para ler ouvindo fresno - stonehenge
Esses dias me dei conta que se eu pudesse voltar no tempo e assistir qualquer show realizado na história, esse show seria a apresentação que deu origem ao MTV Ao Vivo 5 Bandas de Rock. Eu poderia pensar em outras respostas mais sofisticadas que até seriam verdadeiras, mas no bueiro da minha alma eu tenho certeza que essa é a resposta mais honesta. Eu daria muita coisa para estar no Via Funchal no dia 14 de Fevereiro de 2007.
Mas em 2007 eu tinha 13 anos, morava em Uberlândia (MG) e nenhum dos meus amigos era emo. Eu passava lápis preto e várias camadas de rímel grosso e vencido da Avon pra ir pra escola, tirava selfies na minha cybershot de segunda linha fazendo caras e bocas pra postar no Fotolog, mas na maior parte do tempo eu era uma CDF bem limpinha que estudava num colégio tão conservador que até usar All Star já era visto como uma espécie de subversão — inclusive pelos estudantes.
Eu usava All Star mas não tinha vocação nenhuma pra ser rebelde, então guardava isso tudo para meu Fotolog, o espaço onde aprendi a escrever na internet e provavelmente o lugar onde ouvi falar de Fresno pela primeira vez.

Em 2006 eu fiquei obcecada pelo Fotolog do Lucas, o vocalista da Fresno, e ficar obcecada pela banda foi muito mais consequência dessa paixão adolescente do que qualquer outra coisa, a única diferença é que ele não estudava na minha escola. Ainda assim, o lançamento do MTV Ao Vivo 5 Bandas de Rock — uma reunião arranjada pelo Rick Bonadio1 entre NX Zero, Fresno, Hateen, Forfun e Moptop, uma tentativa de levar pro mainstream um apanhado de pequenas efervescências que estavam acontecendo na internet e transformar tudo numa única Cena — foi um evento cataclísmico na minha vida.
Analisando em retrospecto, chuto que boa parte da euforia vinha da experiência de ver “no mundo real” algo que até então só existia dentro do meu computador, num universo muito específico e muito meu. Eles existiam mesmo, e era como se, por tabela, eu, aquele meu outro eu que era diferente do que eu mostrava todos os dias na escola, existisse também. Foi algo estranhamente validante. Sei que já descrevi essa mesma sensação ao falar de uma série de coisas diferentes, mas é que a vida nessa fronteira entre online e offline é mesmo uma das experiências mais formativas da minha vida.
Ser fã de Fresno foi minha primeira e talvez única experiência de fã num mundo ainda majoritariamente analógico, mesmo para uma banda nativa da internet. Lembro de comprar o CD2 e o DVD do MTV Ao Vivo 5 Bandas de Rock na Fnac, numa viagem para São Paulo, a coisa menos rock’n’roll do mundo, mas por muito tempo aqueles dois pedaços de mídia foram minhas posses mais preciosas. Eu tinha um MP3 player Foston com os até então três discos da banda salvos, mas só aquele CD e aquele DVD tinham o registro da multidão cantando “Quebre as Correntes”, o Lucas sozinho com sua guitarra cantando “Duas Lágrimas” e uma série de outros detalhes que faziam daquele evento único, além de funcionarem como passaporte para uma vida que me parecia totalmente distante, mas que eu gostaria muito de viver.
Independentemente da via, só mesmo quem viveu sabe. E vivendo agora, do outro lado, tenho sentido falta desse deslumbramento besta que vinha de uma certa experiência de escassez proporcionada por gostar de música, cinema, essas coisas, antes da internet existir. Por não estar disponível o tempo inteiro, tudo parecia mais real e importante. Por anos, um recorte do Lucas Fresno retirado de uma revista Capricho ficou preso no mural do meu quarto, porque era realmente difícil achar uma foto em que ele estivesse com o cabelo bonito. Quando se tem 12, 13 anos, essa sensação de descobrir algo novo, algo seu, é ainda mais inebriante.
Em agosto deste ano comecei a escrever, de novo, sobre esse mal estar incômodo de viver (e trabalhar) no capitalismo digital, mas abri um livro do Byung-Chul Han para tentar elaborar melhor algumas questões e nunca mais consegui sair. O que tiro de tudo que li e escrevi sobre o assunto ao longo desses meses é que tudo existe demais, o tempo inteiro, mas ao mesmo tempo nada mais existe.
Outra experiência que acredito ser fundamental para a formação da minha identidade enquanto millennial classe média é essa sensação (às vezes ilusória, às vezes bastante concreta) de ser alguém que chegou atrasada para a festa, nas mais diversas esferas e dimensões3. Foi só em 2015, aos 21 anos, que consegui ver meu primeiro show da Fresno, por exemplo. E acho que até hoje esse negócio de ver shows mexe tanto comigo porque é o jeito mais palpável de me sentir parte de algo que lá atrás me pegou com muita força e mudou a rota da minha vida. Quase nada do que eu visualizava e sonhava para mim nessa época se concretizou, e não foi só porque a vida não se desenrola como a gente imagina aos 12 anos, mas porque aquele mundo simplesmente não existe mais.
Por muito tempo, e ainda hoje, essa sensação de perda de algo que eu quase tive nas mãos me assombra e faz com que eu tenha muito medo de olhar pra frente. Mas a música ao vivo cura exatamente onde tudo isso dói, de formas que não consigo explicar muito bem sem ser brega. Parafraseando a mim mesma, num outro texto sobre o mesmo assunto, estar diante das bandas que eu gosto faz com que eu me sinta uma pessoa no mundo, a minha própria pessoa. Na adolescência e início da vida adulta, os shows eram os momentos que me lembravam da vida que eu queria, do mundo grande e vibrante que eu sonhava para mim. Agora, na vida adulta real oficial, esses são momentos de reafirmar esse compromisso pessoal, de me entregar ao que mais me faz feliz, de não ter tanto medo do meu próprio desejo.
É uma rara, e muito bem-vinda, sensação de estar inteira que nunca, nunca perde a graça. É uma das poucas coisas na vida que eu não faço por absolutamente ninguém além de mim.

Eu não estava pensando em nada disso quando decidi que precisava ver um show da Fresno ainda esse ano, só estava querendo viver uma pequena aventura para me distrair um pouco. 2023 não tem sido fácil e os últimos meses tem sido especialmente duros: estou reaprendendo a viver e regular minhas emoções sem o principal medicamento para ansiedade que tomei nos últimos três anos e é uma adaptação delicada, cheia de altos e baixos. Soma-se a isso uma série de planetas retrógrados girando na direção do meu saturno retornante, todos eles me fazendo confrontar questões profundas e difíceis, pensar sobre o futuro, tomar decisões.
Tenho me sentido velha e nem um pouco sábia, cansada e com medo de tudo. Pergunto para minha terapeuta e psiquiatra se essa angústia não significa que devo voltar com os remédios, mas elas me asseguram que o único caminho pra fora é por dentro. Curiosamente, era mais ou menos assim que me sentia lá em 2015, vendo Fresno pela primeira vez.
A Fresno tinha um show marcado em São José dos Campos (SP) no fim de agosto, coincidindo com os dias em que eu estaria na capital. O plano era fazer um bate-volta na cidade, o que parece um empenho absurdo para ver uma banda que sempre toca em São Paulo (SP), e foi mesmo um esforço (e um gasto) que não têm qualquer justificativa sensata a não ser a de que eu queria muito fazer isso.
Então eu peguei um ônibus no Tietê numa tarde de sábado cinzenta e horrorosa, desci em São José dos Campos (SP), dei uma volta no Vale Sul Shopping e depois fiz check-in num Ibis localizado na Dutra. Aproveitei a cama gostosa do hotel para ficar lendo até a hora de me aprontar, pedi um hambúrguer e uma recepcionista com cabelo colorido e colar de pentagrama no pescoço me indicou uma motorista de Uber pra me buscar depois show, que aconteceria numa dessas casas de eventos meio fora do perímetro urbano. Estava caindo a maior chuva, fazia um frio de gelar os ossos, e quando me vi nessa situação, naquele lugar no meio do nada, cheguei a questionar por que eu faço esse tipo de coisa, mas passou logo.
Eu só gosto muito mesmo de tudo isso. De gastar dinheiro com merch, de ficar ali em pé com uma latinha de cerveja vendo um palco ser montado, e até de sair com o ouvido zumbindo por conta das guitarras. Um show tem essa fisicalidade inescapável que tem me feito tanta falta, por mais que na maior parte do tempo ela seja sentida na forma de suor e dor na lombar.
Eu também gosto de viajar de ônibus ouvindo música, gosto de quartos de hotel, gosto muito de estar sozinha em espaços cheios de gente, observando as pessoas. Amo identificar mulheres sozinhas nessa mesma situação, só curtindo aquela coisa que também é tão boa pra elas. Eu nem gosto tanto assim de Fresno, objetivamente. As letras da banda me dizem pouquíssima coisa, mas eu gosto muito das guitarras, da catarse, do drama, eu amo o Lucas e amo o Vavo, amo a ética de trabalho deles e amo como eles gostam muito de tudo isso também e essa é a coisa mais importante de todas.
Na volta conheci Dona Beth, motorista que aparentemente é uma grande figura da noite de São José dos Campos (SP), e ela não calou a boca por um segundo durante todo o trajeto até o hotel. Ela chegou a me perguntar por que eu tinha ido até São José dos Campos (SP) para um show daqueles, mas não me deu a chance de responder.
Fui embora no dia seguinte depois do café da manhã, sem dormir quase nada por conta do péssimo isolamento acústico daquele corredor de hotel. Voltei pra São Paulo (SP) novamente embaixo de uma chuva gelada e sem ter nenhum dos meus problemas resolvidos, mas muito satisfeita comigo mesma, eu e todas as versões de mim que já foram fãs de Fresno ao longo desses mais de 15 anos.
Sem a menor dúvida, eu ainda escolheria o MTV Ao Vivo 5 Bandas de Rock para ver, dentre todos os shows da história. De alguma forma, foi ele que me trouxe até aqui.
O conje Bruno Capelas escreveu recentemente um texto bem bonito falando de como nos apaixonamos pelo Conociendo Rusia e também um pelo outro. Não satisfeita em ser uma pessoa que vai a shows, também faço parte de um casal que vai a shows. E Rusito vem aí!
Esse é mais um texto da série Fã de…, em que examino minha relação obsessiva com certos artistas.
Disco da edição
Quarto dos Livros - 20 anos (Fresno, 2023): Eu sinto que manifestei esse disco. Não o original, o primeiro disco da banda Fresno, lançado lá em 2003 e para sempre meu favorito. Mas essa nova versão especial remasterizada, que organiza um pouco a bagunça deliciosa que é esse álbum mas sem deixar ele a coisa mais especial, que é o fato de ser um disco totalmente IMUNDO. Por conta do projeto, rolou “Stonehenge” no show que assisti, uma surpresa no setlist da turnê. Eles precisavam promover o álbum novo4, mas fico com a versão de que foi algo muito, muito pessoal comigo.
Músicas favoritas: “Se Algum Dia Eu Não Acordar”, “Stonehenge”, “Mais um Soldado” e “Teu Semblante”
Hello stranger, como vai você?
Obrigada pela companhia e por chegar até aqui. Estou escrevendo essa edição desde a viagem de volta de São José dos Campos (SP), mas a vida tem acontecido demais, principalmente dentro da minha cabeça. Relendo tudo agora as coisas parecem mais graves do que realmente estão no dia a dia, e como escreveu a Lorde na sua newsletter recentemente, I still laugh every day, it’s all moving, even when it goes slow. Don’t worry about me.
Espero que tenha algum fã de Fresno lendo tudo isso aí do outro lado. Don’t be a stranger.
Com carinho,
Anna Vitória
Naquele formato music pack, numa embalagem chinfrim meio de papel, que inventaram para baratear as mídias físicas e tentar conter o impacto do MP3. Quem lembra?
Minha amiga Barbara, fã de Blur, escreveu umas coisas muito bonitas sobre isso num texto sobre sua mais recente viagem a Londres;
A banda fez umas lives especiais pra relançar o álbum e chamaram o Thunderbird pra ser uma espécie de mestre de cerimônias. Nesse buraco da banda que caí nos últimos meses, topei também com a entrevista do Lucas no podcast do Thunder. Eu me diverti bem e é um conteúdo maravilhoso para crias da MTV anos 2000 de maneira geral. Recomendo bem.
me senti muito contemplada neste texto enquanto conje de fã de fresno <3
Eu perdi o bonde cronológico de ser fã de Fresno, mas ri demais que você foi pra São José ver um show deles quando nos idos de 2003 eu pegava ônibus escondido da minha mãe para vir de SJC pra São Paulo ver show do Dead Fish no Hangar 110. E também vi um show do Fresno lá, abrindo para uma outra banda que por sua vez que estava abrindo pro Dance of Days que por sua vez tava abrindo pra uma banda gringa que não lembro qual é. Como é bom e horrivel esse mundo não existir mais