Ribs
Lugares inusitados que dormi em 2022 e uma coletânea de selfies da mulher exausta que vos escreve
para ler ouvindo él mató - yoni b
Hello stranger, como vai você?
Não fiquei uma semana inteira em casa no mês de dezembro.
Voei para São Paulo (SP) no dia 03 de dezembro e de lá dormi uma noite em São Caetano do Sul (SP) antes de pegar um voo para o Rio de Janeiro (RJ). Quem me levou de Uber até o aeroporto de Congonhas foi uma motorista que estava muito a fim de bater papo: me perguntou de onde eu era, o que fazia em São Caetano, o que ia fazer no Rio, como conheci meu namorado, com o que eu trabalhava, o que estudei no mestrado, quais eram meus planos para o carnaval.
Ao mesmo tempo, me contou que conheceu seu marido numa fila do Hopi Hari, que casou com ele aos 18 anos e ninguém acreditou que fosse durar até hoje. Julia, a motorista, disse que andar de Uber estava pagando mais que os escritórios de advocacia em que trabalhou antes, reclamou que não aguentava mais a família pegando no seu pé para ter filho logo e terminou dizendo que queria fazer uma pós-graduação em 2023. Ao me deixar no portão de embarque, Julia agradeceu pelo papo e disse que torceria para que fizesse sol no Rio de Janeiro.
Foram seis dias no Rio (e um final de semana de sol - valeu, Julia!) e de lá voltei para casa com a missão de encarar a última semana de trabalho do ano. Na sequência, saí de férias com minha mãe e minha avó no dia 19 de dezembro para passar o Natal em Arraial D’Ajuda (BA) e voltei para casa com tempo suficiente apenas para tirar as roupas molhadas da mala, lavar tudo e fazer as malas de novo, dessa vez para passar cerca de 7 horas em uma viagem de carro rumo ao ano novo em Presidente Prudente, no interior de São Paulo. Achei que tantas viagens me ensinariam a fazer malas melhores, mas cheguei ao final de 2022 carregando cinco nécessaires comigo, além da bolsa de remédios.
Lembrando da conversa com Julia, percebi que nenhuma das perguntas que ela me fez tinha uma resposta simples, ou pelo menos próxima daquilo que a maioria das pessoas considera normal ou óbvio levando em conta a vida dos meus pais, por exemplo, ou o lugar de onde venho. Na maior parte do tempo acho minha vida muito normal, até monótona às vezes, mas, conversando com uma estranha naquela viagem de quase 50 minutos até o aeroporto, percebi que consegui o que mais desejava quando era adolescente, que é uma vida independente e interessante, e resolvi me dar um certo crédito por isso para quem sabe aproveitá-la melhor.
2022 foi um ano extremamente generoso comigo. A vitória do Lula e as vacinas já seriam suficientes para colocá-lo léguas a frente de seus antecessores, mas consegui aquilo que desejei com mais força às 23h59 do dia 31 de dezembro de 2021 - terminar meu mestrado e defendê-lo com alguma dignidade - e muito mais. Saí do país pela primeira vez, vi minha banda favorita na Espanha, fui promovida no trabalho, realizei o sonho de cobrir um festival na Europa, vi uma das minhas melhores amigas se casar, vi meu namorado casar seus melhores amigos, vi Gal Costa, vi Skank, vi o Nick Cave, vi quase 30 shows, apresentei a USP para os meus pais. E fiz isso tudo profundamente apaixonada, aprendendo diariamente não só a amar e ser amada, mas a fazer tudo isso numa relação interestadual, desafiando 600km de distância todos os dias.
Um desses inúmeros shows foi o da Lorde no Primavera Sound, em São Paulo (SP). Confesso que não tinha expectativa nenhuma para ele, mas já na terceira música, “Ribs”, comecei a chorar e não parei mais. Quatro anos antes, em 2018, eu também estava chorando copiosamente em um show da Lorde e aconteceu tanta coisa nesse intervalo, coisas incríveis e coisas terríveis, que não sabia se aquele choro era uma catarse pela pessoa que eu era naquele momento ou se ainda estava processando o lugar que estava lá em 2018: de coração partido, prestes a entrar no mestrado, mudar de cidade e viver uma pandemia, tudo isso no país que acabara de eleger o menor homem do mundo. Eu sentia que minha vida estava começando ali e mal sabia que dali pouco tempo ia achar que tudo tinha acabado, só para me ver de novo cantando os mesmos versos anos depois ao lado de um monte de gente, feliz, grata e aterrorizada por viver novamente.
Elencando as coisas dessa forma, lembro de uma pergunta que meu pai me fez anos atrás e que meus amigos adoram repetir como piada interna: “Filha, você acha que não está se divertindo um pouco demais?”.
Conto essa história dando risada, mas a verdade é que essa pergunta me assombra todos os dias. Acho que qualquer pessoa - ou pelo menos aquelas que, assim como eu, são diagnosticadas com um transtorno de ansiedade - que ousou ir além da sua origem vira e mexe se debate com essa questão, ainda que você tenha sido criada exatamente para isso, como foi o meu caso. Pelo menos é isso que sempre escutei. Se você chorou lendo o terceiro volume da Tetralogia Napolitana você sabe bem do que estou falando, ou talvez você tenha se identificado demais com Lady Bird, ou pode ser que sua neurose de estimação seja aquela primeira cena do segundo episódio de The Bear, em que o Carmy aparece montando pratos finíssimos enquanto um chef no seu ombro diz que ele nunca vai ser bom o suficiente.
Sempre acho que estou me divertindo demais, que vou perder tudo que tenho, que fui muito além do que minhas pernas são capazes de correr e que eventualmente, a qualquer momento, elas vão me trair. Tento compensar isso exigindo de mim mesma lisura e perfeição em tudo que faço, só para me punir depois quando inevitavelmente falho, como se fosse o preço a se pagar por viver, estar viva e ocupar espaço no mundo. Mas os últimos anos me ensinaram que a vida é mesmo urgente e acho que a consciência aguda da fragilidade de tudo me empurrou pra frente e me fez viver, viver pra caralho, viver sem achar que a vida plena que desejo para mim só pode acontecer quando ou se tudo estiver no seu devido lugar. Quer dizer, mais ou menos.
Confesso sem orgulho que muitas vezes tentei resistir, de formas conscientes e inconscientes, mas a vida foi lá e me atropelou para valer, e dessa vez foi para o bem.
Contudo, como era de se esperar, toda essa vida me exauriu completamente1. É meio óbvio que viver tanta coisa de fato consome um pedaço grande da vida da gente. Para dar conta de tanto, trabalhei igual uma doida, fui uma amiga ausente, comi mal, parei de fazer yoga regularmente e abri mão da pouca disciplina que tinha com certos hábitos que estruturavam minha rotina. Não por acaso, foi o ano em que mais fiquei doente e também o ano em que deixei quase todas as minhas plantas morrerem (inclusive Jefferson, o manjericão).
Acho que dormi em todos os modais de transporte em que estive nesses últimos 12 meses e olha que foram muitos. Atravessei o oceano mas não vi nada pela janela porque estava dormindo, e também perdi a chance de ver a costa de Portugal que meu namorado português tanto queria me mostrar porque o avião mal tinha decolado e eu já estava dormindo. Dormi em pé no trem de Lisboa para Sintra e dormi no banco de trás de todos os carros em que estive por mais de 20 minutos. Dormi na arquibancada do Anhembi durante o show do Los Planetas, vi deitada um show do Dinosaur Jr e dormi inúmeras vezes com o celular na mão, enquanto escrevia uma mensagem. Quase perdi a vista mais incrível da nossa viagem a Madri2 porque estava cansada demais e queria ir para casa. Em 2022, não vi um filme inteiro sem dormir no meio.
Relendo um dos textos que linkei aqui, escrito no fim de 2019, percebi que fiz essa mesma piada sobre os filmes num outro textão de fim de ano. Faz ANOS que estou cansada e desconfio que o problema seja eu, não a vida, e que o cansaço é mais sintoma do que apenas consequência. Como pessoa diagnosticada com um transtorno de ansiedade, estou acostumada a sofrer por antecipação, mas comecei a me dar conta de que a minha necessidade obsessiva de corrigir, elaborar e acertar as contas com tudo que eu faço também é uma força que me afasta do aqui e do agora. E isso cansa pra caralho.
Não é burnout, não é depressão, não é falta de vitaminas e nem é (só) o capitalismo. It’s me, hi, I’m the problem it’s me.
No início de 2020, antes da pandemia, tive um episódio de ansiedade especialmente doloroso ligado a uma tarefa do mestrado que me fez perceber como conduzia minha vida profissional (e aqui entra trabalho formal, carreira acadêmica e até mesmo a escrita) de uma maneira autodestrutiva. Estava na minha frente o tempo inteiro, mas aquela madrugada específica foi uma iluminação. No meio daquela crise, decidi que não queria mais me machucar daquela forma e no final do ano até escrevi um texto sobre isso. Não dá para dizer que tudo foi tranquilo depois disso, mas também não foi mais tão ruim.
Agora, depois de um ano inteiro tentando entender na terapia por que estou sempre tão cansada, por que fico doente o tempo inteiro (nunca de coisas graves, sempre de pequenos inconvenientes, infecções oportunistas, a cara da somatização), percebi que esse comportamento vicioso se estende para todos os setores da minha vida, me afastando dela, de mim, de todos. É tentador culpar meus pais, a ética protestante e o espírito do capitalismo, minha família profundamente estoica, as crianças que fizeram bullying comigo na infância e os caralhos, mas quem segura o chicote no final do dia ainda sou eu. E só eu que posso soltá-lo.
Estou escrevendo essas mesmas palavras há anos, mas nesse fim de ano parece que cheguei, enfim, naquela iluminação que põe um limite nas coisas. Minha terapeuta pergunta bastante o que acho que meu corpo quer dizer com tanto cansaço, tanto enjoo, tanta dor de garganta, e eu digo que é um pedido de socorro pra eu fazer menos coisas, mas acho que não é bem assim. Fantasio o tempo inteiro com pausas e silêncios, mas não é da vida, e sim daquilo que me afasta dela. Carrego esse cansaço que não é só físico e emocional, mas que reflete a falta que tenho sentido de um lugar em que eu possa descansar de toda essa loucura. Falo muito sobre essa sensação de que minha vida está começando, como se estar sempre no começo me desse a garantia que posso começar certo, que ainda não estraguei nada, mas essa é uma das muitas ideias que uso não só para me proteger, mas também para me sabotar.
Minha vida começou faz tempo e tem acontecido bastante, mas eu ainda preciso me autorizar a habitá-la por inteiro. Talvez assim eu consiga descansar.
Após uma semana de caminhadas solitárias na beira do mar da Bahia, fazendo um balanço de tudo que vivi diante daquelas praias quase desertas, decidi, de novo, que não quero mais me machucar dessa forma. Depois de um ano em que realizei tantos sonhos, essa é a minha resolução. Não quero me esvaziar inteira, punir o meu corpo, me envenenar de culpa e de medo para só assim me permitir viver um ano feliz. Quero honrar os passos que me fizeram chegar nessa vida que tanto quis pra mim, com todo o apoio e toda a boa sorte que sempre me carregam. Quero que no próximo ano eu possa só agradecer sem sofrer, viver sem pensar demais, cuidando de mim com o amor que eu mereço.
Em outras palavras, quero tirar a cabeça do cu e apreciar mais a vista, até porque 2022 me levou pra uns lugares bonitos demais.
Escolhi ilustrar esse texto com as minhas piores fotos do ano não para forçar essa dicotomia antiga de vida real x rede social, tampouco para dizer que quem vê close não vê corre, mas porque no fundo eu sou apaixonada por essa minha versão descabelada, para lembrar que amo minha vida caótica, para não esquecer que mesmo tendo uma tirana dentro de mim eu ainda fiz tudo que pude e que me deu vontade esse ano e que é assim que quero viver. Afinal, se não inventar moda, vou falar do que da próxima vez que passar 50 minutos presa com uma motorista tagarela?
A vista em questão foi a do lago do Parque del Retiro. A parte boa de visitar uma cidade sem pesquisar quase nada sobre ela é que você pode ser surpreendida pelos pontos turísticos mais óbvios e foi isso que aconteceu comigo, bem quando estava no auge da estafa, desejando ver algo que nunca tinha visto antes. Eram quase 10 da noite, mas ainda fazia sol e um dia lindo graças ao verão europeu, e cheguei até lá resmungando, sendo arrastada pela mão, até que a visão daquel lago me quebrou completamente. Taí uma sensação que desejo para qualquer pessoa que estiver lendo isso agora.
Ufa, agora acabou! Se tudo der certo, volto em algum momento para fazer um ranking desses shows aí. Até lá, stay beautiful e feliz ano novo!
Com carinho,
Anna Vitória
Volta e meia eu volto para ler esse texto. Um soco no estômago de tão bom.
Ooi Anna Vitória, como você está? Queria muito te dizer que esse foi um dos textos que mais me identifiquei nos últimos tempos, fico até assustada, hahaha. Mas é principalmente bom saber que a gente não tá sozinho e que tem pessoas passando pelas mesmas coisas, dá um certo alívio. Beijo grande pra você