Coisas que eu fiz
Resoluções de ano novo, como renovar sua gaveta de calcinhas e por que a culpa nem sempre é do capitalismo (mas na maioria das vezes é)
para ler ouvindo chairlift - bruises
Hello stranger, como vai você?
Fazia muito tempo que eu não ia a uma festa de ano novo.
Até 2020, todos os réveillons da minha vida tinham sido passados em família, na casa dos meus avós. Eu e meu primo Pedro costumávamos nos jogar na piscina na hora da virada quando éramos crianças e meus primos mais novos bem que tentaram reviver a tradição, mas não deu muito certo. De repente não parecia mais uma boa ideia começar o ano dormindo de cabelo molhado.
Depois veio a fase dos jogos de mímica, da batalha de DJs, de sempre assistir um filme de terror que ninguém viu na tarde do dia 31, e acho que todas essas coisas só aconteceram mesmo por duas ou três vezes — que nem sei se foram consecutivas —, tradições completamente arruinadas a partir do momento que decidimos chamá-las de tradição, como diagnosticou Helena Fitzgerald no seu texto sobre o dia de Ação de Graças: “as pessoas precisam acreditar na festa para que ela aconteça, mas se você disser que as pessoas precisam acreditar na festa você estraga a festa na hora e ninguém mais acredita nela.”
Todo ano cantamos “Adeus Ano Velho” à meia noite e minha avó tira as taças bonitas da cristaleira para brindarmos com espumante, em meio a abraços e lágrimas que insistem em escapulir toda vez. Esses réveillons são a minha vida inteira, porém não posso negar que ele é uma festa que todo mundo quer muito acreditar, mas ninguém consegue, não exatamente. Por isso, quando minha tia anunciou que tinha comprado balões, taças temáticas e toda uma parafernália de festa para o ano novo, fiquei um pouco apreensiva.
Ao mesmo tempo, depois dos últimos dois anos, parecia errado não fazer um esforço para celebrar.
No réveillon de 2020, a única coisa que consegui desejar foi a vacina.
Em 2021, como compartilhei na última edição, minha meta era terminar minha dissertação de mestrado e sobreviver à defesa. Como desejo, pedi que ninguém morresse. Normal.
No final de 2022, me senti autorizada a pensar em coisas comezinhas novamente. Para ser sincera, resoluções de ano novo me causam uma ansiedade tremenda — não exatamente por essa urgência neoliberal de se aperfeiçoar constantemente, mas porque o exercício de pensar sobre o que quero, me permitir querer e elaborar isso na forma de uma frase (ainda que ela só circule na minha cabeça), já é um bocado desafiador. Quem não quer nada, não perde nada, certo?
Ao menos é isso que minha cabecinha carcomida de minhoca ainda repete quando estou distraída.
Assim como aceitei os balões de festa comprados pela minha tia e até procurei um tutorial no Youtube para aprender a encher aqueles balões em formato de número sem precisar de uma bombinha (é simples: use um canudinho!), me forcei a abrir uma nota no celular, pensar em resoluções e escrever aquilo que me dava mais medo, como uma espécie de compromisso comigo mesma. Outros objetivos foram surgindo a partir daí, até que de repente tinha uma lista.
Voltar para São Paulo de vez
Tirar os sisos
Aprender a fazer meu imposto de renda
Fazer malas melhores
Voltar a fazer yoga com alguma regularidade ou encontrar alguma outra atividade física que eu goste
Ler 13 livros
Assinar a cesta de orgânicos do MST local e parar de comprar verdura no mercado
Comprar uma capa de chuva/corta vento definitiva
Imprimir as fotos da Europa e fazer um álbum
Ter alguma regularidade com a newsletter
Dentre outras coisas.
Assim como boa parte das pessoas do mesmo recorte demográfico que eu, fui muito impactada1 por aquela reportagem (que virou livro!) de 2019 da Anne Helen Petersen sobre o burnout dos millenials e como isso tem mais a ver com nosso contexto de colapso social, político, ambiental e econômico do que, sei lá, preguiça e inaptidão para a vida. O texto mexeu demais comigo na época, sobretudo por ter articulado de maneira bem embasada uma angústia que eu sentia há tempos e que era tema de conversas em quase todas as minhas rodas de amigos que também cresceram e formaram suas expectativas de futuro tendo como referência um país que não existia mais quando saímos da faculdade.
Mais importante do que dar vocabulário para algo que vivíamos e sentíamos no nosso dia a dia, ele deu validação para a inoperância que sentíamos diante da nossa recém conquistada vida adulta, tão diferente do que imaginávamos aos 15 anos, e a desesperança que sentíamos em relação ao futuro. Eu tinha acabado de mudar minha vida para fazer um mestrado de humanas no primeiro ano do governo Bolsonaro e precisava muito que alguém me dissesse que a culpa não era minha se desse tudo errado.
Ainda concordo com a tese central do texto, mas de 2019 até aqui fui aprofundando as reflexões sobre o tema e hoje vejo as coisas de uma forma mais ou menos diferente, principalmente no que diz respeito ao impacto disso tudo naquelas coisas comezinhas. Primeiro eu vivi uma pandemia, depois eu li Psicopolítica e depois eu fiquei um pouco mais adulta, ao menos o suficiente para que aquelas obrigações com a vida prática e doméstica deixassem de ser uma novidade digna de hashtag (#adulting) para ser, de fato, o jeito que as coisas são, o tecido da nossa vida. Viver é louça.
E aí, enfim, eu li um texto que parece juntar essas perspectivas e experiências de uma maneira mais articulada do que eu jamais teria tempo ou paciência de fazer por minha conta: “Failure to cope ‘under capitalism’”. Tá em inglês, faz meses que li e lembro que na época nem concordei com tudo, mas vou usar aqui a parte que faz sentido pro argumento que quero construir porque é assim que a indústria dos ensaios pessoais funciona na internet. O argumento que esse texto constrói, e que eu lembrei enquanto pensava sobre resoluções de ano novo, é que as tarefas do dia a dia são tão difíceis para nós, millennials de classe média e ex-crianças prodígio, porque elas nunca estão exatamente prontas e concluídas e perfeitas — em outras palavras, dignas de gerar algum tipo de satisfação ou validação social como aquelas que o discurso capitalista nos ensina que é o único tipo que vale.
Diferente da educação formal e do trabalho, [nosso dia a dia] não oferece nenhum destino meritocrático socialmente óbvio. Os momentos em que, assim como a fermentação natural, ele se manifesta são majoritariamente invisíveis — na cozinha, nas caminhadas, nas conversas com amigos, com vizinhos, no registro para doação de sangue. Não são ações quantificáveis, que podemos colocar num currículo. Elas nunca estão “finalizadas”. O progresso que fazemos é uma espiral e não uma linha reta; são círculos estáveis, lentos, que passam por nossos pontos fracos, dois passos para frente e um para trás para construir hábitos [a partir dos quais] só em retrospecto conseguimos enxergar como a vida está diferente do que um dia já foi. E ninguém vai dizer que você fez tudo certo. Mas essa não é uma condição de vida sob o capitalismo, é a vida como ela é. É apenas uma triste ironia que o medo da vida seja produzido a partir de imperativos de classe dentro do capitalismo, [ao mesmo tempo em que] o impulso de restringi-la a um problema do capitalismo é, em si, parte da mesma rejeição medrosa diante do trabalho que é viver.
Clare Coffey, 2022, tradução e grifos meus.
A gente escreve resoluções de ano novo em busca de uma vida melhor e se surpreende quando investimos nessas tarefas e descobrimos que elas não mudam nossa vida da noite para o dia. No entanto, na maior parte das vezes, isso não significa que fracassamos, mas simplesmente que esse é um trabalho contínuo, que nunca vai estar completo mesmo e_tá_tudo_bem. O capitalismo só é culpado em nos fazer acreditar que todo hábito precisa se manifestar como uma jornada do herói bem sucedida para ser válido e ainda temos o azar enorme de viver numa época em que as mídias sociais ocuparam uma posição de atalho para essa validação, seja ela real ou ilusória. Mas não precisa ser assim.
É como eu sempre digo: o Processo é tudo que existe.
Enquanto pensava sobre tudo isso, lembrei não das minhas resoluções de ano novo atuais, mas daquelas que escrevi ano após ano, anos atrás, e mudaram minha vida para melhor, ainda que não de um jeito que renderia um texto motivacional. Justamente por isso, achei que seria interessante dividir algumas delas por aqui: são ações incompletas e imperfeitas que jamais caberiam num reels, mas não muda o fato de que fizeram meu dia a dia um pouquinho melhor.
Além de tudo, mais útil do que saber o que os outros pretendem fazer das suas vidas, é saber o que eles já fizeram e deu mais ou menos certo. Eis as minhas contribuições:
Cuidar melhor da minha saúde: quem diria! Depois de anos sem pisar num consultório médico e tendo crises de ansiedade enormes sempre que precisava fazer um hemograma, virei a pessoa que faz check-up todo ano e tá sempre com os exames em dia. Faço isso porque não como carne e preciso saber se o que minha alimentação tem sido suficiente para manter saudável e também porque faço tratamento psiquiátrico e é importante entender o que é coisa da minha cabeça perturbada e o que é só falta de ferro e vitamina D no organismo. Me organizar para ter um plano de saúde, fazer o dito tratamento psiquiátrico e trabalhar numa startup de saúde fizeram e fazem uma diferença enorme na manutenção desse cuidado.
Ter um bar em casa: é difícil porque bebida é caro mesmo (mas beber bem fora de casa é muito mais) e a gente nunca sabe por onde começar, mas fica mais fácil quando você simplesmente começa. Eu comecei com uma garrafa de Campari comprada naquela semana de março de 2020 que o mundo acabou e fui a partir daí. Entender o que você gosta e investir nisso também é um bom começo: meu primeiro investimento real foi numa garrafa de bourbon e num vidrinho de angostura para fazer meu drink favorito, o old fashioned. Hoje, quase três anos depois, escrevo essa newsletter bebendo um New York Sour direto da minha horta. Caso você se interesse, Bruno Capelas, também conhecido como Sr. Loveology, fez um guia ótimo para quem tá começando.
Só vestir o que me traz alegria: sim, em 2017 eu li o livro da Marie Kondo e apliquei seu método no meu armário. Parece meio bocó quando você lê o livro ou diz isso em voz alta para os seus amigos, mas funciona que é uma maravilha. Aboli a hierarquia entre “roupas de sair” e “roupas do dia a dia” e trouxe para o cotidiano as roupas bonitas que amo. Aos poucos, parei de usar calça jeans e hoje uso botas em todas as estações. É um processo contínuo e eterno, e nesse janeiro de 23, às portas do meu retorno de Saturno, fiz mais uma grande limpa no armário para mandar embora tudo que não se parece mais comigo e não me faz mais feliz.
Só ter calcinhas bonitas (sutiãs também): minha resolução favorita e que eu recomendo a todas as minhas amigas. Um dia me vi usando uma calcinha bege horrorosa com mais de dez anos e decidi que bastava. Joguei direto no lixo e decidi que sempre que visse uma calcinha feia que me desse vontade de morrer eu ia eliminá-la imediatamente da gaveta. Sempre que aparecia uma promoção bacana numa loja legal, eu ia lá e comprava umas 3 calcinhas novas. Foram uns 3 anos até que renovasse a gaveta por completo. Também coloquei as lingeries bonitas pra jogo no dia a dia e fui crescendo a coleção, e até hoje mantenho a regra de que sempre que chega uma calcinha nova, uma velha deve sair. Nunca mais fui triste. Não por isso.
A famigerada rotina de skincare: assim como o bar em casa, é uma coisa difícil de implementar porque ninguém sabe bem por onde começar e tudo parece caro demais. Minha jornada começou lá em 2018, com pouquíssimo dinheiro e um compromisso: conseguir lavar, hidratar o rosto e passar protetor solar todos os dias. Foi a regra que impus para mim mesma, a que me liberaria, no futuro, para testar produtos novos. Fui crescendo a rotina aos poucos a partir do que ia aprendendo, o que ia testando, o que dava certo. Ainda hoje tenho a regra de usar todos os produtos até o final, inserir as novidades no dia a dia e só comprar algo novo depois que algum produto acabar. Mas também me permito um mimo, que é uma bonibox por ano, porque também sou filha de deus. Às vezes penso em fazer um Tiktok para falar sobre isso, mas acho que ninguém se interessa por pessoas que usam seus produtos até o final.
Parar de comer carne: meu case de sucesso pessoal favorito, não só porque é algo realmente muito importante para mim, mas também porque foi uma mudança conduzida com o cuidado, respeito e compaixão que espero um dia ter com tudo na vida. Acho que comecei a cortar a carne em março de 2019, mas foi só em julho que disse em voz alta pela primeira vez que era vegetariana. Ano passado comecei a sentir muita falta de algumas coisas e decidi comigo mesma que tava liberado comer carne na Europa, se desse vontade. Acho que tudo que eu precisava era me liberar para essa concessão, porque cheguei lá e não tive vontade de experimentar nada, e foi como renovar votos com a minha escolha e entender por que era algo importante e que fazia tanto sentido pra mim2. Saber que posso voltar atrás a qualquer momento é tão importante quanto a motivação para seguir em frente.
Ao contrário de todas as minhas expectativas, a festa de ano novo foi ótima. Já faz alguns anos que meu tio médico ganhou uma garrafa de vodka Belvedere de 3 litros e decidimos que esse era o momento de inaugurá-la. Sempre achei vodka uma bebida meio cafona e sem graça (nunca superei o ranço da graduação), mas a bebida foi crescendo para mim nesses últimos anos graças aos cosmopolitans da vida e ao bom e velho caju amigo. Virei o ano bebendo vodka com suco de laranja e muito gelo e, surpreendentemente, foi a bebida perfeita.
Não teve batalha de DJs, mas assumi o controle do Spotify da festa e convenci todo mundo a dizer que fui a campeã honorária do ano3. Por conta da posse do Lula e tudo que essa virada representava, passamos toda a primeira parte da festa discutindo qual seria a música ideal para a virada. Concordamos que não dava para ser nada muito rancoroso, porque isso não atrai bons agouros, mas também precisávamos afrontar os bolsonaristas do condomínio dos meus tios. “Vou Festejar” e “Apesar de Você”, as escolhas mais óbvias, estavam, portanto, descartadas. Meu voto era que fosse “Que Tal um Samba?”, do Chico Buarque, mas reconheço que falta nela um certo vigor, ou “Principia”, do Emicida, mas minha família não é fã de rap.
No fim das contas, 2023 chegou quando estávamos no meio de uma discussão muito boa que ninguém lembra mais sobre o que era, mas que mobilizou o suficiente para que esquecêssemos da playlist e partíssemos para o abraço de uma vez. Enquanto isso, a canção “Cigana”, do Raça Negra, tocava no som.
No final do ano venho aqui contar para vocês o que isso fez com meu ano.
Links, links, links
O Repete Roupa foi o blog que mais gostei de ler em 2022 e ler a lista de compras anual da Mel é sempre uma delícia;
Sobre processos eternos e projetos imperfeitos, sempre uma alegria acompanhar a restauração da casa da Ariel Bissett. No fim do ano ela fez um vídeo com todas as mudanças que fez na casa ao longo de 2022.
Para pensar em mudar o mundo com os dois pés fincados no chão e se libertar da culpa de não conseguir fazer isso sozinha, da noite para o dia, esse texto da Cristal sobre não viver mais uma vida lixo zero;
Disco da vez
Welcome To My Island (Caroline Polachek, 2022): Basicamente a única coisa que ouvi em janeiro, esse EP é um teaser do próximo álbum da Caroline Polachek, que vai ser lançado mês que vem. Ano passado vi dois shows de nossa amiga Caroline Bolachinha e, no ano que mais vi shows da minha vida, essas duas noites são as que mais retornam para a minha memória. Enquanto procrastinava a escrita dessa newsletter, por exemplo, assisti todos os clipes da nova era na TV da sala e até senti falta dos fins de semana pandêmicos em que ia para casa do meu melhor amigo ver clipes no projetor e beber vinho. É por isso, inclusive, que algumas cenas ilustram essa edição.
A situação estava tão periclitante que decidi ouvir Chairlift, antigo duo do qual ela fazia parte e só indie véio que frequentou baladas horríveis entre 2008 - 2016 vai lembrar. Caroline Bolachinha serve conceito de Björk com a estranheza (e os agudos) de Kate Bush mas num tempero deliciosamente pop baludo, uma mistura que jamais imaginaria que definiria uma das minhas atuais cantoras favoritas, mas aqui estamos.
Andei recebendo algumas respostas muito fofas de pessoas contando que descobriram artistas bacanas a partir das indicações que costumava fazer, então decidi voltar com essa seção quando tiver algo legal pra dizer.
Ufa, agora acabou!
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Estava falando sério naquelas resoluções: quero muito voltar a escrever regularmente e tenho me esforçado para ressignificar a prática de escrever online para ver se destravo de vez essa brincadeira. Espero que gostem de acompanhar, mesmo que eu não consiga.
Ainda estamos em janeiro então posso desejar novamente um feliz 2023. E, como sempre, stay beautiful!
Com carinho,
Anna Vitória
Escrevi sobre isso na época, na minha antiga newsletter: Humans of late capitalism;
Dois textos que me ajudaram muito a pensar sobre isso: quando a Luisa decidiu parar de dizer que é vegetariana e o desabafo da Carolina Dini, “Ex-vegana é gente?”;
Dois centavos de sabedoria das pistas de dança: para se consagrar nas picapes, principalmente no verão, dê um play sincero em Timbalada - Água Mineral e veja a festa ir abaixo;