa ideia. Mas a verdade é que no fundo tudo que eu queria (e precisava) mesmo era passar um tempo sozinha — o que quase não rolou na prática, mas essa é outra história.
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Um dia decidi pesquisar o significado da visita de uma borboleta-bruxa e antes mesmo que a página do Google terminasse de carregar eu já sabia instintivamente que ela trazia uma mensagem de morte.
“Ah pronto”, pensei.
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Em 2023, a morte me perseguiu por todos os cantos.
Não sei bem o que quero dizer com isso, mas é como eu me sinto. E não é só porque foi o ano em que perdi um avô, uma bisavó e meu cachorro. Antes mesmo de eles irem, antes que eu sequer cogitasse a possibilidade que eles pudessem ir todos de uma vez, eu podia sentir os dedos da morte roçarem nas pontas do meu cabelo, o que só reforçava minha certeza de que deveria estar sempre alerta.
Não existe nada de místico ou divinatório nisso, embora chamem de “pensamento mágico” a condição psíquica que nos faz acreditar que certas ações ou pensamentos podem produzir uma espécie de causalidade entre eventos. Experimento esse sintoma numa intensidade que considero leve, mas incansável: é o receio que senti na festa de ano novo em que nos divertimos demais, a angústia que me acompanha sempre que decido formalizar minhas resoluções de ano novo. Em algum lugar, acredito que apostar em um ano bom ou celebrar o bom ano que se passou é convidar um ano ruim para entrar. Se estou aproveitando a vida demais, tenho certeza que vou cair do cavalo, como numa espécie de punição. Dentre outras coisas super normais.
Desde 1º de janeiro de 2023, procuro pelos rastros da morte como se pudesse sentir seu cheiro pelos cantos, num misto de repulsa mas também de fascinação. Meu avô já estava na UTI quando, lá em Buenos Aires, eu disse ao meu namorado que sim, tenho certeza que quero conhecer o cemitério da Recoleta, assim como disse que queria seguir assistindo Succession quando percebemos que determinado episódio mostraria os primeiros minutos após a morte de um grande patriarca.
Toda vez que o telefone tocava eu atendia imaginando o pior, mas sozinha numa livraria de Palermo, decidi comprar Alguien camina sobre tu tumba, uma coleção de relatos de Mariana Enriquez sobre seus passeios em cemitérios. Na hora lembrei que estava lendo Confissões do crematório quando perdi meu outro avô, em 2017, mas segui em frente com a compra mesmo assim, o único livro adquirido na viagem. Ainda não tive coragem de abri-lo, mas ele dorme ao meu lado todos os dias na mesa de cabeceira, esperando sua hora.
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Minha mãe achou que seria uma boa ideia me levar para visitar o cemitério de Tupaciguara (MG) no dia de finados. No começo debochei do convite, já que estava há alguns meses vivendo um episódio de ansiedade complicado, pensando obsessivamente na sobre a morte de tudo e de todos, com medo até de dormir para não acordar com a notícia de que alguém havia morrido. Então minha mãe disse provavelmente a única coisa historicamente capaz de me fazer topar os convites mais absurdos e improváveis: “Vamos, vai ser engraçado.”
Nunca tinha visitado um cemitério em dia de finados e o que pude perceber é que, ao menos em Tupaciguara (MG), esse é um evento de peso social equivalente à exposição de gado que acontece no mês de junho. Era impossível passar por mais de dois túmulos sem que minha avó parasse para conversar com alguma pessoa conhecida, viva ou morta; se não era um conhecido de carne osso, era uma foto na lápide que lhe fazia parar e contar a história daquela pessoa ou família. Minha mãe tinha razão, aquilo era mesmo engraçado.
Quando chegamos no túmulo do meu avô, por exemplo, minha avó fez questão que todo mundo desse sua opinião sobre ele, tipo uma review mesmo, como se a escolha de foto, pedra, frase e flores fosse aquele macarrão servido nos almoços de fins de semana que ela pergunta o tempo inteiro se ficou do nosso agrado. Rimos muito, mais até do que seria apropriado. Depois, no túmulo da minha bisavó, que morreu este ano no dia do seu aniversário de 100 anos, soube que houve até uma enquete num grupo de Whatsapp para a escolha da foto definitiva.
Eu não tinha ido ao enterro, já que meu outro avô estava morrendo ao mesmo tempo (exciting times!), mas aquele encontro não me provocou nenhum pesar ou sentimento negativo. Achei a foto adorável e tudo que pensei ao ver o paralelo entre as datas de nascimento e morte foi “slay, queen”.
Mais tarde, quando fui tomar banho, vi que o passeio no cemitério havia me rendido uma queimadura de sol nos ombros. O dia estava nublado e muito quente, mas ali diante do espelho eu só conseguia pensar que o que tinha me queimado era o vapor dos mortos por baixo daqueles azulejos que refletiam o mormaço do dia.
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Comentei na terapia que apesar da crise recente aquela visita ao cemitério não havia me abalado em nada. Foi então que minha terapeuta disse: “Claro que não, porque não é a morte que te assusta.”
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Talvez a minha terapeuta esteja certa. Se fosse escrever sobre um disco que marcou meu ano, escreveria sobre Desire, I Want To Turn Into You, da Caroline Polachek. Não foi o disco que mais ouvi e nem necessariamente o meu disco favorito, mas sinto que ele representa muito bem a tônica do que foi meu 2023. Desire, I Want To Turn Into You, claro, é um disco sobre morte.
Dos lançamentos do ano, “Infinite Surprise”, do Wilco, música que abre a edição, me causou uma reação física quando tocou nos meus fones pela primeira vez, em especial pela forma como, já no final, Jeff Tweedy diz “It’s good to be alive, it’s good to know we die”. As duas temporadas de The Bear e a temporada final de Succession foram as produções que mais gostei de assistir na televisão, ambas sobre trauma, morte e lutos complicados. Não sei se essas coisas todas me perseguiram ou eu que fui atraída por elas como uma mariposa que busca a luz, mas todos esses encontros pareciam, simultaneamente, um mau agouro e minha única salvação.
Se não é a morte que minha assusta, tenho concluído que toda minha ansiedade reside no pavor que tenho de rupturas, de mudanças, de fins. O fato concreto da morte de quem eu amo é algo que aceito melhor do que boa parte das pessoas, ainda mais nos casos que vivi recentemente — gente muito amada que morreu depois de uma vida longa e cheia, com bastante tempo para se despedir. Mas o conceito da morte, em toda a sua enormidade, foi o que minha cabeça encontrou para materializar esse meu terror que é de outra ordem, uma espécie de medo da vida com suas infinitas transformações.
Segundo a definição de Robert Jay Lifton que aparece em Meus tempos de ansiedade, calhamaço que me acompanha desde 2020, a ansiedade é um “pressentimento decorrente de uma ameaça à vitalidade do self, ou, mais gravemente, da antecipação à fragmentação do self.” (tradução minha). As mortes que presenciei em 2023 me atravessaram de forma violenta também porque representaram encerramentos de grandes ciclos pessoais e familiares. Poderia dizer que minha vida mudou de maneira irreparável depois delas, mas a verdade é que ela já estava mudando há algum tempo e eu é que me recusava a reconhecer e a me incorporar a essa nova realidade, com medo da fragmentação do self que elas poderiam ocasionar. Em minhas piores crises de angústia, sentia como se essa fragmentação fosse acontecer de forma literal, me rasgando em mil pedaços.
Gilberto Gil resume isso de um jeito infinitamente mais bonito: não tenho medo da morte, medo de morrer, sim.
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Se existe algo bom em ver seus maiores temores se tornarem realidade, esse algo é a descoberta, também muito palpável, de que aquilo não vai te matar. A vida vai mudar, e em vários momentos isso vai ser uma merda, mas você não morre. Outra lição importante: nada do que você fizer vai impedir que aquilo que você tanto teme venha a se concretizar, o que significa que talvez, apenas talvez, você possa relaxar. Menina, a diferença que isso faz.
Faz sentido, portanto, que Desire, I Want To Turn Into You seja tanto sobre morte quanto sobre o desejo que Caroline Polachek anuncia logo no título. O álbum é inspirado nas lendas de Circe, uma deusa, uma louca, uma feiticeira da mitologia grega que nutre um enorme fascínio pelos homens, essas criaturas mortais, demasiado mortais. Ela, que não morre nunca, almeja o sentido de uma existência com começo, meio e fim e tudo que a consciência da finitude é capaz de produzir. Basicamente um grande tesão, e eu simplesmente adoro como Caroline Polachek não perde a oportunidade de fazer do seu canto de golfinho-sereia uma alusão ao prazer e, mais especificamente, ao orgasmo, a pequena morte mundana.
Por conta do álbum, decidi ler Circe, de Madeline Miller, que reimagina o encontro de Circe com Odisseu com base nessa premissa. Outro livro que me acompanhou durante o ano foi Todos os homens são mortais, romance de Simone de Beauvoir, que inverte as coisas para contar a história de uma mulher que se apaixona por um homem imortal.
Ao contar sua história, Fosca, o tal sujeito, descreve seu confronto com Beatriz, uma mulher que adivinhou sua condição séculos antes de Régine.
— Quando Antônio mergulhava no lago, quando partia ao assalto à frente da tropa, eu o admirava porque arriscava a vida; você dá sem contar suas riquezas, seu tempo, suas penas, mas tem tantos milhões de vida à sua frente que o que sacrifica nunca é nada. Gostava também de seu orgulho; um homem como todos os outros e escolhe ser ele próprio, é belo; você é um ser excepcional e sabe-o; isso não me comove.
(…)
— Então — disse eu — nada do que faço, nada do que sou tem algum valor a seus olhos porque sou imortal?
— É isso.
Pôs a mão em meu braço.
— Escute essa mulher cantando. Seria o canto tão comovente se ela não devesse morrer?
— É então uma maldição? — indaguei.
(…)
— Eu a amo. Eu a amo como um homem que ama uma mulher.
— Não. Perdoe-me.
— Por quê?
— Seu corpo me amedronta, é de outra espécie.
— É de carne como o seu.
— Não. Não compreende? Não posso suportar a carícia de mãos que nunca apodrecerão.
Até os últimos suspiros de 2023, acreditava que o que havia me atraído tanto para essas obras era a urgência que sentia em processar o fato dolorido de que pessoas (e animais) que amo estavam morrendo e que seria assim até o fim dos meus próprios dias. Mas agora vejo que o que eles realmente me mostraram, e o que eu mais precisava aprender, é a importância da vida que se constrói não apesar da morte, mas por causa dela, através dela. A morte dá sentido à vida e a vida que criamos nos faz suportar a morte.
Se tem algo que me ajudou a atravessar tantos lutos, foi ver quanta vida existe ao meu redor, quanta vida ainda tenho para viver. Enquanto estiver aqui, aqueles que se foram permanecem vivos dentro de mim. Parece um motivo bom o suficiente para continuar e fazer o melhor que posso dos meus próprios dias numerados. It’s good to be alive, it’s good to know we die.
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Você deve estar pensando que é muito autocentrado da minha parte transformar o passamento alheio em algo sobre mim, e é mesmo, mas essa é a única perspectiva que importa nesta newsletter, a única que posso contar. Nas últimas semanas, tenho pensado muito sobre qual perspectiva é essa.
Ao relaxar as mãos e deixar ir tantas coisas que vim segurando forte perto de mim por medo da mudança, em especial desde a pandemia, me vi um pouco desnorteada. Acho que, pela primeira vez na vida, não sei direito quem eu sou e quem eu quero ser. Olho para as minhas roupas e nenhuma delas faz sentido, mas também não sei o que colocar no lugar. Estou animada para fazer 30 anos em fevereiro, mas não tenho a menor ideia do que espero para mim nessa nova década, não sei direito quem é, o que faz e do que gosta a pessoa que eu gostaria de ser, algo que sempre soube muito bem e sempre tive muito nítido na mente, como uma personagem de série de TV.
Percebi que minha dificuldade de escrever nos últimos anos vem também da dificuldade que tenho sentido de me imaginar, de me autorizar a ser quem eu sou agora, e não um conceito ultrapassado que elaborei quando tinha 14 ou 15 anos. Mas depois de muito tempo angustiada com essa falta de repertório pessoal, comecei o ano empolgada com a possibilidade da descoberta.
Pela primeira vez em muito, muito tempo, a vida não me assusta.
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Enquanto fazia a última ronda pelo apartamento perdido na cidade para ver se não tinha deixado nada para trás, não encontrei mais minha amiga mariposa-marrom.
Assim como qualquer metáfora de morte, a visita de uma borboleta-bruxa (que tecnicamente não é uma borboleta e sim uma mariposa), segundo os muitos sites que consultei, também pode ser interpretada como um chamado à transformação.
Ah pronto.
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Espero que vocês tenham tido um bom fim de ano, com descanso, abraços e boas vibes para esse 2024 que se inicia. Obrigada mesmo por estarem comigo por mais um ano, aturando minhas bobajadas inconstantes e muito mais pessoais do que seria de bom tom compartilhar nessa terra de ninguém que é a internet.
Provavelmente não vou fazer uma lista de favoritos do ano, mas nos últimos meses comecei a organizar uma playlist para simbolizar esse estranho aqui e agora que estou vivendo. Tem tudo que mais ouvi em 2023 e nos anos anteriores e, apesar de ser muito pessoal e específica, acho que tá bem legal.
Vamos ver o que vem por aí, não dá para saber ainda. Mas, como de costume, stay beautiful!
Com carinho,
Anna Vitória
Nada mais bonito do que a possibilidade, como sempre diz o Gui Poulain
no tarot, a carta da morte está mais relacionada com transformação, com final de ciclos e recomeços. claro que a morte da vida real tem um significado muito mais doloroso, mas gosto dessa ressignificação da morte, de olhar pra ela e ver como podemos resgatar coisas lindas de tudo, inclusive do que (ou quem) se foi. adorei o texto!